Introdução
A consulta aberta é definida como um período de consulta com marcação presencial ou telefónica no próprio dia. 1 Esta consulta não programada existe para resolver situações de doença aguda ou problemas percecionados pelos utentes como agudos. Idealmente o doente é atendido pelo respetivo médico de família. Nas situações de ausência de profissionais, os cuidados a prestar aos utentes são assegurados, na medida necessária e suficiente, para que não se prejudique a situação de doença aguda em que se encontra, através de um sistema de intersubstituição. 2-3
A utilização inadequada da consulta aberta é um problema recorrente a nível nacional. Assiste-se a solicitações para consulta nos períodos de consulta aberta e consulta aberta em sistema de intersubstituição que não correspondem a doença aguda, o que gera uma incapacidade de resposta adequada aos utentes. 4 Estudos prévios têm demonstrado uma grande prevalência de motivos de consulta correspondendo a atividades administrativas, como a emissão de certificados de incapacidade temporária para o trabalho (CIT), atividades de avaliação do estado de saúde, pedidos de avaliação de resultados de meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT) ou para mostrar cartas de outros profissionais de saúde. 5-6 Estas atividades estão fora do âmbito daquilo que devem ser os motivos da consulta aberta, devendo antes ser incluídas no âmbito das consultas programadas. Este problema tem vindo a ser identificado também na Unidade de Saúde Familiar (USF) Horizonte, onde a proporção de consultas médicas realizadas no dia do agendamento se encontra acima do máximo aceitável. 7
Durante os períodos de estado de alerta, estado de calamidade e estado de emergência associados à pandemia por COVID-19 houve uma reformulação quase total da atividade assistencial nos cuidados de saúde primários (CSP). Pela restrição no acesso, limitações de deslocação impostas pelas autoridades e medo inerentes à situação poderá ter havido uma redução na utilização da consulta aberta nas suas novas vertentes - área dedicada ao COVID (ADC), posteriormente renomeada área dedicada a doentes respiratórios (ADR), ou não-ADC - e, possivelmente, uma melhor adequação dos motivos de recorrência à mesma.
Numa altura em que foi necessário limitar o contacto presencial com os utentes, para segurança dos profissionais e dos próprios utentes, e reforçar a correta utilização dos recursos, uma vez que a disponibilidade de consultas presenciais era inferior à habitual, entendeu-se que seria pertinente conhecer o impacto da pandemia por COVID-19 na utilização da consulta aberta nos CSP, mais especificamente na USF Horizonte, como ponto de partida para uma eventual análise dos problemas e procura de soluções para o mesmo. Procurou-se para isso realizar uma caracterização dos utentes utilizadores da consulta aberta a nível sociodemográfico (idade, sexo, escolaridade, situação laboral) e uma caracterização da utilização da consulta aberta quanto ao número médio de consultas realizadas diariamente e as patologias/motivos mais frequentemente associados numa amostra de população da área de Matosinhos.
Métodos
Tipo de estudo e amostra
Foi realizado um estudo observacional retrospetivo, descritivo com componente analítica, no qual foram avaliados os registos dos utentes inscritos na USF Horizonte - Unidade Local de Saúde de Matosinhos (ULSM), que recorreram à consulta aberta/consulta de intersubstituição entre 01/04/2019 e 30/04/2019, à consulta ADC/não-ADC entre 01/04/2020 e 30/04/2020 e à consulta ADR/consulta de intersubstituição entre 01/04/2021 e 30/04/2021. Foram excluídos os utentes esporádicos, não inscritos na USF, uma vez que se considerou que a sua inclusão poderia ser fonte de viés, nomeadamente por a consulta aberta ser, nestes casos, a única forma de acesso destes utentes a um médico de família na sua proximidade e também por não terem contacto prévio com os profissionais de saúde da unidade que pudessem esclarecer quanto aos corretos motivos de utilização deste tipo de consulta.
