Introdução
As doenças crónicas não transmissíveis constituem a principal causa de morte a nível global, apresentando-se como um dos maiores desafios para a saúde no século XXI.1 Destas, a obesidade detém especial relevo, tendo a sua prevalência mundial quase triplicado entre 1975 e 2016. (2 A obesidade é uma doença crónica associada ao aumento do risco de hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2, doença coronária e patologias como a apneia obstrutiva do sono e a osteoartrose, tornando percetível a sua relação com uma elevada mortalidade e morbilidade, o que se traduz não só em prejuízos diretos para a população como num incremento dos custos em saúde. (3
Na população portuguesa adulta, os estudos apontam uma prevalência do excesso de peso na ordem dos 34 a 39%, com a obesidade a atingir valores entre 22 e 29%.4-5 Nesse sentido, as medidas antecipatórias e os cuidados preventivos relativos à obesidade aplicados pelo médico de família (MF) constituem um pilar essencial na promoção da saúde. (1 Para se atingirem os objetivos de controlo do peso é fundamental aumentar a literacia em saúde, enfatizando junto da população que um aporte calórico excessivo, superior à quantidade de energia gasta, é fator determinante de excesso de peso e obesidade. (6-7 Segundo os dados da balança alimentar portuguesa, no período entre 2016 e 2020 verificou-se uma disponibilidade energética diária média por habitante de 4.075 kcal, o que representa duas vezes o valor recomendado para um adulto com peso médio saudável. (7
A experiência com ferramentas de apoio à prática clínica não é uma novidade para o MF em áreas como o tabagismo e a atividade física, instrumentos disponíveis desde 2017 e que têm registado uma adesão sustentadamente crescente pelos profissionais de saúde. (8-10 Não obstante, no contexto da nutrição, as ferramentas de apoio à prática clínica são uma realidade apenas em contexto hospitalar, sendo dirigidas à avaliação do risco de desnutrição. (11 O risco de excesso de peso e obesidade não é atualmente objetivado em nenhum campo do SClínico® nos cuidados de saúde primários (CSP), estando o MF limitado à possibilidade de registo do peso e da altura, através dos quais é calculado o índice de massa corporal (IMC) do utente. (8
Assim, os autores propõem a criação de uma ferramenta informática de apoio à prática clínica que permita a avaliação do aporte calórico diário estimado do utente, possibilitando a comparação deste valor com o das necessidades energéticas individuais. São objetivos principais deste recurso a promoção da educação para a saúde, o aumento do grau de motivação relativamente à perda de peso, o reforço dos benefícios inerentes a essa perda e o apoio aos utentes no atingimento do peso ideal para a altura e necessidades energéticas individuais. A ferramenta proposta permitiria ainda minimizar eventuais lacunas na abordagem do MF a esta área, em complemento com os documentos disponibilizados pelas entidades competentes no âmbito do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS). (12
Métodos
A ferramenta proposta foi idealizada para integrar um programa utilizado rotineiramente na prática clínica dos CSP, o SClínico®. Ao iniciar a consulta, o MF abre uma janela principal na qual faz os seus registos de acordo com o modelo SOAP.13 É neste ambiente que se registam os problemas do utente, nomeadamente o excesso de peso (T83) ou a obesidade (T82), de acordo com a International Classification of Primary Care (ICPC-2). (13-14 No ambiente SOAP encontra-se disponível a ficha individual, que permite o registo de parâmetros como o peso e a altura (Figura 1).
Para permitir o acesso à ferramenta sugere-se a criação de um botão alusivo à temática da nutrição na barra superior do ambiente «ficha individual», como complemento aos botões já existentes e referentes à avaliação de problemáticas de estilo de vida como a atividade física e o tabagismo. (8 Carregando nesse botão, designado «alimentação», surgiria a ferramenta «questionário de avaliação de hábitos alimentares» (Figura 2), dividida em duas secções.
Na primeira parte seria realizado o cálculo das necessidades energéticas diárias do indivíduo para manter as funções vitais do organismo, segundo o método de Harris-Benedict, o qual utiliza o produto de dois fatores: a taxa de metabolismo basal (TMB) e o nível de atividade física. (15 Após preenchimento, o resultado surgiria na secção inferior da ferramenta, identificado como «necessidades (kcal)» (Figura 2).
