Introdução
A prescrição inapropriada por parte dos médicos é considerada uma das principais razões para o aumento da resistência aos antimicrobianos.1 A par tem-se verificado uma inovação limitada ao nível da produção de novas substâncias com capacidade antimicrobiana. Por este motivo, estratégias de melhoria da qualidade da prescrição são essenciais na prevenção e controlo das resistências aos antimicrobianos e fazem parte das recomendações da Comissão Europeia2 e do Programa Nacional de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA).3
Como parte das estratégias de melhoria da qualidade da prescrição, os PPCIRA locais incluem componentes de antimicrobial stewardship, isto é, a seleção ótima do antimicrobiano a usar, ajuste da dose e duração para o melhor resultado clínico possível com a menor toxicidade possível e menor impacto na resistência a antimicrobianos.4 Estas estratégias assentam geralmente em quatro pilares, denominados quatro D: a escolha de antimicrobiano - drug; a dose do antimicrobiano - dosage; o ajuste da dose e da escolha após caracterização microbiológica e genética - de-escalation; e a duração - duration.4
As auditorias clínicas são fundamentais para o processo de melhoria contínua da qualidade num serviço de saúde.5 Encontram-se contempladas num dos objetivos da Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde 2015-2020 por contribuírem para a melhoria e diminuição da variabilidade da prática clínica, sendo consideradas uma atividade essencial de âmbito pedagógico.6
As normas de orientação clínica (NOC) têm como objetivo a uniformização da prática clínica no país, de acordo com a evidência internacional e nacional publicada e recomendam auditorias à prática clínica de acordo com critérios nelas explanados. Não são conhecidas publicações prévias que descrevam processos ou resultados de auditorias que pretendessem captar a prescrição antimicrobiana, de acordo com componentes de antimicrobial stewardship, baseados em NOC.
No Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) da Amadora não se tinha realizado previamente uma auditoria no âmbito da melhoria da prescrição antimicrobiana. Assim, a auditoria a prescrições antimicrobianas no ACeS Amadora descrita no presente artigo teve como objetivo a identificação de não conformidades, ao nível do ACeS, estratificadas pelas diferentes unidades funcionais para consequente desenvolvimento de estratégias de melhoria da qualidade na prevenção e controlo de resistências a antimicrobianos.4,7 O presente artigo pretende descrever a metodologia usada durante este processo e os resultados obtidos de modo a informar o desenvolvimento de auditorias subsequentes.
Métodos
Na fase de preparação foi decidido auditar a implementação local de duas NOC. A escolha das NOC teve como base uma pesquisa de consenso entre os dez médicos de medicina geral e familiar que constituíam o grupo dentro do ACeS focado em esforços educativos sobre antibioterapia. Para tal, estes profissionais selecionaram as três normas de orientação clínica da Direção-Geral da Saúde (DGS) nas quais percecionavam existirem mais dúvidas e/ou erros aquando da prescrição antimicrobiana, em contexto de cuidados de saúde primários. Não foram estabelecidos critérios de inclusão ou exclusão para as NOC que os profissionais pudessem selecionar.
As duas NOC que foram mais frequentemente assinaladas pelos profissionais foram a Diagnóstico e tratamento da pneumonia adquirida na comunidade em idade pediátrica (019/2012)8 e a Antibioterapia na pneumonia adquirida na comunidade em adultos imunocompetentes (045/2011).9 Posteriormente, redigiu-se o protocolo da presente auditoria que foi entregue ao Conselho Clínico e de Saúde do ACeS, que autorizou o desenvolvimento deste trabalho.
As NOC selecionadas estabelecem recomendações, associadas a graus de evidência, com base em literatura internacional e nacional para o diagnóstico, referenciação, internamento e tratamento em ambulatório, nomeadamente a prescrição antimicrobiana adequada de acordo com o quadro clínico de pneumonia adquirida na comunidade. A norma referente à idade pediátrica exclui crianças com 13 e mais anos de idade. De realçar que as normas da DGS fazem a ressalva de que o médico prescritor poderá optar por outra decisão terapêutica mediante justificação no processo clínico da sua decisão.
