Introdução
No Brasil, 85% da população habita os centros urbanos e 25% desse espaço urbano é ocupado de forma inadequada (IBGE, 2012). Na América Latina, o alto custo da terra urbanizada e as desigualdades socioespaciais têm relegado a certas faixas da população a informalidade como única solução de moradia (Costa, 2020; Fernandes, 2013).
A Rede moradia assessoria [Rede] é um grupo brasileiro de pesquisadores que buscam a nível nacional, pelo mapeamento dos grupos locais, construir um atlas da precariedade habitacional no Brasil e das práticas de assessoria técnica de habitação de interesse social. A Rede entende que a precariedade física das habitações e assentamentos humanos brasileiros são consequência e causa de e para outras condicionantes sociais que dificultam o desenvolvimento de toda a população, afetando, sobretudo, os mais pobres e vulneráveis.
Nesse sentido, a regularização fundiária vem se consolidando, em todas suas dimensões, inclusive, no âmbito legal, como forma de alcançar uma melhoria das condições de moradia nas cidades. Segundo Alfonsin (1997), a regularização fundiária é pluridimensional e consiste no:
"(…) processo de intervenção pública, sob aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradores de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária."
Logo, o processo de regularização fundiária supõe, em algumas ou todas suas etapas, uma participação dos moradores (Fernandes, 2013). Como a participação social está inserida no escopo legal de regularização fundiária no Brasil? E quando e como a participação social foi incluída no processo e nas práticas de assessoria técnica dos grupos ligados à Rede moradia assessoria?
Este artigo busca analisar a participação social no processo de regularização fundiária no Brasil e nas práticas de assessoria técnica da Rede. Para tal, faz-se uma revisão de literatura e um levantamento de dados em estudos de caso na plataforma digital da Rede.
Primeiramente, analisa-se, nas leis nacionais, como a questão da regularização fundiária foi aos poucos inserida. Depois, faz-se uma leitura crítica da nova ordem jurídica instaurada na Lei n. 13.465 (2017) e uma análise da inserção da participação nela. Daí, detalham-se os instrumentos de projeto e plano de regularização fundiária. Por fim, faz-se uma análise dos estudos de caso sistematizados na plataforma digital da Rede que buscam assessorar um processo participativo de regularização fundiária.
Regularização fundiária no Brasil
O conceito de propriedade varia ao longo da história e difere de uma cultura para outra: “En tiempos primitivos, la propiedad era colectiva, pasando a ser individual en la era romana. En ese período prevalecía el absolutismo de la propiedad, donde el propietario podría disponer de ella” (Costa & Hernandez, 2010, p.128). Segundo os autores, essa concepção varia conforme a situação social, econômica e política de um país.
Ao princípio do periodo colonial, as terras eram do domínio da coroa Portuguesa por “direito de conquista” e "os proprietários de imóveis rurais eram obrigados a lavrar suas terras sob pena de perdê-las para outras pessoas que quiserem torná-las produtivas " (Loch & Erba, 2007, p.16). Em seguida, nobres portugueses ganharam títulos chamados “Carta de Sesmaria” como concessões para colonizar o Brasil (Loch & Erba, 2007). A partir da resolução do 17 de julho de 1822, são suspensas a formalização de novas Sesmarias até a promulgação da constituição 2 anos depois, o que deixa o sistema em “regime extralegal” (Loch & Erba, 2007, p.16). Dia 25 de março de 1824, foi promulgada a Constituição Política do Império do Brasil o qual garante o direito de propriedade privada.
No entanto, a insegurança ligada ao domínio e à posse de terras em formato de sesmarias levou à promulgação, em 1850, da Lei de Terras. Esta lei prevê a “compra e venda das terras devolutas do império, a revalidação de terras possuídas por títulos de sesmarias e a legitimação de posses mansas e pacíficas por simples título (discriminação das terras públicas e privadas)” (Loch & Erba, 2007, p.17). Os autores ressaltam ainda que em 1891, na constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, é definido que “pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios”, o que define uma gestão dos territórios a uma escala mais local do que no caso de uma gestão a nível federal.