Variáveis
Foram recolhidos dados relativos à caracterização sociodemográfica - idade, sexo, habilitações, situação profissional, isenção de taxas moderadoras - e à situação clínica - código da Classificação Internacional de Cuidados de Saúde Primários (ICPC-2) atribuído no registo correspondente à consulta em questão. O motivo de consulta foi obtido a partir da classificação no parâmetro «S» do SOAP sempre que estava codificada uma queixa por parte do utente, sendo que se utilizou a codificação em «A» sempre que existia um diagnóstico bem definido associado à consulta ou na ausência de codificação no campo «S». Todos os dados recolhidos foram obtidos no processo clínico eletrónico do doente.
Foi posteriormente feita uma classificação pelos investigadores quanto à adequação ou não adequação do motivo para utilização da consulta aberta. Os critérios usados para esta classificação basearam-se no tempo de evolução das queixas (sinais e sintomas de início ou com agravamento inferior ou superior a quatro semanas) 8 e também no motivo em si, considerando-se não adequados motivos relacionados com relatórios médicos, exames complementares de diagnóstico, receituário médico, renovação de atestados de incapacidade temporária ou quaisquer outros motivos não relacionados com sinais ou sintomas de doença aguda. Nos casos em que o motivo foi considerado não adequado, este foi categorizado segundo as seguintes classes: não urgente (queixa sem gravidade clínica que justifique avaliação médica urgente), não agudo (queixa com duração superior a quatro semanas), consulta de rotina (abordagem de doenças crónicas sem contexto de descompensação aguda), relatório, MCDT, CIT, medicação, atestado de carta de condução e prescrição de medicina física e de reabilitação ou terapia da fala.
Análise estatística
Os dados recolhidos foram registados num ficheiro informático de Microsoft Office Excel® 2019 e convertidos para o IBM® Statistical Package for the Social Sciences (SPSS)® Statistics v. 26, 2018, onde foi realizada a análise estatística.
As variáveis sociodemográficas foram submetidas a análise descritiva. Os resultados foram apresentados em tabelas de frequência. Nas variáveis quantitativas contínuas foram calculados o mínimo, máximo, média, mediana (intervalo interquartil) e moda. As comparações temporais das variáveis sociodemográficas e clínicas, bem como a análise inferencial da adequação da consulta, foram realizadas com recurso aos testes Qui-quadrado e exato de Fisher para os dados qualitativos e ao teste de Mann-Whitney para dados quantitativos. Quando existiam dados omissos, a análise foi realizada apenas com os dados válidos e o tamanho amostral considerado foi descrito. Foi assumida significância estatística para valores de p inferior a 0,05.
Resultados
Descrição dos tipos de consulta
Na USF Horizonte, no período em estudo, foram realizadas 1.404 consultas abertas, das quais 355 em abril/2019, 393 em abril/2020 e 656 em abril/2021 (Tabela 1). Estes valores correspondem a uma média de 17,8 consultas abertas por dia no período pré-pandemia, 18,7 consultas durante o primeiro estado de emergência pela pandemia COVID-19 (78% das quais realizadas em contexto não-ADC e 21% em contexto ADC) e 31,2 consultas um ano após o início da pandemia COVID-19 (92% na USF Horizonte e 8% no ADR).
Além das consultas abertas já descritas, verificou-se, em abril/2020, uma diminuição muito marcada do número de consultas programadas realizadas em formato presencial na USF Horizonte (117 vs. 1.373 no período correspondente do ano anterior). No ano de 2021, apesar de ter havido um aumento desse número, os valores não atingiram ainda os números pré-pandemia (Tabela 2).
Caracterização sociodemográfica
Não se observaram diferenças estatisticamente significativas a nível sociodemográfico entre os vários períodos analisados. Em todos registou-se um predomínio de utentes do sexo feminino, próximo de dois terços da amostra. As idades médias variaram entre 45,6 e 51,2 anos. A situação profissional foi semelhante nos três períodos, com valores próximos de metade em situação ativa ou estudantes e a outra metade não ativa ou reformada. As habilitações também não foram significativamente diferentes, sendo em todos os períodos mais prevalente a escolaridade até à 4.a classe, seguida da escolaridade até ao 9.o ano, ainda que nesta variável os desconhecidos fossem significativos (37,7-47,9%). No período pré-pandemia, em que ainda não vigorava a isenção global de taxas moderadoras nos CSP, quase metade dos utentes que recorreram à consulta tinham, à data, isenção de taxas moderadoras.
