Prezado Editor,
No artigo “A atuação do médico de família e os cuidados paliativos: o método ACERTAR”, publicado na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (RPMGF) a 7 de março de 2023, os autores propõem um método de atuação do médico de família (MF) em cuidados paliativos, de forma a estruturar a sua atuação durante uma visita domiciliária, com enfoque no método ACERTAR, acróstico que congrega os sete objetivos (e intervenções decorrentes) da prestação de cuidados domiciliários: Avaliar, Comunicar, Empoderar, Reduzir, Tratar, Antecipar e Referenciar. Entre as intervenções do plano avançado de cuidados, abrangidas no objetivo Antecipar, consta a “realização de Diretrizes Avançadas de Vontade, explicando a existência nacional do Testamento Vital”.1
Realçando que no passado dia 1 de julho se assinalaram nove anos de funcionamento do Registo Nacional do Testamento Vital - RENTEV, redige-se a presente Carta ao Editor, no seguimento do artigo anteriormente citado, com o objetivo de despertar e recordar a temática do Testamento Vital (TV), tão importante na vida de todos os cidadãos e, ao mesmo tempo, tão pouco conhecida ou tantas vezes esquecida, sendo apenas introduzida pela primeira vez pelo MF, ou outro profissional, em situações de fim de vida.
A Diretiva Antecipada de Vontade (DAV), também conhecida por TV, surgiu como uma ferramenta legal para o cidadão comunicar, de forma antecipada, livre, consciente e esclarecida, os cuidados de saúde que deseja, ou não, receber quando estiver incapaz de expressar a sua vontade, não estando o seu preenchimento restrito a casos de fins de vida ou cuidados paliativos, podendo ser realizado desde a maioridade e independentemente do estado de saúde à data do seu preenchimento (mediante ausência de anomalia psíquica impeditiva). 2-4 Considerando a longitudinalidade e proximidade do acompanhamento prestado ao utente e à sua família, as equipas de saúde familiares encontram-se numa posição privilegiada para abordar esta temática, não devendo aguardar por uma situação de fim de vida para o fazer. Para que tal se torne uma realidade urge a literacia em saúde neste âmbito.
Em Portugal existe uma fraca adesão ao preenchimento deste documento, inexistindo conclusões robustas sobre os motivos subjacentes.3 Desde a criação do RENTEV foram registados cerca de 53.000 TV, dos quais somente 65% se encontravam ativos em janeiro de 2023 (considerando que este documento necessita de uma revalidação a cada cinco anos).
A evidência científica tem confirmado os benefícios do TV para os utentes, os seus familiares e para os profissionais de saúde, contribuindo para maior satisfação e redução do sofrimento psicológico dos utentes e das suas famílias, prevenindo a distanásia. 5 Apesar da importância e dos benefícios do TV enquanto ferramenta legal é ainda pouco conhecida pela população em geral, mas também pelos profissionais de saúde, necessitando, por isso, de maior divulgação e discussão. 2 Um estudo constatou que menos de um em cada quatro profissionais de saúde portugueses conhecia as DAV, sendo que apenas cerca de 2% tinham uma DAV registada. 3
Assim, é notório que um maior investimento na formação médica, na criação de programas de capacitação dos profissionais de saúde e na promoção do envolvimento da família, promovendo decisões antecipadas facilitadas, se traduz num aumento dos registos de TV e da qualidade dos cuidados de saúde prestados. 4,6-7
A par da necessidade de maior formação de profissionais de saúde e dos cidadãos em geral sobre este tema importa também refletir sobre quais serão outras limitações ao aumento dos registos de DAV. Um estudo realizado na Bélgica demonstrou que, apesar de cerca de 66% dos médicos de família já terem elaborado até cinco DAV no ano anterior, a limitação do tempo em consulta foi reportada como principal barreira a esta tarefa. 8 No que toca aos utentes também existem fatores que influenciam a capacidade de se envolverem em discussões sobre o fim de vida e o planeamento de DAV com os profissionais de saúde, nomeadamente o seu grau de literacia, a sua agenda em consulta, a necessidade de tempo para definir as suas preferências, o grau de envolvimento familiar no processo e se o profissional de saúde tem a iniciativa de abordar o tema. 9
Neste contexto, importa destacar que o preenchimento do TV em crise ou em contexto de fim de vida poderá ser contraproducente para o doente, face à fragilidade em que se encontra. A sensibilização da população para a sua realização passa por um trabalho de educação para a saúde pela comunidade em geral por via dos meios de comunicação social, pela desmistificação dos assuntos sobre o fim de vida, por exemplo, no âmbito do ensino superior ou universitário, mas também pela formação dos profissionais, não só sobre o TV em si, mas em como abordar os assuntos do fim de vida com os seus utentes. Garantir o exercício deste direito aos nossos utentes, de forma precoce e consciente é fundamental.
Contributo dos autores
Conceptualização, JP, MG e RBL; metodologia, JP, MG e RBL; investigação, JP, MG, AMA, IG e RBL; redação do draft original, JP, MG, AMA, IG e RBL; redação, revisão e validação do texto final, JP, MG, AMA, IG e RBL; supervisão, JP, MG e RBL. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.