A Lei n. 271 (1967) instituiu a Concessão de Direito Real de Uso [CDRU] para regularizar ocupações em terrenos públicos e o Código Civil prevê modalidades de usucapião para terrenos particulares (Costa, 2020). A Lei n. 6.766 (1979), de parcelamento do solo urbano, se aplicava a parcelamentos novos, o que não resolvia por lei a questão da regularização fundiária dos parcelamentos irregulares e permanecendo, portanto, a judicialização como alternativa para os ocupantes irregulares da terra.
Na Constituição Federal (1988), destacam-se os artigos 182 e 183, que estabelecem preceitos para a política urbana e apontam a participação social como agente relevante do processo. A regulamentação desses artigos só aconteceu 13 anos depois com a Lei n. 10.257 (2001), o Estatuto da cidade, que retoma, entre outras diretrizes, a noção de função social da propriedade e coloca o plano diretor como gestão democrática. A função social da propriedade é definida por Hernandez e Costa como “el uso que el propietario haga de su propiedad tiene un efecto a nivel social y en ese sentido debe ejercerlo en conformidad con el interés general” (2010, p. 129).
Em 2009, a Lei n. 11.977 do Programa Minha Casa Minha Vida [PMCMV] responsabiliza o município para promover a regularização fundiária, o que poderá ter o condão de desobstruir o judiciário com ações versando sobre este tema, e instaura a noção de direito à cidade com a participação e a gestão democrática. Assim, o poder público reconhece “a existência de um ambiente urbano segregado” (Mendonça, 2020) e permite um processo mais ancorado na realidade local. A Lei instituidora do PMCMV, focada na regularização de interesse social, instaura, no artigo 48, inciso III, a “participação da população em todas as etapas da regularização fundiária” e no artigo 46, a noção de pluridisciplinaridade da regularização fundiária que consiste “no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais”. Fala-se também de regularização fundiária plena, pois o direito à cidade supõe a previsão e execução de infraestrutura básica e acesso aos serviços públicos.
Desde a Constituição (1988), a criação do conjunto normativo referente à política urbana e regularização fundiária contou com uma grande participação de movimentos sociais e setores organizados da sociedade civil. Com a Lei n. 13.465 (2017) de regularização fundiária, que, ao contrário da tendência até então estabelecida, foi oriunda de uma Medida Provisória, os conceitos de direito à cidade, participação social e regularização fundiária plena passam a ter menos importância, como veremos na próxima seção.
Análise crítica do processo de regularização fundiária introduzido pela Lei n. 13.465 (2017)
Diversos autores apontam retrocessos decorrentes da nova Lei de regularização fundiária n. 13.465 (2017) (Carvalho, 2019; Alfonsin, Berni, & Pereira, 2019; Tierno, 2017). Vários artigos das normas até então vigentes foram revogados no intuito de aumentar a discricionariedade do Estado (Carvalho, 2019; Alfonsin et al., 2019) e desburocratizar o processo (Carvalho, 2019). Alfonsin et al. (2019) falam em ruptura da lógica da regularização pois, com a Lei n. 13.465 (2017), o foco é dado na propriedade e não no direito à cidade como nas normas até então vigentes.
Rosane Tierno levanta 7 PerverCidades. A primeira delas é o fato de que a Lei n. 13.465 (2017) foi emitida a partir de uma Medida Provisória, processo pelo qual não é possível ter as reflexões holísticas que a cidade requer nem o vacatio legis, ou seja, interstício temporal entre a publicação e a vigência de uma lei, tempo esse necessário à preparação da aplicação de uma nova lei pela administração e pela justiça.
A segunda PerverCidades é que, na primeira versão da Lei, não tinha referência nenhuma à regularização fundiária. O capítulo foi acrescentado após pressão dos técnicos: ele consiste em um copia-cola do parágrafo sobre regularização fundiária da lei anterior n. 11.977 (2009) (Tierno, 2017), mas subtraindo-lhe a parte sobre direito à cidade e função social da propriedade (Alfonsin et al., 2019).