Caracterização dos motivos de consulta
Em período pré-pandemia verificou-se uma predominância de motivos de consulta do sistema músculo-esquelético e do âmbito «geral e inespecífico», seguidos do aparelho respiratório, aparelho digestivo, psicológico, aparelho circulatório e pele. Todos os restantes capítulos do ICPC-2 tiveram uma representação inferior a 5% do global de motivos (Figura 1).
Durante o primeiro estado de emergência pela pandemia COVID-19 registou-se um predomínio de motivos de consulta por queixas do sistema músculo-esquelético e aparelho respiratório, seguidas do aparelho digestivo, «geral e inespecífico», aparelho urinário, pele, ouvidos e aparelho circulatório. Todos os restantes capítulos do ICPC-2 tiveram uma representação inferior a 5% do total de motivos. Face ao ano anterior constata-se um aumento do peso relativo das queixas do sistema respiratório e do ouvido e uma diminuição do peso do âmbito «geral e inespecífico» e das queixas psicológicas.
Um ano após o início da pandemia COVID-19 prevaleceram as consultas por queixas do sistema músculo-esquelético, seguidas do âmbito «geral e inespecífico», aparelho digestivo, aparelho respiratório, pele, aparelho circulatório e aparelho urinário. Todos os restantes capítulos do ICPC-2 tiveram uma representação inferior a 5%. Face ao ano anterior verificou-se um aumento do peso relativo das queixas do âmbito «geral e inespecífico» e uma diminuição do peso das queixas do sistema respiratório.
Caracterização da adequação dos motivos de consulta
Em período pré-pandemia verificou-se que 46,5% das consultas abertas eram por motivos considerados não adequados. Durante o primeiro estado de emergência pela pandemia COVID-19 houve uma redução drástica desse número, com apenas 18,8% das consultas por motivo considerado não adequado. Um ano após o início da pandemia COVID-19, o valor aumentou para 30,5%, mas não chegou a atingir os valores prévios à pandemia. O período temporal e a adequabilidade dos motivos de consulta apresentaram uma relação estatisticamente significativa (p<0,001).
Dentro dos motivos de não adequabilidade da consulta, nos três períodos analisados os motivos mais frequentes foram semelhantes - queixas clínicas não agudas, visualização de resultados de MCDT e renovação/pedido de CIT -, mas com pesos relativos diferentes, com significância estatística (p<0,001). Em abril/2019 predominaram os pedidos de consulta aberta para visualização de resultados de MCDT, enquanto em 2020 e 2021 predominaram os pedidos por queixas clínicas não agudas (Figura 2).
A utilização da consulta aberta para realização de consulta de rotina (abordagem de doenças crónicas sem contexto de descompensação aguda) foi de 12,7% em 2019, tendo esse valor reduzido drasticamente para 2,7% em 2020, mas subido novamente para valores próximos aos pré-pandemia em 2021 (11,0%).
Análise comparativa da adequabilidade das consultas
No ano 2020 registou-se uma relação estatisticamente significativa entre o sexo e a adequabilidade de recorrência à consulta aberta, sendo esta mais frequente no sexo feminino. Não houve relações significativas das restantes variáveis sociodemográficas com a adequabilidade do motivo de consulta nem em nenhum dos outros anos analisados (Tabela 3).
Discussão
Este estudo teve como principal objetivo avaliar o impacto da pandemia COVID-19 na procura da consulta aberta da USF Horizonte e, através dos dados obtidos, procurar soluções para melhorar o seu uso e redirecionar este recurso para quem de facto beneficia dele.
