Introdução
A patologia osteoarticular e músculo-esquelética constitui um dos motivos mais frequentes de consulta em medicina geral e familiar (MGF). Para além da sobrecarga dos serviços de saúde tem um impacto significativo na qualidade de vida dos doentes e consequências socioeconómicas. O aumento da esperança média de vida associa-se a um aumento da população idosa, com maior incidência de patologias crónicas (incluindo patologia osteoarticular e músculo-esquelética) e incapacidade de longa duração, bem como uma maior necessidade de cuidados de reabilitação.1
O processo de referenciação a medicina física e de reabilitação (MFR) em ambulatório tem sido alvo de ajustes e melhorias no sentido de facilitar a monitorização e a avaliação dos ganhos em saúde para os utentes do Serviço Nacional de Saúde. 2-3 Em 2016 foi publicada a Portaria n.º 178-A/2016, de 1 de julho, com a criação de um sistema de classificação dos doentes no sentido de uma caracterização sistematizada da referenciação aos cuidados de MFR. 4 De seguida foi publicada a Portaria n.º 252/2016, de 19 de setembro, através da qual se criou um Grupo de Trabalho de Análise de MFR em Ambulatório para propor uma nova estratégia de prestação de cuidados de reabilitação no SNS, com a suspensão da aplicação da Portaria n.º 178-A/2016. 5 As alterações têm sido instituídas com vista a reforçar a transparência e o rigor do cumprimento das regras de acesso equitativo dos utentes, melhorar o relacionamento entre os vários intervenientes através da desmaterialização integral do processo, da definição da objetiva da informação de retorno ao médico de família e da aplicação de escalas de avaliação da funcionalidade, de modo a acompanhar a efetividade das intervenções. 1-3,6
A prestação de cuidados no âmbito da reabilitação deve ser um continuum de cuidados entre as várias especialidades médicas, equipas e serviços de saúde, de forma a orientar o doente para a reabilitação funcional. 1-5
Relativamente ao impacto financeiro da prescrição em cuidados de saúde primários (CSP), este tema tem sido relevante tendo em conta a manutenção da sustentabilidade do SNS, sendo uma das áreas que integra a contratualização em CSP. A preocupação sobre a contenção dos gastos com a saúde tem sido estudada, nomeadamente com a análise dos encargos que os meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT) representam na despesa pública em saúde, mais concretamente a área da MFR. 6
Entre os anos de 2014 e 2018, a prescrição da área de MFR apresentou um crescimento de 38,6%, posicionando-se como a segunda valência com maior crescimento de despesa. Já no ano de 2019 destaca-se como o segundo maior gasto relativamente ao total da despesa com MCDT na região Norte, constituindo um custo que ultrapassou os 55 milhões de euros. 7
A patologia osteoarticular e músculo-esquelética constitui o principal motivo de prescrição de tratamentos de MFR; contudo, são escassos os estudos que visam caracterizar as principais necessidades de reabilitação nesta área. 3,8 Conhecendo os principais motivos de prescrição será possível adequar de forma mais eficaz os recursos em saúde, implementando medidas preventivas dirigidas às principais patologias encontradas e, talvez, posteriormente criar programas de reabilitação ajustados à realidade observada, em articulação com as unidades de MFR hospitalares e com as respostas comunitárias. 1,8
Com este estudo pretende-se caracterizar a prescrição de MFR relativa a patologia osteoarticular e músculo-esquelética no Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) de Matosinhos, com vista a conhecer quais os principais motivos de prescrição, quais as patologias que implicam maior número de consultas subsequentes e caracterizar sociodemograficamente os doentes a quem foi realizada prescrição.
Métodos
Trata-se de um estudo observacional, retrospetivo e transversal, assente em dados relativos a onze Unidades de Saúde Familiar (USF) e três Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), integrantes do ACeS de Matosinhos.
Os dados recolhidos reportam ao período compreendido entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2021. A população do estudo corresponde a todos os utentes com prescrição de consulta de MFR no ACeS de Matosinhos, durante o período estudado, não tendo sido aplicados critérios de exclusão.
Para o estudo foram selecionados os códigos da Classificação Internacional de Cuidados Primários (ICPC-2) referentes a diagnósticos passíveis de prescrição de consulta de MFR e relativos a patologia osteoarticular e músculo-esquelética, com base no Relatório do Grupo de Trabalho de Análise dos Cuidados de Medicina Física e de Reabilitação em Ambulatório, publicado em 2018. 9
Como variáveis de estudo definiram-se as seguintes: número total de prescrições, número de prescrições de primeira consulta, número de prescrições de consulta subsequente e número de prescrições acompanhadas de pelo menos um dos códigos ICPC-2 selecionados. Foram ainda recolhidas variáveis para caracterização da população estudada, a saber: sexo, idade, presença de critérios de isenção de pagamento de taxas moderadoras e problemas de saúde (obtidos através da lista de problemas do SClínico CSP ® de cada um dos utentes).