Outra PerverCidades é que Lei n. 13.465 (2017) está tendo sua constitucionalidade questionada em razão do conceito de legitimação fundiária que apresenta vários “drible linguístico-hermenêutico” (Alfonsin et al., 2019) misturando usucapião, desapropriação, doação, lotes privados e públicos. A quarta PerverCidades diz respeito ao licenciamento ambiental que, na Lei n. 13.465 (2017), remete ao código florestal que, por sua vez, remete à lei revogada (Tierno, 2017).
A quinta PerverCidades é apontada como sendo a perda da autonomia municipal instaurada pela possibilidade de regularizar sem “Habite-se”1 ou sem Zona Especial de Interesse Social [ZEIS]2 (Tierno, 2017). O plano diretor é desprestigiado com a nova noção de "núcleo urbano” que se aplica tanto à área rural quanto à urbana (Alfonsin et al., 2019). Também, a regularização fundiária busca diminuir as desigualdades socioespaciais, mas a nova Lei define requisitos à regularização de interesse social3 [Reurb-S] e, quando a ocupação informal não se encaixa na Reurb-S, pode seguir o processo na regularização de interesse específico [Reurb-E], sem que os requisitos sejam definidos, o que torna o processo mais simples para a Reurb-E.
A sexta PerverCidades diz respeito a diversas alterações do Estatuto da Cidade: a usucapião se torna acessível para todas as classes sociais; a alteração do artigo 46, tratando do “Consórcio Imobiliário Urbano” pelo qual um imóvel pode ser transferido ao setor público para reforma após a qual o privado recebe unidade como forma de retribuição, mas que não dá garantia para o retorno da população removida; ou ainda o direito de laje “no meio de um mar irregular” e com sérias questões de responsabilidade técnica (Tierno, 2017).
Por fim, a sétima PerverCidades é sobre a regularização de “condomínio de lotes” e o “fechamento de loteamentos” que altera o Código Civil, permitindo novos condomínios fechados e altera a Lei n. 6.766 (1979), admitindo o fechamento dos loteamentos, em outras palavras permite à regularização da grilagem (Tierno, 2017).
Quanto à participação social dos interessados, a nova Lei a permite nas etapas do processo (art. 10, inciso XII), mas o tom geral da Lei, como vimos, estabelece uma ruptura com os preceitos estabelecidos pelo Estatuto da Cidade. Logo, a gestão democrática pode ser apenas mencionada, como ressalta Alfonsin et al (2019) com relação ao direito à moradia.
Vianna (2020) ressalta que a Lei n. 13.465 (2017) não prevê “expressamente dispositivos que definam e prevejam o trabalho social dentro da Reurb”, mas que, na prática, a não participação pode acarretar falta de transparência e outros questionamentos. O artigo 41, que dispõe sobre a certidão de regularização fundiária, prevê no inciso VI a participação dos interessados pelo fornecimento das seguintes informações: “nomes dos ocupantes […], estado civil, a profissão, o número de inscrição no Cadastro das Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda e do registro geral da cédula de identidade e a filiação”. Segundo Vianna, esse inciso VI do artigo 41 da Lei n. 13.465 (2017) solicita a listagem dos titulares dos direitos reais, mas sem mencionar a elaboração do cadastro social, que correspondia na legislação anterior, à coleta de informações e documentos sobre os moradores.
Além da listagem dos moradores, o cadastro social permite averiguar a condição socioeconômica dos moradores para definir qual instrumento de regularização pode se aplicar naquela área. Essas informações também devem ser coletadas para a compatibilização com os dados espaciais contidos no levantamento planialtimétrico cadastral e no plano urbanístico, como será analisado na próxima sessão.
