Introdução
A diabetes mellitus (DM) é uma das principais causas de morbimortalidade em todo o mundo, sendo a DM tipo 2 (DM2) o tipo mais comum, responsável por aproximadamente 90% de todos os casos.1 Em Portugal, segundo o estudo PREVADIAB, foi estimada uma prevalência da diabetes em 11,7% [10,8;12,6]% em indivíduos com idades entre os 20 e os 79 anos. 2
A American Diabetes Association (ADA) lançou novas diretrizes em 2023 para o tratamento da DM2, recomendando a introdução de inibidores do co-transportador de sódio-glicose 2 (iSGLT2), com ou sem associação a metformina, como terapêutica inicial a indivíduos com doença cardiovascular (DCV) aterosclerótica ou com alto risco de desenvolver DCV aterosclerótica, insuficiência cardíaca e/ou doença renal crónica. 3 São fármacos cada vez mais utilizados no tratamento da DM2 por apresentarem benefícios em doentes com comorbilidades, como doença renal crónica e insuficiência cardíaca. 4-7
Os iSGLT2 foram associados a infeções do trato genito-urinário8 por inibirem a reabsorção de glicose no túbulo proximal, 9-10 aumentando a sua disponibilidade no trato urinário e potenciando o crescimento bacteriano. 8-11 Existe evidência que suporta a relação entre a terapêutica com iSGLT2 e o aumento do risco de infeções genitais. 8-11 Em relação à sua associação com infeções do trato urinário (ITU) existem algumas incongruências na literatura. 12-13
Os cuidados de saúde primários (CSP) devem ser responsáveis pelo seguimento, monitorização e gestão terapêutica dos utentes com DM2, 14 destacando a existência de projetos ao nível dos CSP com o objetivo de clarificar a associação entre os iSGLT2 e as infeções genito-urinárias. Não foi identificado na literatura nenhum outro estudo Português, observacional ou experimental, ao nível dos CSP ou hospitalar, que se debruçasse sobre esta relação.
Pretendeu-se com este estudo avaliar se os utentes medicados com iSGLT2 estão em risco aumentado de terem ITU e infeções genitais, numa amostra de doentes com DM2 seguidos numa Unidade de Saúde e Familiar (USF), em comparação com utentes sob terapêutica com outros grupos farmacológicos de antidiabéticos, que não os iSGLT2.
Métodos
Trata-se de um estudo observacional analítico, caso-controlo, realizado em 2022 numa USF do Norte de Portugal localizada num centro urbano. A população do estudo correspondeu aos utentes inscritos na USF com o diagnóstico de DM (ICPC-2 - T89 e T90) na lista de problemas.
A amostra dos casos incluiu utentes medicados com iSGLT2 iniciado antes de janeiro de 2021. A amostra dos controlos reuniu os utentes não medicados com iSGLT2 antes de janeiro de 2021. Foram excluídos em ambos os grupos utentes com história de infeção do trato urinário de repetição (mais de três infeções do trato urinário no ano 2020), DM tipo 1 e registo de introdução de iSGLT2 na terapêutica durante o ano 2021.
Foram estudadas as seguintes variáveis:
Sexo, idade, índice de massa corporal (IMC), HbA1c(%);
Tipo de terapêutica farmacológica para DM2 em janeiro de 2021: iSGLT2, biguanidas (metformina), sulfonilureias, inibidores da dipeptidil peptidase 4 (iDPP4), agonistas dos recetores polipeptídeo insulinotrópico dependente de glicose (GIP)/peptídeo 1 tipo glucagon (aGLP-1) ou insulina.
ITU: diagnóstico codificado de janeiro a dezembro de 2021 - cistite (ICPC-2 - U71), pielonefrite/pielite (ICPC-2 - U70), prostatite (ICPC-2 - Y73);
Infeções genitais: diagnóstico codificado de janeiro a dezembro de 2021 - balanite (ICPC-2 - 75), vaginite (ICPC-2 - X84), candidíase (ICPC-2 - X72), tricomoníase (ICPC-2 - X73);
Presença de fatores de risco para ITU potencialmente confundidores: hiperplasia benigna da próstata (HBP) (ICPC-2 - Y85), incontinência urinária (ICPC-2 - U04), neoplasia maligna da bexiga (ICPC-2 - U76) ou nefrolitíase urinária obstrutiva (ICPC-2 - U95).