A TMB diz respeito à quantidade de energia que o organismo consome em repouso. (15 Para a sua determinação são considerados quatro parâmetros (género, idade, altura e peso) e utilizadas as seguintes fórmulas: (15)
• TMB mulher = 655,1 + [9,5 x peso (kg)] + [1,8 x altura (cm)] - (4,7 x idade)
• TMB homem = 66,5 + [13,8 x peso (kg)] + [5 x altura (cm)] - (6,8 x idade)
Salienta-se que todos estes parâmetros são objetivos, pelo que os valores seriam automaticamente preenchidos pelo sistema informático, integrando a informação disponível noutras secções do SClínico®, como a ficha individual ou os registos de enfermagem no separador «vigilâncias» (Figura 1).
Quanto ao nível de atividade física, de acordo o método de Harris-Benedict, são consideradas as seguintes categorias, cada qual correspondendo a um fator de atividade:
• Sedentário = 1,2;
• Exercício físico leve ou prática desportiva de 1 a 2 dias por semana = 1,375;
• Exercício físico moderado ou prática desportiva de 3 a 5 dias/semana = 1,550;
• Exercício físico intenso ou prática desportiva de 6 a 7 dias/semana = 1,725.15
As categorias apresentadas refletem níveis variados de atividade física registados ao longo do período de uma semana. (15 Para responder a esta questão, o MF conversaria com o utente e, de acordo com a informação obtida, selecionaria a opção mais pertinente para cada caso. Apesar de passíveis de alguma subjetividade na interpretação, a apresentação dos fatores de atividade no questionário poderia ser complementada com uma legenda mais pormenorizada ao passar o cursor em cada uma das opções, apoiando o MF na escolha do nível mais adequado à realidade de cada utente.
A segunda parte da ferramenta teria como objetivo o cálculo do aporte calórico diário estimado do utente. Uma das ferramentas mais utilizadas na colheita de informação detalhada sobre o consumo de alimentos e bebidas é o diário de 24 horas (D24h). (16 Este método consiste na definição e quantificação de todos os alimentos e bebidas ingeridas no período anterior à aplicação do questionário, que podem ser as 24 horas precedentes ou, geralmente, o dia anterior. (16 Assim, estariam disponíveis para preenchimento seis campos correspondentes ao pequeno-almoço, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde, jantar e ceia (Figura 2). O objetivo seria o MF efetuar o preenchimento, selecionando até seis dos alimentos habitualmente consumidos pelo utente em cada refeição, a partir de uma lista pré-definida e à qual estaria subjacente uma contagem de calorias. Essa quantificação seria concretizada com recurso à base de dados da Tabela da Composição de Alimentos, do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), uma referência nacional para consulta da composição dos alimentos mais consumidos em Portugal, reunindo informação atualizada e relativa a múltiplas características (como o valor energético, composição em macro e micronutrientes, teor em sal, entre outros) presentes em mais de um milhar de alimentos diferentes, considerando aspetos como as porções e a forma de preparação (alimentos crus, cozinhados e processados). (17 O resultado do preenchimento dos campos seria apresentado na secção inferior da ferramenta, como «aporte dietético (kcal)» (Figura 2).
Após aplicação do questionário, pela diferença entre as «necessidades (kcal)» e o «aporte dietético (kcal)» obter-se-ia automaticamente o balanço diário, que estaria em destaque na ferramenta proposta. Conforme os consumos do utente, este balanço poderá ser positivo (excesso de aporte calórico para as necessidades, com destaque a vermelho), nulo ou negativo (aporte inferior às necessidades diárias, representado a verde).
O objetivo da ferramenta seria proporcionar, após preenchimento, uma oportunidade para o MF conversar com o utente sobre o resultado obtido, sob a forma de intervenção breve, a qual poderia complementar o modelo de abordagem proposto pelas entidades competentes. (12 Mais ainda, durante o registo do diário alimentar, o MF poderia identificar alguns erros alimentares praticados pelo utente, sugerindo-lhe alternativas e desmistificando ideias pré-concebidas que fossem identificadas neste processo.
De forma complementar, sugere-se a criação do botão «folhetos», na parte superior da ferramenta, a partir do qual seria possível disponibilizar prospetos informativos sobre nutrição (através de impressão ou envio por correio eletrónico), para auxiliar o utente a modificar o seu estilo de vida (Figura 3). Os folhetos disponibilizados seriam provenientes de fontes oficiais, nomeadamente do PNPAS, e permitiriam sustentar a informação fornecida durante a intervenção breve pelo MF, assim como contornar a limitação do tempo disponível para a aplicação desta ferramenta em consulta. (18 De forma a monitorizar a evolução dos hábitos alimentares do utente ao longo do tempo, a ferramenta daria ainda a possibilidade de acesso a registos de avaliações anteriores, que poderiam ser recuperados com recurso ao separador «histórico» (Figura 2), à semelhança de outros recursos disponíveis no SClínico®.8
Discussão e conclusão
Os CSP são um importante pilar do sistema de saúde português. A acessibilidade, a continuidade de cuidados e a abordagem holística são algumas das características e competências da especialidade de medicina geral e familiar.