Dos quatro componentes recomendados em programas de antimicrobial stewardship,4 esta auditoria focou-se em apenas três: a escolha, a dose e a duração da terapêutica. A não inclusão do ajuste deveu-se à necessidade de acesso a caracterização microbiológica da amostra, que ocorre raramente em cuidados de saúde primários. Estes componentes refletiram-se na seleção de três parâmetros de auditoria: terapêutica prescrita (incluindo a dose), duração da terapêutica e registo de justificação da escolha de terapêutica no software de apoio ao clínico. Construiu-se uma matriz de auditoria de forma a captar estes parâmetros. A auditoria foi restrita a 2018 por se considerar que o período anterior poderia não representar as práticas clínicas atuais, dado terem existido mudanças substanciais no corpo clínico do ACeS. Não se recorreu a técnicas de amostragem por ser exequível avaliar todos os processos relativos a 2018 (de janeiro a dezembro).
Relativamente aos episódios de pneumonia foram excluídos os que ocorreram em indivíduos registados com infeção pelo vírus da imunodeficiência humana, porque estas situações previam o encaminhamento para o médico da especialidade hospitalar, e aqueles em que não existiam registos de prescrição antimicrobiana dentro do ACeS, que incluía situações encaminhadas para avaliação e prescrição em meio hospitalar sendo, consequentemente, impossível auditar a prescrição. A auditoria foi analítica, tendo sido realizada com base nos registos existentes nos sistemas informáticos de apoio ao clínico utilizados em cuidados de saúde primários e organizada em dois momentos. No primeiro foram identificados os episódios de pneumonia e no segundo foi verificada a conformidade dos parâmetros de auditoria de cada um dos episódios previamente identificados.
Para identificação dos episódios de pneumonia extraiu-se, em fevereiro de 2019, a listagem de utentes com registo de episódio com o código R81 ICPC-210 em 2018, através da plataforma informática MIM@F, sistema de monitorização das unidades funcionais. As listagens de utentes com o código de pneumonia foram obtidas e mantidas até ao momento da extração de dados dos processos clínicos. Após essa extração, as listagens foram apagadas.
Num segundo momento procedeu-se a visita às diferentes unidades funcionais, durante os meses de fevereiro e março de 2019, para acesso ao processo no software de apoio ao clínico e ao portal de prescrição eletrónica médica (PEM) através do número de utente, obtido como anteriormente descrito. Em utentes com mais do que um episódio de pneumonia, a avaliação foi feita separadamente (por episódio). O registo do cumprimento dos parâmetros selecionados foi feito sem qualquer componente de identificação individual do utente, usando a matriz previamente construída. Foram consultados todos os processos com pelo menos um episódio codificado como pneumonia (código R81, Internacional Classification of Primary Care - ICPC-2)10 em 2018, com uma primeira prescrição antimicrobiana para esse episódio dentro do ACeS. Foram aplicados os critérios de exclusão previamente mencionados e registou-se o motivo para exclusão individual dos processos.
A terapêutica prescrita foi verificada consoante o antibiótico e a dose do mesmo. A duração da terapêutica foi verificada em termos da existência de registo da mesma e concordância com os limites inferiores de duração terapêutica prevista. Dado as normas fazerem referência que o limite superior pode ser alterado pelo médico prescritor, de acordo com a evolução clínica do doente e comorbilidades, apenas o tempo mínimo foi considerado. A duração da terapêutica foi verificada apenas nos processos clínicos cuja escolha de antibiótico estava em conformidade com as NOC. Optou-se por esta abordagem por não ser relevante para o objetivo desta auditoria verificar a duração de terapêutica com antibióticos não contemplados nas NOC em questão. Nos casos em que existisse justificação no software de apoio ao clínico a fundamentar a terapêutica e/ou duração da mesma registadas na PEM, a prescrição foi considerada em conformidade. Não se procedeu ao registo de identificação individual do médico prescritor ou do utente a quem foi feita a prescrição.