Caracterização sociodemográfica
A população de utilizadores da consulta aberta neste estudo é semelhante à descrita em estudos prévios, havendo uma prevalência do sexo feminino próxima de dois terços (65,6% vs. 62,7%5vs. 62,3%6) e idade média próxima dos 50 anos; 5 enquadra-se no envelhecimento da população portuguesa, também do concelho de Matosinhos, no aumento da incidência de problemas de saúde nas faixas etárias mais avançadas e também nas limitações de acesso inerentes aos extremos da idade. Também a situação profissional foi semelhante aos estudos prévios, com cerca de metade dos utentes em situação ativa ou estudantes e a outra metade reformados ou desempregados. 5-6 Semelhante ao observado numa USF do Porto Ocidental, a maioria dos utentes tinham até quatro anos de escolaridade, seguido da escolaridade até ao 9.o ano. 5
No período pré-pandemia, em que ainda não vigorava a isenção global de taxas moderadoras nos CSP, quase metade dos utentes que recorreram à consulta tinha, à data, isenção destas taxas. Este valor contrasta com o observado noutros estudos prévios, em que mais de metade dos utentes utilizadores tinha isenção das taxas moderadoras (46,5% vs. 58,7%5vs. 57,9%6).
Acessibilidade à consulta
Segundo a revisão sistemática de Moynihan e colaboradores, 9 alguns estudos apontam para uma redução da utilização dos serviços de saúde na pandemia COVID-19. No entanto, na USF Horizonte verificou-se um aumento de consultas abertas realizadas comparativamente com o ano anterior; pode explicar-se pelo facto de, como apontado por Mann e colaboradores, 10 a redução dos serviços de saúde ter ocorrido maioritariamente nos locais mais afetados pela pandemia. As urgências hospitalares com resposta reduzida e o medo de recorrer ao hospital, onde haveria uma maior probabilidade de contacto com pessoas infetadas, poderá ter levado a uma maior procura dos CSP para resolução de situações de doença aguda. Sendo a isenção de taxas moderadoras apontada como um fator facilitador para o acesso aos CSP, a isenção global de taxas moderadoras nos CSP pode também justificar, pelo menos em parte, o aumento progressivo de procura da consulta aberta, de 2019 para 2020 e, especialmente, de 2020 para 2021.
Motivos de consulta
Ao contrário do estudo realizado em 2014 numa USF do Porto Ocidental, em que predominaram motivos de consulta do aparelho respiratório, seguidas do aparelho psicológico e só depois pelo sistema músculo-esquelético, 5 na USF Horizonte, nos três períodos analisados, predominaram os motivos do sistema músculo-esquelético, tendo havido no período do primeiro estado de emergência pela pandemia COVID-19 um aumento muito significativo das queixas respiratórias, passando a ocupar o segundo lugar em termos de motivos mais prevalentes.
Importa realçar que, face ao ano de 2019, houve um aumento do peso relativo das queixas do sistema respiratório e do ouvido num período de pandemia por uma infeção respiratória. As próprias condições inerentes à fase inicial de pandemia, como a necessidade de declaração médica para isolamento profilático (considerado um motivo inadequado de utilização da consulta aberta por ser um procedimento burocrático que poderia ser resolvido nas outras modalidades de consulta disponíveis, nomeadamente consulta programada ou consulta telefónica) e a necessidade de avaliação médica para prescrição de testes para a deteção da infeção por SARS-CoV-2 (considerado um motivo adequado de utilização da consulta aberta por corresponder à avaliação clínica de uma situação aguda, mas não esquecendo que muitas destas situações seriam de queixas ligeiras que, noutro contexto, não teriam motivado a avaliação médica) poderão ter levado a uma afluência aumentada pelas queixas respiratórias. A favor desta justificação considera-se o facto de o aumento de consultas por motivos respiratórios se ter verificado apenas em 2020, altura em que essa exigência de avaliação médica estava em vigor, e tendo havido um decréscimo em 2021, quando já não se aplicava essa exigência, principalmente considerando que o número de novas infeções por SARS-CoV-2 em Portugal foi semelhante entre abril/2020 e abril/2021 (16.884 vs. 14.771). 11 As queixas do foro psicológico na USF Horizonte foram sempre pouco representativas, comparativamente a estudos prévios noutros locais, 5 o que poderá refletir diferenças na população em questão, quer em termos de morbilidade quer em termos de valorização das queixas psicológicas.