A evidência científica disponível sugere que os modelos de intervenção breve que integram a atividade assistencial programada dos CSP constituem ferramentas de intervenção custo-efetivas. (19 Nessa linha foi publicado, em 2021, um modelo de aconselhamento breve para a alimentação saudável que pretendeu uniformizar procedimentos relativos à abordagem inicial por parte do MF, com duração inferior a dez minutos. (12 Baseando-se nos modelos de intervenção motivacional, o documento tem em consideração as dificuldades inerentes à mudança do comportamento alimentar, assentando no pressuposto de que todo e qualquer contacto com o utente no âmbito dos CSP deve ser considerado como uma oportunidade para a promoção da alimentação saudável. (12
Esta abordagem não exclui nem substitui a necessária intervenção por profissionais de saúde especializados em nutrição, cuja atividade está prevista nos CSP. (12,20 Contudo, o número total de nutricionistas a exercer no Serviço Nacional de Saúde é manifestamente inferior às necessidades estimadas para a população portuguesa, o que se afigura como importante limitação aos objetivos do PNPAS. (12,20 Mais ainda, em termos de dados disponíveis como ponto de partida para a intervenção breve, o MF dispõe apenas do registo do peso e do IMC do utente no SClínico®, não estando previstos campos para registo de informação relacionada com os hábitos alimentares, como a carga de calorias consumida, a qual é particularmente informativa. (8,12
Perante esta realidade, os autores sentiram-se motivados para o desenvolvimento de uma ferramenta de apoio à prática clínica para avaliação dos hábitos alimentares, complementar ao modelo de intervenção proposto pelas entidades competentes. (8,12 A maior disponibilidade de dados alcançada pela análise das respostas dadas ao questionário permitiria amplificar os tópicos suscetíveis de intervenção breve pelo MF, a que idealmente se seguiria o estabelecimento de um plano individual de cuidados para as consultas subsequentes. (12 A disponibilização de folhetos de educação para a saúde aos utentes complementaria esta abordagem, tendo em conta a limitação da duração da consulta nos CSP. (18
Os autores reconhecem que o MF está atualmente sobrecarregado com várias tarefas clínicas e burocráticas, pelo que o tempo disponível para consulta poderá efetivamente constituir o principal obstáculo à utilização desta ferramenta.18 Consideram ainda que alguns profissionais de saúde podem não se sentir motivados para a temática da alimentação e, dessa forma, não dar uso a um recurso deste tipo na prática clínica. Apesar de ter sido desenvolvida para ser intuitiva, a sua implementação requer um processo de aprendizagem, o que também pode constituir um entrave. Em todo o caso, os autores consideram que este tipo de recurso seria uma mais-valia, não identificando malefícios no seu desenvolvimento. Salienta-se ainda que, antes de ser integrada no SClínico®, a ferramenta proposta beneficiaria de validação e verificação de exequibilidade através da realização de um estudo piloto.
Do ponto de vista do utente, a aplicação do questionário sob a forma de D24h facilita a recordação, uma vez que pode utilizar vários parâmetros como referência, tais como a hora a que acordou ou a que se deitou e a rotina do trabalho. (16 Por outro lado, apresenta como desvantagens o facto de depender da memória do entrevistado, o inconveniente dos consumos do dia anterior poderem ter sido atípicos, a possibilidade de omissões inconscientes e o facto de um único recordatório não estimar a dieta habitual. (16 Não obstante, é um questionário de rápida aplicação que pode ser utilizado em qualquer faixa etária, através de inquérito ao próprio utente (a partir dos doze anos) ou ao cuidador (na infância ou em situações de dependência), apresentando baixo custo. (16
Em suma, os autores acreditam que esta ferramenta permitiria motivar e melhorar o aconselhamento breve do MF na área da nutrição, em linha com os objetivos do PNPAS. (12 A intervenção precoce ao nível dos CSP pode contribuir para a diminuição da progressão da obesidade, para o melhor controlo e tratamento após a sua instalação, para um menor risco de complicações associadas e, consequentemente, para uma menor necessidade de referenciação e utilização de cuidados secundários, a nível hospitalar. (12,19 O modelo de intervenção breve para a modificação dos estilos de vida deve ser implementado em paralelo com a definição estratégica de políticas públicas, promoção de ações na população e divulgação de orientações precisas que promovam a literacia em saúde a nível nacional, nomeadamente no que diz respeito à nutrição e alimentação.