Introdução
A formação especializada em medicina geral e familiar (MGF) é fundamental para que os médicos internos de MGF adquiram as bases e conhecimentos para o seu futuro e se tornem especialistas de MGF. Em 1981 foram criados o Internato Complementar de Clínica Geral e o Colégio de Clínica Geral da Ordem dos Médicos. Desde então, o programa de formação específica em MGF tem evoluído muito, incluindo formações hospitalares, obrigatórias e opcionais, tendo passado de três para quatro anos em 2009.1 Durante esses quatro anos, os médicos internos procuram conhecer os utentes e famílias dos ficheiros dos seus orientadores, progredindo de um papel de observador para a realização de consultas com autonomia total - o interno passa, assim, a ser parte integrante da equipa de saúde familiar. Neste processo de aprendizagem é fundamental a participação dos utentes, dado que só assim os médicos internos conseguem atingir os objetivos da sua formação.
No entanto, colocam-se algumas questões: até que ponto é que os utentes estão informados sobre o internato médico e sentem que estão a receber os devidos cuidados de saúde quando a consulta é realizada por um médico interno comparativamente a consultas realizadas pelo seu médico de família?
De forma a responder a estas questões foi realizada uma pesquisa pela literatura médica, através de bases de dados como a PubMed® e o IndexRMP, tendo sido encontrados alguns estudos realizados em países como o Canadá,2-3 os Estados Unidos4 e Israel,5 que mostram que os doentes se encontram globalmente satisfeitos com a presença de médicos internos. Não foi encontrado nenhum trabalho que avaliasse esta temática em Portugal.
O objetivo do presente estudo foi a avaliação da perceção dos utentes da USF Santiago de Leiria sobre o papel dos médicos internos de MGF, nomeadamente ao nível dos conhecimentos sobre o internato médico e a opinião relativamente à importância da realização do internato na formação médica. Pretendeu-se também avaliar a confiança nos cuidados que recebem dos médicos internos.
Método
Foi realizado um estudo transversal, com uma amostra de conveniência dos utentes da USF Santiago de Leiria, com idade igual ou superior a 18 anos, que recorreram à unidade no mês de agosto de 2022, tanto em contexto de consulta programada como de consulta de doença aguda, através da aplicação de um questionário.
De forma a obter-se uma amostra mais representativa da população de utentes inscritos na USF (n=12.809) seria necessário um tamanho amostral mínimo de 374 utentes perante um intervalo de confiança de 95% e uma margem de erro de 5,0%. O cálculo do tamanho amostral foi obtido com recurso ao software Surveymonkey®.
A aplicação dos questionários procedeu-se da seguinte forma: num primeiro contacto, os utentes foram abordados pelos secretários clínicos da unidade no sentido de verificar o interesse e disponibilidade para participar neste trabalho. Após resposta afirmativa, foram entregues dois impressos de autopreenchimento, a saber:
O primeiro impresso incluía uma breve explicação sobre a formação pós-graduada dum médico interno até à sua especialização em MGF e os objetivos do trabalho, assim como a obtenção do consentimento informado [Anexo 1].
O segundo impresso consistia num questionário não validado, composto por quinze questões e divido em duas secções . Na primeira secção, quatro questões visavam obter a caracterização sociodemográfica dos utentes e duas questões pretendiam determinar se os utentes já tinham tido alguma consulta com um médico interno e se alguma vez lhes tinha sido explicado o que é o internato médico. A segunda secção, apenas destinada aos utentes que referiram já terem sido consultados por um médico interno, pretendeu avaliar a perceção dos utentes sobre o papel dos médicos internos de MGF através de questões, desenhadas pelos autores, com base em questionários aplicados noutros estudos, como Malcolm et al. e Nakkar et al., de resposta simples em escala do tipo Likert. As respostas incluíram cinco opções e variaram desde «Discordo totalmente» a «Concordo totalmente». Este questionário foi aplicado previamente a um grupo de dez utentes, não tendo sido encontradas dificuldades de compreensão relevantes.
Após o preenchimento do questionário foi confirmado pelos secretários clínicos a assinatura do consentimento informado e solicitada a deposição do segundo impresso numa caixa de respostas fechada, de forma a garantir o anonimato.
Posteriormente foi criada uma base de dados em Microsoft Excel® com posterior exportação para o software Statistical Package for Social Sciences (SPSS)® para a análise estatística descritiva.
O trabalho recebeu o parecer positivo da Comissão de Ética da ARS Centro.
Resultados
Foram recolhidos 405 questionários válidos (taxa de resposta de 3,2%). Relativamente às características demográficas da amostra, 67,7% foram do género feminino (Tabela 1) e idades compreendidas entre 18 e 88 anos, sendo a média de 47,3 anos e o desvio-padrão de 14,5 anos. A maioria (65,4%) era casada ou estava em união de facto (Tabela 2) e o nível de escolaridade mais representado na amostra (34,7%) foi dos respondentes com o 12.º ano de escolaridade, seguido dos licenciados (22%) e daqueles com o 9.º ano (20,3%) (Tabela 3).
Do total de respostas válidas, 87,7% (n=355) dos utentes referiram já terem tido uma consulta com um médico interno e 57,0% (n=231) referiram que já lhes tinha sido explicado previamente o que era o internato médico. A Tabela 4 evidencia as respostas dadas a cada pergunta da segunda secção do questionário.