Previamente à realização do estudo era antecipado um aumento relativo das queixas do aparelho psicológico, na sequência do impacto do risco iminente para a saúde, do desconhecimento da situação em vigor e das consequências do isolamento prolongado. Não se verificou, podendo advir de uma melhor capacidade da população para lidar com as adversidades face ao esperado ou possivelmente à existência de estigma e receio dos utentes em procurarem o médico por queixas psicológicas - vergonha, medo de não reconhecimento, medo de não valorização, entre outros.
Adequação dos motivos de consulta
O uso inadequado dos cuidados de saúde, na sua generalidade, tem múltiplas causas que vão desde a atuação dos profissionais de saúde até às crenças e expectativas dos utentes. A consulta aberta não foge a essa regra e, como objetivado no presente estudo, em período pré-pandemia quase metade destas consultas ocorreu por motivos considerados não adequados. Este valor foi muito superior ao observado noutra USF de Matosinhos em 2015-2016, em que apenas 10,7% das consultas foram por motivos considerados inadequados. 6
Dos resultados obtidos em 2020, no início da pandemia COVID-19, facilmente se observa que a percentagem de consultas abertas com motivos não adequados foi muito inferior ao ano anterior - pré-pandemia. Uma parte desta redução ocorreu à custa dos motivos classificados como «não urgentes» (redução de 11% para 5%), ou seja, por queixas sem gravidade clínica que justificassem avaliação médica urgente. Scaramuzza e colaboradores12 observaram que, no Norte de Itália, onde a pandemia teve um peso preponderante, se registou uma diminuição das apresentações ligeiras das diversas patologias pediátricas, sugerindo que as patologias não relevantes (definidas pelos autores como triagem verde ou branca) que, previamente à pandemia, eram muito frequentes, deixaram de o ser, corroborando o observado pelos investigadores.
Durante a pandemia, a maior preocupação face a sintomas respiratórios e o medo de estar infetado podem ter levado a uma maior procura da consulta aberta por estes motivos, que justificariam uma avaliação clínica por uma situação aguda e potencialmente de risco e, como tal, adequada, contribuindo para a maior adequação dos motivos de consulta.
Dada a menor disponibilidade de consultas programadas poderia ser esperado um aumento da procura da consulta aberta para realização de consulta de rotina nesse período. Contudo, a utilização da consulta aberta para realização de consulta de rotina foi muito menor em 2020 face a 2019 (2,7% comparativamente com 12,7%). Nesta altura, havia mais receio em sair de casa e em deslocar-se à USF, o que poderá ter sido um travão ao uso indevido da consulta aberta. Além disso, na USF Horizonte, no início da pandemia, vigorou uma triagem telefónica prévia à consulta aberta presencial, o que deverá ter condicionado uma utilização mais racional da mesma. A telemedicina e as consultas por telefone, onde foram abordadas situações não agudas, passaram a ser muito frequentes, podendo também contribuir para o facto de, durante aquele período, não se ter utilizado a consulta aberta para realizar consultas de rotina.
Um ano após o início da pandemia COVID-19, o número de consultas por motivos não adequados voltou a aumentar, ainda que não chegando a atingir os valores prévios à pandemia. Dentro destes, aumentou ainda a percentagem de consultas abertas utilizadas para realização de consulta de rotina, o que pode advir da progressiva diminuição do medo de infeção por SARS-CoV-2 com o evoluir da pandemia, associado à manutenção de alguma limitação no acesso à consulta, pelo que a população terá voltado a recorrer à consulta aberta como forma de chegar ao seu médico de família. Apesar de se ter registado, em abril/2021, um aumento na disponibilidade de consultas programadas face ao ano anterior (Tabela 2), nesta fase a acessibilidade não tinha ainda retomado os valores pré-pandemia, uma vez que permaneciam em vigor alterações nos horários de consulta médica, pela duração da consulta programada de trinta minutos (previamente à pandemia era de vinte minutos), bem como a inclusão de períodos de consulta telefónica que não existiam pré-pandemia.