Projeto e plano de regularização fundiária [Reurb]
De toda a documentação exigida ao longo do processo de Reurb, destacam-se, com relação ao ofício de arquitetura e urbanismo, o projeto e o plano de Reurb. Definido no artigo 35 da Lei n. 13.465 (2017), o projeto de regularização fundiária conterá:
I - levantamento planialtimétrico e cadastral, com georreferenciamento […];
II - Planta do perímetro do núcleo urbano informal […]
IV - projeto urbanístico;
V - memoriais descritivos;
VI - proposta de soluções para questões ambientais, urbanísticas e de reassentamento dos ocupantes, quando for o caso;
VII - estudo técnico para situação de risco, quando for o caso;
VIII - estudo técnico ambiental, para os fins previstos nesta Lei, quando for o caso; […]
O levantamento planialtimétrico e cadastral deve ser realizado com georreferenciamento por um profissional habilitado, mas pode-se questionar a mais-valia que representaria a participação dos interessados na elaboração dessa planta. De fato, a visão técnica de cima para baixo dada pelo plano diretor pode ganhar legitimidade quando ratificada pela vivência dos moradores e definir limites espaciais do bairro coerentes com a realidade. Nesse sentido, o projeto urbanístico, no qual a situação espacial e construída da ocupação informal é detalhada, poderia ser uma etapa realizada antes do levantamento planialtimétrico e cadastral. Por sua vez, a planta do perímetro do núcleo urbano informal busca apresentar o número das matrículas dos lotes da área a ser regularizada.
Segundo o artigo 36, o projeto urbanístico de regularização fundiária deverá conter, no mínimo, indicação:
I - das áreas ocupadas, do sistema viário e das unidades imobiliárias, existentes ou projetadas;
II - das unidades imobiliárias a serem regularizadas, suas características, área, confrontações, localização, nome do logradouro e número de sua designação cadastral, se houver;
III - quando for o caso, das quadras e suas subdivisões em lotes ou as frações ideais vinculadas à unidade regularizada;
IV - dos logradouros, espaços livres, áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, quando houver;
V - de eventuais áreas já usucapidas;
VI - das medidas de adequação para correção das desconformidades, quando necessárias;
VII - das medidas de adequação da mobilidade, acessibilidade, infraestrutura e relocação de edificações, quando necessárias;
VIII - das obras de infraestrutura essencial, quando necessárias; […]
Como o nome indica, o projeto de plano urbanístico desenha, a partir das características sociais e espaciais da ocupação informal, propostas para que o bairro adquira as características do espaço urbano formal. São definidas quadras, sistema viário e áreas para equipamentos, infraestruturas e serviços públicos. Também é avaliado o espaço construído visando melhorar a segurança e a fluidez do trânsito e das infraestruturas, bem como, identificar as construções em desconformidades que devam ser removidas.
A cartografia social, por sua vez, é instrumento de planejamento urbano participativo que incentiva a população a pensar ações para a melhoria do seu bairro. Em suas várias formas de implantação (Plano Popular, Plano de Desenvolvimento do Bairro, Cartografia Social, Etnografia Socioespacial, Plano Urbanístico, Plano de Bairro, entre outras denominações) a cartografia social apresenta as características socioespaciais de um determinado local do ponto de vista dos seus moradores. Nesse sentido, o mapeamento comunitário apresenta similitudes com o projeto e plano de Reurb, pois os dois buscam trazer uma representação da realidade.
Estudos de caso de participação social em processo de regularização fundiária nas práticas de assessoria técnica dos grupos ligados à Rede moradia assessoria
Na plataforma digital da Rede moradia assessoria [Rede], lançada em 2022, estão sistematizados, até o momento, seis exemplos de assessoria técnica em processo de regularização fundiária. Existem vários tipos e metodologias de participação social e essa variedade busca atender as demandas e um contexto específicos.
O Plano de Bairro de Santa Luzia, aplicado pelo grupo Periférico4 no Distrito Federal, foi desenvolvido com base em vários trabalhos de pesquisa e extensão. Em paralelo à descoberta das características do espaço físico da comunidade Santa Luzia durante caminhadas introdutórias, os primeiros contatos foram estabelecidos com moradores e com representantes de coletivos e associações. Graças à parceria com a ONG Educamar, sediada no território, foram organizadas uma série de oficinas para a elaboração de mapas temáticos. O Plano de Bairro elaborado por Fialho em 2019 em colaboração com outros trabalhos que tratam mais detalhadamente de temas como moradia popular, inserção de trabalhadores, drenagem e saneamento, subsidiaram as propostas da população na luta contra os argumentos e projetos de remoção do governo.