Os dados foram recolhidos através da consulta dos processos clínicos eletrónicos, concretamente das plataformas informáticas MIM@UF®, SClínico® e PEM, tendo sido posteriormente codificados e registados numa base de dados eletrónica que não permite a identificação dos pacientes, assegurando-se o anonimato e a confidencialidade de toda a informação recolhida.
A análise descritiva e analítica foi efetuada através do programa SPSS v. 27®. As variáveis qualitativas foram descritas através das frequências absolutas e relativas, n (%); as variáveis quantitativas normalmente distribuídas foram descritas pela média e respetivo desvio-padrão, M (sd); e as variáveis quantitativas não normalmente distribuídas foram descritas pela mediana e respetivo intervalo inter-quartil, Med [Q1; Q3]. A normalidade das variáveis foi avaliada por observação dos respetivos histogramas. Para comparação entre o grupo de controlo e o grupo de estudo foram utilizados os testes do Qui-quadrado, Mann-Whitney e o teste exato de Fisher. Foram efetuados modelos de regressão logística (simples e múltiplos), de forma a estudar a associação entre a terapêutica com iSGLT2 e as seguintes infeções: cistite, pielonefrite/pielite, balanite, prostatite, vaginite, candidíases e tricomoníase. As variáveis independentes a serem incluídas em cada regressão logística múltipla foram escolhidas através da realização de regressões logísticas simples com cada variável. Todas as variáveis que apresentaram correlação com os resultados com p≤0,05 na regressão logística simples foram incluídas nas análises de regressão logística múltipla. Apenas as variáveis significativas foram mantidas nos modelos múltiplos finais para cada infeção. Os resultados das regressões logísticas são apresentados pelas razões de chances (OR), intervalos de confiança a 95% [IC 95%] e respetivos valores de p. Valores de p≤0,05 foram considerados significativos.
O protocolo do estudo obteve parecer favorável da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Norte.
Resultados
A amostra inicial contava com um total de 1.057 doentes, dos quais foram excluídos 104 utentes: 28 com DM tipo 1, cinco por falecimento, 21 por não ter sido possível concluir a respetiva terapêutica farmacológica em 2021 e 50 por introdução de iSGLT2 no tratamento durante o ano 2021. A amostra final ficou constituída por 953 utentes.
O grupo medicado com iSGTL2 incluiu 332 utentes com uma idade mediana de 68,5 [59; 75] anos, sendo 44,3% do sexo feminino e 55,7% do sexo masculino (Tabela 1). O grupo de controlo, sem terapêutica com iSGTL2, incluiu 621 utentes com uma idade mediana de 73 [65; 80] anos, sendo 44,6% do sexo feminino e 55,4% do sexo masculino (Tabela 1).
O grupo de controlo apresentou uma mediana de HbA1csignificativamente inferior à do grupo em estudo (6,5 [6,1; 7,1] vs 7 [6,4; 7,6]; p-value<0,001) (Tabela 1).
Em ambos os grupos, a metformina é o fármaco mais utilizado nos doentes, seguindo-se os iDPP4.
Em relação ao desenvolvimento de infeções urinárias e genitais apenas foi encontrada uma diferença estatisticamente significativa no número de cistites, com uma percentagem de ocorrência de 7,4% no grupo de controlo e 3,6% no grupo medicado com iSGTL2 (p-value=0,022) (Tabela 1).
Verifica-se que o grupo de doentes medicados com iSGLT2 apresenta uma percentagem superior de utentes sob terapêutica com outras classes farmacológicas utilizadas para o tratamento da DM2.
Não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos para os fatores de risco de desenvolver ITU: HBP, neoplasia maligna da bexiga, incontinência urinária e nefrolitíase urinária obstrutiva (Tabela 1).
Na amostra não foi codificada nenhuma prostatite, durante o tempo em estudo, nos dois grupos em análise.
Em relação à associação entre a terapêutica com iSGLT2 e o desenvolvimento de cistite, a toma de iSGLT2 mostrou-se protetora para este outcome, apresentando um OR de 0,47 [0,24; 0,90] (Tabela 2). No entanto, esta associação quando ajustada para os fatores de risco potencialmente confundidores (sexo, idade e incontinência urinária) perdeu significância, OR=0,54 [0,27; 1,07] (Tabela 2).
Para o desenvolvimento das restantes infeções genito-urinárias em estudo, pielonefrite, balanite, vaginite e tricomoníase, a variável grupo não se mostrou significativamente associada (Tabela 2).