Nos três anos avaliados, os principais motivos não adequados de recorrência à consulta aberta foram as queixas clínicas não agudas, a visualização de resultados de MCDT e a renovação/pedido de CIT, motivos estes semelhantes aos observados em estudos prévios. 6
Estes resultados apontam para a necessidade de empenho dos profissionais na educação para a saúde dos utentes sobre os motivos que devem realmente levá-los a recorrer a uma consulta aberta. Tendo sido as queixas do foro músculo-esquelético as mais frequentes, e tratando-se de um conjunto de patologias que levam a maior requisição de MCDT e com recorrência da sintomatologia, torna-se imperativo que os médicos agendem consultas programadas para avaliação dos resultados dos MCDT solicitados e para um acompanhamento mais frequente da evolução da doença, bem como o agendamento de consultas de reavaliação da necessidade de CIT, sobrecarregando menos a consulta aberta com estas questões.
Limitações
Uma das principais dificuldades na realização deste estudo prendeu-se com os registos clínicos inadequados ou incompletos. Em primeiro lugar, na análise das características sociodemográficas dos utentes verificaram-se diversas dificuldades, nomeadamente relativas à codificação da situação profissional - muitas vezes incoerente com os registos por extenso em consultas recentes e em que, por exemplo, nas crianças, era por vezes codificada como «desconhecido» e noutras como «não aplicável», gerando valores incoerentes na análise estatística. Em adição, no registo SOAP da consulta é fundamental a correta codificação e preenchimento dos registos clínicos, quer para fins de investigação quer para o próprio acompanhamento do utente, uma vez que muitas vezes os registos terão de ser consultados por outros médicos e, na ausência de registos claros, há informação clínica perdida. Apesar de se terem verificado valores elevados de registos não codificados ou sem descrição das queixas (4,2% das consultas de 2019, 8,1% das consultas de 2020 e 4,0% das consultas de 2021), estes valores foram inferiores aos observados previamente no Porto Ocidental, com 22,4% das consultas sem registo. 5 A qualidade dos registos clínicos é preponderante para uma correta avaliação do motivo da consulta e os profissionais devem ser incentivados a uma melhor codificação e descrição das queixas.
Apesar dos dados obtidos não poderem ser diretamente extrapolados para outras unidades de saúde que servem diferentes populações com diferentes características, alertar para esta problemática pode incentivar a realização de novos estudos em outras unidades, que permitam melhorar a sua acessibilidade e, consequentemente, a prestação de cuidados aos seus utentes.
Conclusão
A pandemia COVID-19 associou-se a um aumento da utilização da consulta aberta, mas também a uma maior adequação dos motivos da sua utilização. É fundamental investir numa adequada educação para a saúde dos utentes quanto aos motivos corretos para recurso à consulta aberta e numa melhor organização do tempo dos profissionais, com vista a um melhor acompanhamento das patologias subagudas e de caráter crónico, mas que frequentemente apresentam agudizações. Ao assegurar uma adequada acessibilidade às restantes modalidades de consulta poder-se-á reduzir o recurso indevido à consulta aberta e rentabilizar os recursos disponíveis nas unidades de saúde.
Este estudo contribuiu para a definição de alguns dos principais motivos que levam os utentes a recorrer à consulta aberta da USF Horizonte; no entanto, pode não ser possível extrapolar para as populações de outras unidades de saúde. Neste sentido, são importantes mais estudos nesta área com vista a arranjar estratégias comuns às várias unidades e, quem sabe?, à realização de atividades conjuntas de educação para a saúde entre agrupamentos de centros de saúde.
Contributo dos autores
Conceptualização, ATF; metodologia, ATF e AFS; software, ATF; validação, ATF e AFS; análise formal, ATF; investigação, ATF e AFS; recursos, ATF e AFS; curadoria de dados, ATF e AFS; redação do draft original, ATF e AFS; redação, revisão e validação do texto final, ATF e AFS; supervisão, ATF e AFS. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.