O caso do Plano Popular de autourbanização da ocupação Anchieta em São Paulo5, prática desenvolvida pela ONG de assessoria técnica Peabiru TCA, contou com um levantamento socioeconômico e planialtimétrico de cadastro dos lotes, o que subsidiou reuniões entre a comunidade e o poder público. O material produzido foi protocolado junto à coordenação de regularização fundiária do município para a emissão do certificado de regularização fundiária da comunidade.
Um outro estudo de caso refere-se à cartografia, cadastro físico e projeto de regularização fundiária desenvolvido pelo EMAU Maré para o conjunto habitacional dos Garis no Rio Grande do Norte6. Na primeira reunião com lideranças, foram apresentadas a metodologia de trabalho e o questionário socioeconômico, aos quais foram sugeridas adequações. Depois, pelo WhatsApp e por panfletos impressos, convocou-se uma assembleia na qual os moradores foram instados a tirar suas dúvidas e fazer sugestões sobre os procedimentos. O levantamento planialtimétrico, terceirizado, consistiu em fotos de drone in loco e o levantamento cadastral foi feito por meio de uma ficha de campo aplicada pelos membros do EMAU Maré, a equipe técnica e o arquiteto responsável. O diagnóstico urbanístico foi feito junto à comunidade graças a 3 momentos de discussão: (1) sobre a metodologia adotada, (2) sobre o contexto histórico e (3) sobre a situação atual da ocupação. Por fim, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RN), como organizador do edital, protocolou as informações para prosseguimento do processo de regularização fundiária.
Em Fortaleza, a Defensoria Pública cadastrou moradores do loteamento irregular Parque Presidente Vargas e levou a demanda por regularização fundiária até o EMAU Canto7. O trabalho do Canto, que envolveu 20 membros ativos no projeto, resultou em um termo de compromisso assinado entre o EMAU, a Defensoria Pública e a ONG de assessoria técnica Taramela, a qual auxiliou na definição da metodologia de trabalho (Guimarães, Silva, & Rocha, 2020). O projeto buscou inicialmente agilizar a coleta de informação e a devida sistematização em plantas e memoriais descritivos, mas nos primeiros encontros percebeu-se a importância de “coletivização do processo, buscando envolver a comunidade em um espaço de discussão e reivindicação que transgredisse as fronteiras do requerimento individual das posses dos terrenos” (Guimarães et al., 2020, p. 2287).
O Plano Urbano Comunitário (PUC) de Muribeca no Recife (PE), que conta com 70 edifícios da ZEIS Muribeca, foi elaborado pela comunidade em conjunto com o grupo de assessoria técnica profissional CAUS8. O PUC de Muribeca contou com oficinas de aproximação entre os técnicos e os moradores, oficinas de levantamento e oficinas de mapeamento, da memória, da realidade e dos desejos conforme a metodologia de autorrecenseamento, culminando no acordo de Reurb-S entre o banco Caixa Econômica, Ministério Público Federal e Município. As etapas do processo participativo foram detalhadas da seguinte maneira no site da Rede:
Etapa 1: Apresentação da metodologia aos representantes da comunidade
Etapa 2: Perfil Comunitário
Etapa 3: Construção do questionário
Etapa 4: Apresentação do autorecenseamento à comunidade
Etapa 5: Enumeração dos domicílios ou selagem
Etapa 6: Capacitação dos voluntários e aplicação do questionário
Etapa 7: Tabulação dos dados, análise e apresentação dos resultados à comunidade
A assessoria técnica da Vila Autódromo no Rio de Janeiro pelo Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual [NEPLAC]9 acompanhou as lutas pelo direito à moradia e contra remoções, muito acirradas pela busca por terrenos para os equipamentos dos megaeventos, Jogos Olímpicos (2012) e Copa do Mundo (2014). Após um levantamento físico, ambiental e socioeconómico na Vila Autódromo, realizadas pela comunidade organizada em conjunto com a assessoria, foram promovidas oficinas em grupo de trabalho temático sobre o espaço urbano, habitação, esfera jurídica e desenvolvimento social e comunitário. O material e as informações assim reunidos formaram a base para o desenvolvimento do Plano Popular da Vila Autódromo e, portanto, o principal instrumento de diálogo com a prefeitura para que pudessem ser avaliadas alternativas à remoção. Conforme o relato disponível na plataforma digital da Rede, os assessores afirmam que "uma das formas encontradas para estreitar a comunicação entre a totalidade dos moradores e o grupo de assessoria foram os conselhos reunindo representantes por ruas"10.