Discussão
Na amostra em estudo, o grupo dos casos, sob terapêutica com iSGLT2, é composto por doentes com idades inferiores, valor de HbA1c mais elevado e mais frequentemente medicados com outros grupos de fármacos para o tratamento da DM2 face ao grupo de controlo. À semelhança destes resultados, outros estudos relataram os iSGLT2 como um grupo farmacológico para o tratamento da DM2 subutilizado pelos médicos em adultos com idade avançada. 15-16 As diferenças verificadas na comparação entre os dois grupos demonstram que os médicos podem estar a associar estes fármacos à terapêutica de doentes mais descompensados e aos mais jovens, possivelmente por acreditarem ser esta a população com maior benefício; contudo, vários estudos sugerem vantagens para doentes com comorbilidades como doença renal crónica e insuficiência cardíaca. 4-7 Segundo o consenso da ADA com a Sociedade Europeia de estudos da Diabetes, a seleção da terapêutica para otimizar os benefícios cardiovasculares e renais não difere entre a população idosa e jovem, não devendo a idade avançada ser um obstáculo para o tratamento de doentes com risco estabelecido ou elevado de DCV. 17
No grupo de doentes medicados com iSGLT2 é mais frequente encontrar associações destes com outros grupos farmacológicos utilizados para o tratamento da DM2, provavelmente por se tratarem de doentes com maiores desafios no controlo da doença, comprovado pelo valor mediano de HbA1c superior.
No que diz respeito às doenças genito-urinárias em estudo não foi verificada qualquer associação entre o risco de desenvolver estas infeções bacterianas e fúngicas e a terapêutica com os iSGTL2.
A associação entre a utilização de iSGLT2 e infeções urinárias é controversa entre ensaios clínicos. Uma meta-análise e dois estudos de coorte não relataram nenhum aumento no risco de ITU. 12,18-19 Ao contrário dos resultados do presente parece haver maior evidência de relação quando se fala de infeções genitais, como balanites e candidíases, associadas à terapêutica com iSGLT2. 12-13,20-21
Uma provável explicação para o reduzido número de infeções micóticas genitais na população em análise pode ser consequência da adequada informação dada aos utentes por parte dos seus médicos de família, aquando da prescrição do fármaco, sobre uma correta higiene genital e precauções importantes a serem tomadas durante a toma de iSGTL2.
O reduzido número de infeções micóticas genitais verificado na população em análise, no tempo decorrente do estudo, pode ser consequência de: utilização de dados secundários, registos nos processos clínicos eletrónicos, condicionando um viés de informação, existência de eventos adversos que não tenham sido codificados com o respetivo código ICPC-2 e possibilidade de algumas infeções fúngicas terem sido tratadas com medicamentos de venda livre ou em contexto de medicina privada, subestimando os resultados. Estas limitações podem ter diminuído o poder da amostra para detetar diferenças entre os grupos.
Como pontos fortes do estudo salientam-se: ser um estudo caso-controlo, ser o primeiro estudo em Portugal que avalia o risco de infeções urinárias e genitais associadas à utilização dos iSGLT2; obtenção de dois grupos sem diferenças estatisticamente significativas para os fatores de risco para infeções urinárias e genitais; e a análise multivariada realizada, o que permitiu controlar estatisticamente potenciais viés de confundimento.
Estes resultados são consistentes com outras publicações sobre o perfil de segurança15,22 dos iSGTL2, não sendo clara a existência de uma associação com infeções genito-urinárias que possa justificar uma inércia terapêutica baseada neste efeito adverso. Este tema permanece controverso, mas dada a sua relevância é necessária a realização de estudos mais robustos, principalmente após as novas recomendações da ADA colocarem os iSGLT2 num papel central para o tratamento da DM2.
Conclusão
Os CSP são responsáveis pela monitorização dos doentes com DM2, havendo a necessidade de uma atualização na sua terapêutica farmacológica suportada pelas novas recomendações, que realçam vários benefícios na utilização de iSGLT2 tanto para DM2 como para outras doenças.
Este estudo parece favorecer a segurança ao nível de infeções urinárias e genitais na utilização dos iSGLT2 que possam limitar a prescrição destes fármacos.
Contributo dos autores
Conceptualização, NL, SB; metodologia, NL, AT, SB; software, NL, AT; validação, NL, AT, SB; análise formal, NL, AT, SB; investigação, NL; recursos, NL; curadoria de dados, NL; redação do draft original, NL; redação, revisão e validação do texto final, NL, AT, SB; supervisão, AT, SB.