Procedeu-se a uma análise estatística descritiva da percentagem de processos clínicos cuja prescrição antimicrobiana associada estava em conformidade com todos os parâmetros das NOC selecionados como critérios para esta auditoria. Esta percentagem de conformidade foi calculada globalmente para o ACeS e individualizada por unidade funcional. Foi, igualmente, calculada para as duas diferentes NOC.
Posteriormente, através de análise estatística inferencial, utilizou-se o teste de qui-quadrado para comparação da frequência de conformidade de acordo com o modelo de unidade funcional (unidades de cuidados de saúde personalizados vs unidades de saúde familiar). Num segundo momento comparou-se a frequência de conformidade entre unidades de saúde familiar modelo A e unidades de saúde familiar modelo B. Também se comparou a frequência de conformidade de acordo com a NOC em questão (adultos vs pediátrica). A análise estatística foi realizada com recurso ao software STATA IC15 (StataCorp LP, College Station, TX).
Resultados
Um total de 588 processos clínicos foram extraídos da plataforma MIM@UF e analisados (Figura 1). Destes, 292 cumpriam critérios de inclusão e foram verificados relativamente à sua conformidade. Dos 296 processos que não cumpriam os critérios de inclusão, os motivos de exclusão foram: i) não ter havido prescrição antimicrobiana no ACeS (n=251); ii) não haver registo da prescrição antimicrobiana no software de apoio ao clínico e/ou no portal de prescrição eletrónica médica (n=39); e iii) registo de VIH (n=6).
No total, 42% dos processos verificados estavam em conformidade com as orientações para a prescrição antimicrobiana de acordo com as duas NOC em questão. O maior número de não conformidades de acordo com os critérios da auditoria prendeu-se com a escolha da terapêutica (41%) e, destas, em 100% dos casos pela associação da amoxicilina com ácido clavulânico. Não se constataram inconformidades relativamente à dose da terapêutica prescrita. Em 16% dos processos clínicos (n=48) não estava indicada a duração da terapêutica e num processo a duração era inferior à preconizada na norma.
O número de prescrições antimicrobianas em conformidade estratificada por unidades funcionais encontra-se na Tabela 1. A percentagem de conformidade variou entre as diferentes unidades entre 0,0 e 63,4%. Não se encontraram diferenças estatisticamente significativas na percentagem de conformidade das prescrições antimicrobianas dependendo da tipologia da unidade de saúde onde as mesmas foram efetuadas (p=0,1220). Relativamente à comparação entre a percentagem de conformidade das prescrições realizadas em USF não houve diferença estatisticamente significativa entre as unidades modelo A e B (p=0,1015).
Relativamente às duas NOC auditadas, 15 processos clínicos eram relativos à norma pediátrica e 277 referentes à norma para adultos. Encontrou-se uma diferença estatisticamente significativa (p=0,0117) na conformidade dos processos abrangidos pelas duas NOC com as prescrições antimicrobianas, no âmbito da norma de orientação clínica em idade pediátrica, a terem uma percentagem superior de conformidades (73,0% vs 40,0%).
Discussão
No ACeS Amadora, durante o ano de 2018, menos de metade dos processos verificados estavam em conformidade com as duas NOC relativas a pneumonia da comunidade da DGS, sendo a principal inconformidade a escolha da associação de amoxicilina com ácido clavulânico como terapêutica. Considerando a importância de uma prescrição adequada na prevenção e controlo da resistência aos antimicrobianos, estes resultados indicam a necessidade de estratégias formativas nesta área no ACeS. Contudo, a conformidade das prescrições antimicrobianas apresentou grandes variações entre diferentes unidades, não estado associadas ao tipo de unidade (UCSP vs USF) ou modelo de USF. Para além disto, a NOC relativa à pneumonia em adultos imunocompetentes apresentou uma percentagem de conformidade das prescrições antimicrobianas associadas mais baixa do que a pediátrica. Porém, esta diferença deverá ser interpretada com precaução dado ser muito baixo o número de processos clínicos que se enquadravam na norma pediátrica.
Estes resultados realçam que estratégias formativas dentro de um ACeS terão de considerar a variabilidade entre as diferentes unidades sendo que, de um ponto de vista de uso estratégico de recursos, possivelmente fará mais sentido individualizar as mesmas e não definir prioridades formativas para o ACeS enquanto um todo.
