Introdução
A dislipidemia é um dos grandes fatores de risco para o desenvolvimento de aterosclerose. Esta, por sua vez, é o principal mecanismo subjacente ao aparecimento das doenças cardiovasculares, que são, segundo dados relativos ao ano 2019, a principal causa de morte em Portugal.1
A abordagem inicial da dislipidemia passa pelas modificações no estilo de vida, tanto a nível de introdução de uma alimentação mais saudável como a nível da prática de exercício físico. A otimização da terapêutica hipolipemiante é conseguida com o uso de estatinas e ezetimiba, associadamente. Contudo, apesar de todas as medidas não farmacológicas e da terapêutica em doses máximas toleradas, alguns doentes não atingem os valores recomendados de colesterol-LDL (c-LDL).
Neste sentido, têm surgido novas opções terapêuticas, como é o caso dos inibidores da pró-proteína convertase subtilisina quexina tipo 9 (PCSK9). A PCSK9 é uma protease que se liga aos recetores de LDL existentes na membrana dos hepatócitos e que faz com que estes sejam degradados. 2 Os inibidores da PCSK9, por sua vez, ligam-se à PCSK9 e impedem que esta se ligue aos recetores do LDL. Desta forma, a quantidade de recetores LDL disponíveis na membrana do hepatócito aumenta e, consequentemente, os níveis de LDL circulante diminuem. 3 Estima-se que estas moléculas consigam uma redução dos valores do LDL na ordem dos 50 a 60%.4
Atualmente existem dois fármacos disponíveis, o alirocumab e o evolocumab, ambos de administração subcutânea, em intervalos de duas a quatro semanas, sendo que o efeito hipolipemiante deve ser avaliado ao fim de quatro semanas de tratamento e depois monitorizado semestralmente. O estado de equilíbrio das concentrações séricas mínimas é atingido às doze semanas. 4 Atendendo a que estes fármacos apresentam um custo muito elevado, a sua prescrição atualmente é exclusivamente de âmbito hospitalar e está reservada, resumidamente, para casos de prevenção secundária ou de prevenção primária em doentes com hipercolesterolemia familiar, sendo que podem também ser considerados nos doentes que apresentam um risco cardiovascular muito alto, que não têm hipercolesterolemia familiar, mas que não conseguem atingir os alvos de LDL. 5
Descrição do caso
Mulher de 66 anos, com antecedentes pessoais de diabetes mellitus tipo 2, hipertensão arterial, dislipidemia, hipotiroidismo, síndroma de apneia obstrutiva do sono ligeiro e perturbação de ansiedade. De antecedentes familiares de relevo apenas relatava que várias pessoas na família tinham dislipidemia.
Habitualmente estava medicada com rosuvastatina 20 mg, id; ezetimiba 10 mg, id; fenofibrato 267 mg, id; rabeprazol 20 mg, id; bisoprolol 5 mg, id; enalapril + lercanidipina 20 mg + 20 mg, id; glibenclamida 10 mg, id; metformina + dapaglifozina 1000 mg + 5 mg, bid; bromazepam 3 mg, id.
Ao exame objetivo apresentava excesso de peso (IMC 26,7 Kg/m2), pressão arterial de 135/79 mmHg, sem alterações à auscultação cardiopulmonar e sem quaisquer outras alterações de relevo no exame objetivo.
Analiticamente, como se pode verificar pela análise da Tabela 1, já desde, pelo menos, 2017 esta doente apresentava valores de colesterol total na ordem dos 300-400 mg/dL e de c-LDL de cerca de 200-250 mg/dL, estando medicada com uma estatina de alta potência e ezetimiba. Ao longo dos anos foram tentados diversos fármacos e associações diferentes, sempre sem uma melhoria significativa no perfil lipídico.
Face a estes valores elevados e à história familiar da utente foi colocada a hipótese de se tratar de uma hipercolesterolemia familiar e a doente foi referenciada para a consulta hospitalar de medicina interna com o objetivo de serem ponderadas as novas opções terapêuticas disponíveis, nomeadamente os inibidores da PCSK9.
Em agosto de 2021, a doente iniciou tratamento com evolocumab com administração quinzenal. Aquando da avaliação analítica, após quatro semanas de tratamento, verificou-se que o perfil lipídico da doente surgiu, pela primeira vez, com valores dentro do alvo. Como se pode observar na Tabela 2, o colesterol total baixou para 146 mg/dL e o c-LDL para 66 mg/dL, o que representa uma redução de cerca de 77% do valor c-LDL.
Atualmente a doente encontra-se a aguardar o resultado do teste genético confirmatório de hipercolesterolemia familiar.
Comentário
Para o diagnóstico de hipercolesterolemia familiar, em Portugal, é adotado o Dutch Clinic Network Criteria (DLCN), apresentado na Tabela 3. A partir da análise destes critérios é percetível que a doente se encontra, à data atual, enquadrada num nível de diagnóstico provável, pelo que carece do resultado do teste genético para a confirmação diagnóstica.
Paralelamente à melhoria do perfil lipídico verificou-se, nesta doente, uma descompensação da diabetes, com a subida do valor da hemoglobina glicada. Contudo, não há, até à data, evidência de que estes novos fármacos possam estar associados a este efeito. Acredita-se que, no caso da doente em questão, esta descompensação se deveu a uma falha na adesão terapêutica. Apesar de ainda relativamente recentes, estes novos fármacos têm mostrado uma redução adicional do risco de eventos cardiovasculares, com um bom perfil de segurança.
Um dos aspetos mais negativos destas novas terapêuticas é o seu custo elevado, pelo que a sua utilização na prática clínica deve ter em conta o seu custo‐efetividade. Neste sentido, deve ser dada prioridade à sua utilização nos doentes de maior risco cardiovascular e que mantêm valores elevados de colesterol‐LDL, apesar da terapêutica hipolipemiante otimizada.
O facto de serem fármacos de administração subcutânea, com uma semivida longa, permite uma administração a cada duas a quatro semanas, o que tem um efeito positivo na adesão terapêutica.
Como referido anteriormente, neste momento a prescrição destes fármacos está limitada aos cuidados de saúde secundários; contudo, a maioria dos doentes que poderão beneficiar destas opções terapêuticas são seguidos nos cuidados de saúde primários. Para além disso, o médico de família tem uma posição privilegiada a nível do conhecimento e seguimento das famílias, tornando-se mais fácil a deteção dos possíveis casos de doença familiar. Por estes motivos, é fundamental que o médico de família esteja atualizado sobre as novas opções terapêuticas para que possa estar alerta para identificar e referenciar todos os utentes que possam ter critério para iniciar este tipo de tratamento.