Dos doentes que já tinham sido consultados por um médico interno, a maioria acreditava que o internato era importante para a formação dos médicos de família (95,0%) e que os internos eram uma mais-valia para a USF (93,8%). Quando questionados sobre se aceitavam que a consulta fosse realizada por um médico interno, 94,2% responderam afirmativamente. No entanto, quando inquiridos sobre se sentiam que tinham liberdade para recusar serem vistos por um médico interno apenas 70,1% responderam positivamente. Dos respondentes, 93,3% referiram sentir-se confortáveis para comunicar os seus problemas aos médicos internos, 97,5% achavam que os médicos internos tinham uma atitude profissional, 96,0% sentiam confiança nos cuidados que recebiam dos médicos internos e 95,4% dos utentes referiram seguir as recomendações dos médicos internos como se se tratasse de recomendações dos seus médicos de família.
Relativamente à afirmação: “Preferia ser visto pelo meu médico de família em vez de por um médico interno”, 74,2% dos inquiridos tenderam a concordar com a mesma.
Discussão
O presente estudo pretendeu avaliar a perceção dos utentes da USF Santiago de Leiria sobre o papel dos médicos internos de MGF.
Da análise dos dados obtidos conclui-se que a maioria dos utentes da unidade acredita que o internato é importante para a formação dos médicos de família, o que está de acordo com estudos realizados por outros grupos de investigação.3-5
Ainda assim, é de salientar que nunca foi explicado o que é o internato médico a uma parte significativa da população. Este estudo vem reforçar a importância do aumento da literacia dos utentes da USF nesta matéria, nomeadamente através da apresentação do conceito do internato médico. Tal poderá ser implementado na própria consulta, mediante explicação breve e objetiva aquando da apresentação do interno na consulta ou através de folhetos informativos e partilha de informação nas redes sociais da unidade.
Verificou-se ainda que 30% dos inquiridos referem não sentir liberdade para recusar ser visto por um médico interno. Esta constatação pode ser indicativa de um desconhecimento dos direitos e deveres do utente nos serviços de saúde. Por outro lado, pode refletir algum constrangimento ou medo de repercussão associado ao ato da recusa, mesmo entre os utentes que tenham conhecimento deste direito. A abordagem desta temática e sua clarificação, quer entre os utentes quer entre os profissionais de saúde, torna-se então num ponto fulcral desta discussão. De acordo com o artigo 2.º da Lei n.º 15/2014,6 “O utente dos serviços de saúde tem direito de escolha dos serviços e prestadores de cuidados de saúde, na medida dos recursos existentes”. No artigo 3.º da mesma Lei pode ser ainda lido que “O consentimento ou a recusa da prestação dos cuidados de saúde devem ser declarados de forma livre e esclarecida”. Assim, os autores do presente estudo consideram importante que os secretários clínicos ou o próprio prestador dos cuidados, neste caso o médico interno, veicule esta informação no ato da inscrição do utente ou da consulta, respetivamente, sempre que achar pertinente e que garanta ao utente que os seus cuidados de saúde não serão prejudicados caso pretenda optar pela recusa.
A USF Santiago é um local de formação de médicos internos desde que iniciou a sua atividade em 2007 e, por isso mesmo, grande parte dos utentes frequentadores da unidade tem contactado com médicos internos de forma continuada, podendo explicar o facto de a maioria dos participantes do estudo se sentir confortável a expor-lhes os seus problemas, assim como confiar nos cuidados por eles prestados.
Por outro lado, a preferência demonstrada pelos utentes em serem observados pelos seus médicos de família é expectável e até desejável, já que a MGF é uma especialidade em que a relação médico-doente e a continuidade de cuidados é um pilar fundamental.
Como limitações do estudo salienta-se o facto de ter sido aplicado um questionário não validado, desenhado pelos próprios autores, assim como o facto de não se conseguir garantir que o seu preenchimento por parte dos utentes não tenha tido apoio ou intervenção de terceiros.
O facto dos questionários terem sido entregues a utentes que se deslocaram presencialmente à USF Santiago pode ter levado a um viés de seleção, não sendo possível saber se os utentes se dirigiram à USF para consulta médica ou de enfermagem, programadas ou de doença aguda.
No futuro seria pertinente a realização de um estudo, incluindo metodologia qualitativa, dirigido aos utentes que recusem ser vistos por médicos internos, tentando perceber os motivos de recusa, de forma a serem criadas medidas que permitam uma maior aceitação destes.
Conclusão
Com esta investigação conseguiu-se concluir que a maioria dos utentes aceita que as suas consultas sejam realizadas por médicos internos de formação especializada e que sentem confiança nos cuidados por eles prestados. Apesar de haver ainda algum desconhecimento sobre o que é um médico interno, a maioria dos utentes acredita que o internato em MGF é importante para a formação dos futuros médicos de família.
Agradecimentos
Os autores gostariam de agradecer aos assistentes técnicos da USF Santiago pela sua disponibilidade na entrega dos questionários.
Contributo dos autores
Conceptualização, JPA, AMG, CSC, DMH, DV, JMC, LMMC, MS e MMS; metodologia, JPA, AMG, CSC, DMH, JMC, LMC e MMS; análise formal, JPA, AMG, CSC, DMH, DV, JMC e MMS; investigação, JPA, CSC e DV; curadoria de dados, JPA; redação do draft original, JPA; redação, revisão e validação do texto final, JPA, AMG, CSC, DMH, DV, JMC, LMMC, MS e MMS; supervisão, JPA.