Para além de permitir estabelecer e fundamentar estratégias de melhoria da qualidade dentro da instituição, nomeadamente no âmbito das prescrições antimicrobianas, os resultados obtidos permitem igualmente estabelecer um baseline para acompanhar a evolução da conformidade das prescrições antimicrobianas dentro da instituição.
Esta auditoria tem também como ponto positivo o envolvimento, em várias etapas do processo de auditoria, de elementos da equipa de medicina geral e familiar.5 Esta colaboração com profissionais cujo comportamento é alvo da auditoria vai ao encontro de critérios definidos na literatura internacional que definem boas práticas em auditorias clínicas.5
Dado o facto de a amostra se circunscrever apenas a um ACeS, é expectável que os dados obtidos a nível local não sejam aplicáveis noutros contextos. Contudo, considera-se relevante explicitar a metodologia usada para informar esforços semelhantes noutras instituições que pretendam implementar processos de auditorias a prescrições antimicrobianas com base em NOC, como parte dos programas de prevenção e controlo de resistências a antimicrobianos locais.
A presente auditoria apresenta limitações que importa referir. Visto que a seleção de episódios de pneumonia ocorreu com base no registo do código R81, episódios não registados com este código não foram captados. Ainda que não seja conhecida uma estimativa do número de episódios esperados, a comparação entre unidades do ACeS com dimensões semelhantes permite antecipar que tal é o caso. Por exemplo, a USF I que, apesar de abranger uma população com uma dimensão e perfil demográfico semelhante a outras USF, teve um número muito inferior de processos elegíveis. Neste caso, poderão existir diferenças na aplicação dos critérios ICPC-2 pelos profissionais das diferentes unidades. De futuro, recomenda-se a caracterização do processo de codificação destas situações, de forma a conhecer o número de episódios captados e as limitações decorrentes da utilização destes registos para fins de auditorias.
Os resultados desta auditoria também poderão não ser generalizáveis para outros anos, dado poderem ter existido alterações no corpo profissional do ACeS e mudanças na aplicação das NOC por parte dos mesmos.
A estratificação dos resultados por unidades funcionais e não por profissionais permitiu captar o panorama geral da prescrição antimicrobiana no ACeS e nas diferentes unidades. Contudo, não permitiu dar feedback aos profissionais da sua prescrição para uma melhoria individual, o que é um aspeto recomendado na literatura.4-5,7 Apesar desta limitação, existe evidência de que este feedback poderá ser mais efetivo em determinados contextos por criar um ambiente de pressão positiva por pares e por permitir ajustar esforços dentro de cada unidade, onde existe autonomia para atividades formativas.11
Desta forma, enaltece-se a importância de delinear estudos locais para investigar a perceção dos profissionais aquando das prescrições antimicrobianas de acordo com parâmetros definidos em NOC, bem como o agendamento de sessões formativas. Estas últimas deverão ter como foco as principais fontes de não conformidade encontradas, nomeadamente a escolha de terapêutica, maioritariamente no adulto, e priorizar as unidades funcionais com percentagem de processos clínicos em conformidade abaixo de 50%. Também se deverá rever durante estas sessões, os critérios de inclusão e exclusão do código R81 referente a pneumonia. Está previsto um estudo qualitativo que permitirá averiguar sobre a pertinência e adequação das NOC à prática clínica, bem como o que facilitaria o processo de decisão aquando da prescrição antimicrobiana. Saliente-se, no entanto, que as sessões formativas ainda não ocorreram. Após a sua realização dever-se-á repetir a auditoria (etapa seguinte do ciclo de auditoria).5
Conclusão
Esta auditoria às prescrições antimicrobianas permitiu desenvolver uma metodologia de auditoria interna ao ACeS com base em registos, possibilitando, assim, o delinear de recomendações mais direcionadas para a estratégia formativa do ACeS. Na medida em que as recomendações não foram todas implementadas nem realizada a subsequente auditoria, não foi ainda possível avaliar a efetividade desta enquanto ferramenta de melhoria da qualidade na instituição.