Os dados foram recolhidos de forma automatizada através dos registos do SClínico CSP ® por colaboradores do Departamento de Planeamento e Gestão da Unidade Local de Saúde de Matosinhos, de forma independente dos investigadores, sendo posteriormente fornecidos aos mesmos, de forma anonimizada, em software de folha de cálculo. O tratamento estatístico dos dados foi realizado através do programa Microsoft Excel 2019®, recorrendo a ferramentas de estatística descritiva para analisar as variáveis indicadas, nomeadamente: cálculo de frequências absolutas e relativas e cálculo da média e respetivos desvios-padrão. Para o cálculo de diferenças entre grupos usou-se o teste de chi-quadrado, tendo sido definido um nível de significância de 0,01. Para calcular diferenças entre grupos relativamente à idade foi usado o teste de chi-quadrado, sendo os utentes foram estratificados consoante a idade fosse <65 anos ou ≥65 anos.
O protocolo do estudo obteve parecer favorável da Comissão de Ética local.
Resultados
Número de consultas
No decorrer do período selecionado foi prescrito um total de 23.941 consultas de MFR a um total de 11.687 utentes distintos nas unidades funcionais em estudo (Tabela 1). O número médio de prescrições por USF foi de 1710,07.
Legenda: n = número; UCSP = Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados; USF = Unidade de Saúde Familiar.
Das prescrições realizadas 47,94% corresponderam a primeira consulta, enquanto 52,06% corresponderam a consulta subsequente para continuidade de cuidados. De entre os doentes que tiveram prescrição de primeira consulta no período estudado 33,10% tiveram uma ou mais prescrições de consulta subsequente.
Das unidades incluídas no estudo destaca-se a unidade A, com maior número de prescrições realizadas (11,0%; n=2.633), mas também com o maior número de utentes distintos com prescrição (n=1.347). Quando analisado o número de prescrições por utente, a unidade H é a que apresenta o número mais elevado (2,20 prescrições por utente). Na Tabela 1 encontram-se discriminados os dados relativos ao número de prescrições por unidade funcional.
Caracterização sociodemográfica
Verificou-se que a maioria das prescrições foi realizada a utentes do sexo feminino (65,54%), com idade média de 57,15 anos (Tabela 2). A maioria apresentava critérios de isenção de pagamento das taxas moderadoras (58,65%).
No que toca aos antecedentes de saúde, na Tabela 3 são listados, por ordem de frequência, os principais problemas de saúde constantes da lista de problemas dos doentes a quem foi feita prescrição de consulta de MFR. Destacam-se, entre os cinco mais frequentes, T93 - Alteração dos lípidos, K86 - Hipertensão sem complicações, T83 - Excesso de peso, L86 - Síndrome da coluna com irradiação de dor e T82 - Obesidade.
Quando se analisaram em separado as características sociodemográficas dos utentes a quem foi prescrita primeira consulta e consulta subsequente verificou-se um maior número de prescrições a utentes do sexo masculino, a utentes com critérios de isenção de pagamento de taxas moderadoras e maior número de prescrições a utentes mais jovens na subpopulação com consulta subsequente (Tabela 2), sendo estas diferenças estatisticamente significativas (p<0,01).
Codificação das prescrições
De entre os códigos ICPC-2 selecionados observou-se que 47,24% das prescrições se acompanhavam da codificação na consulta de um destes, enquanto em 52,76% das prescrições tal não acontecia. Observando cada uma das unidades funcionais isoladamente verifica-se que a percentagem de prescrições acompanhadas de codificação na consulta de um dos diagnósticos selecionados varia entre 26,4% (unidade A) e 60,39% (unidade B) (Tabela 1).
De entre a lista de diagnósticos selecionados analisaram-se quais os mais frequentemente codificados na consulta para a subpopulação de utentes com primeira consulta e para a subpopulação com consulta subsequente, estando os resultados apresentados nas Tabelas 4 e 5. Destacam-se algumas diferenças entre os grupos: na subpopulação com primeira consulta, entre os dez diagnósticos mais frequentes encontra-se L93 - Cotovelo de tenista, enquanto na subpopulação com consulta subsequente encontra-se K90 - Trombose/Acidente vascular cerebral e N87 - Parkinsonismo. O código L86 - Síndrome da coluna com irradiação de dor foi o mais codificado em ambas as subpopulações, seguindo-se o L92 - Síndrome do ombro doloroso.
Analisaram-se ainda, de entre os diagnósticos selecionados, quais os que originaram maior número de prescrições subsequentes/utente no período estudado. Os resultados encontram-se descritos na Tabela 6, sendo possível observar que a patologia que origina maior número de prescrições subsequentes/utente é a esclerose múltipla (com média de 3,71 prescrições subsequentes/utente), seguindo-se o Parkinsonismo (média de 2,94 prescrições subsequentes/utente).