Percebe-se, através dos seis exemplos aqui relatados, que os grupos de assessoria técnica da Rede valem-se de instrumentos de planejamento urbano participativo que incentivam a população a pensar ações para a melhoria de seu bairro. Nas suas variações, as metodologias procuram, num processo dialógico, levantar as necessidades por equipamentos públicos, sociais, de lazer e estimular oportunidades de trabalho. Por outro lado, busca sensibilizar as lideranças e a população com uma leitura técnica do bairro, isto é, uma análise dos instrumentos legais que incidem na área, as hipóteses de intervenções e consolidação das propostas. A leitura comunitária permite resgatar as relações cotidianas pela abordagem dos problemas e soluções ao alcance da comunidade, bem como debater em torno da memória e da cultura local e fortalecer a solidariedade entre os moradores.
Observa-se nesses estudos de caso o papel do arquiteto e urbanista como mediador no processo de Reurb-S, para qual o projeto deve refletir a realidade física, social e urbanística e propor soluções concordantes com as dimensões locais da sustentabilidade. Ao fim e ao cabo, o mapeamento se mostra, nos estudos de caso analisados, uma ferramenta recorrentemente empregada para subsidiar o diálogo entre uma comunidade e o poder público nas lutas sociais por moradia e regularização fundiária.
Considerações finais
Vimos que o arcabouço legal que, inicialmente, introduziu a regularização fundiária por meio de leis, foi ampliado por lutas sociais que culminou com a inclusão de capítulos específicos sobre o tema na Constituição Federal de 1988. Posteriormente, leis ordinárias regulamentaram os capítulos constitucionais para devida aplicação dos novos conceitos como gestão democrática e função social da propriedade.
A Lei n. 13.465 (2017) instaura uma nova ordem, neoliberal, contrária àquela até então proposta pelo ordenamento legal vigente, fortalecendo a ideia de inserção da moradia no mercado. O principal objetivo da Lei n. 13.465 (2017) gira em torno da titulação, deixando de lado a moradia como direito fundamental no sentido mais amplo, isto é, supondo uma regularização fundiária plena incluindo título e regularização urbanística. A Lei traz, em abstrato, a participação social dos moradores de assentamentos irregulares como imprescindível ao longo do processo de Reurb, mas essa participação não é instrumentalizada de fato no corpo legal.
Os instrumentos de projeto e plano de Reurb presentes nas leis anteriores e na lei atual buscam trazer os elementos físicos, judiciais, sociais e ambientais para a regularização do assentamento informal conforme a sua realidade específica. As práticas dos grupos de assessoria técnica analisadas mostram que a cartografia social é o principal instrumento utilizado para incluir as vivências socioespaciais dos moradores.
Paralelamente, o processo de Reurb e as normas técnicas são, por intermédio do processo participativo de levantamento e mapeamento, discutidas com a população, que, dessa forma, tem mais chance de entender, se apropriar e aceitar ou discutir o processo. A cartografia participativa parece ser um importante meio de comunicação entre o poder público e as populações de assentamentos irregulares, com propostas e contrapropostas, baseadas, na medida do possível, na realidade específica do local. Por fim, pode-se pensar que os dois mapeamentos, técnico e popular, são complementares no projeto de Reurb.