Por fim, foram analisadas as consultas nas quais não tinha sido codificado nenhum dos diagnósticos selecionados (Tabela 7). Verificou-se que, nessas consultas, entre os códigos mais frequentes encontram-se L03 - Sintoma/Queixa da região lombar, L15 - Sintoma/Queixa do joelho, L08 - Sintoma/Queixa do ombro e L01 - Sintoma/Queixa do pescoço, demonstrando que foi realizada a codificação de sinais/sintomas e não da doença de base que condiciona a necessidade de reabilitação.
Discussão
Caracterização sociodemográfica
Os utentes com maior número de prescrições de MFR foram do sexo feminino, o que é consistente com o que está descrito na literatura. 10 Os motivos para esta diferença não são do âmbito do presente estudo e, como tal, não foram explorados, embora a literatura aponte como possíveis causas para este achado: características fisiológicas como uma menor percentagem de massa muscular e menor massa óssea no sexo feminino, assim como fatores psicológicos. 11 A média de idades encontrada (57,15 anos), representando ainda uma população em idade ativa, poderá ser reflexo da atividade profissional dos doentes e com possível relação com as práticas laborais. 12-13 Outro fator que pode também ter contribuído para este resultado é o facto de em Matosinhos existir uma maior prevalência do sexo feminino, assim como da população em idade ativa (dos 15 aos 64 anos), como indicado no Censos 2021. 14 Verificou-se ainda que a maioria dos utentes apresentava critérios de isenção de taxas moderadoras, o que pode dever-se ao facto de um nível socioeconómico mais baixo se associar a maior prevalência de lombalgia e cervicalgia crónicas, bem como a outras patologias osteoarticulares. 15
Relativamente aos problemas de saúde mais frequentes verificou-se que estes são sobreponíveis aos descritos para a população portuguesa, no Inquérito Nacional de Saúde com Exame Físico (INSEF), realizado em 2015, 16 nomeadamente a apresentação dos problemas cardiovasculares como os três principais problemas de saúde. Sublinha-se que os dados são descritivos da amostra com vista a caracterizar os utentes a quem é prescrita MFR sob o ponto de vista de problemas de saúde codificados no seu processo clínico (SClínico®). Como exceção surge a perturbação depressiva. No presente estudo, 25,86% das prescrições foram realizadas a utentes com diagnóstico de perturbação depressiva, podendo traduzir uma prevalência superior na população do estudo em relação à descrita para a população geral (7,9%).17 A associação bidirecional entre patologia osteoarticular (em particular, osteoartrite) e a perturbação depressiva está já documentada na literatura. 18 Uma revisão sistemática de 2016 estimou a prevalência de depressão em doentes com osteoartrite em cerca de 20% e, especialmente para a osteoartrite no membro inferior, em 23%.18
Codificação das prescrições
De entre a lista de diagnósticos selecionados codificados em consulta, a maioria corresponde a patologia músculo-esquelética (nível de complexidade 3) e apenas uma minoria das prescrições eram referentes a patologia neurológica central (nível de complexidade 1). 19 Estes dados podem explicar o facto de apenas 33,10% dos doentes com prescrição de primeira consulta terem tido uma ou mais prescrições de consulta subsequente.
Ainda de entre a lista de diagnósticos selecionados, o problema mais frequentemente codificado quer na prescrição de primeira consulta quer na prescrição de consulta subsequente foi L86 - Síndrome da coluna com irradiação de dor. De facto, de acordo com o estudo Retrato da Saúde - 2018, as patologias da coluna vertebral, como a lombalgia e a cervicalgia, correspondem à principal causa de morbilidade em Portugal. 20
Em segundo lugar, como problema mais frequentemente codificado, surge L92 - Síndrome do ombro doloroso. Ainda que não existam estudos publicados que estimem a prevalência da omalgia na população portuguesa, um estudo publicado em 2020, relativo à Área Metropolitana do Porto, estimou uma prevalência de 29,6% para esta população, o que demonstra a preponderância desta patologia. 21
Já na subpopulação com consulta subsequente, entre os diagnósticos mais frequentes encontra-se Trombose/Acidente vascular cerebral e o Parkinsonismo, refletindo a necessidade de continuidade de cuidados destas patologias. 22-24
Relativamente às patologias que originaram maior número de prescrições subsequentes por utente, estas foram a esclerose múltipla e o Parkinsonismo, o que é explicado pelo facto destas duas patologias implicarem também uma necessidade de continuidade de cuidados de reabilitação.
Por fim, de acordo com as recomendações do Colégio da Especialidade de MFR, as referenciações a consulta de MFR devem ser realizadas através da caracterização da doença de base que condiciona uma deficiência e uma incapacidade e não através de sinais ou sintomas. 19 Neste estudo, e de acordo com os resultados apresentados nas Tabelas 6 e 7, verifica-se que em grande parte das consultas em que foi realizada a prescrição de MFR, os médicos de família codificaram sinais e sintomas e não diagnósticos e doenças, refletindo ainda alguma limitação na codificação médica, já descrita previamente para os CSP. 25
De todas as prescrições avaliadas, 52,76% não tinham registo de codificação ICPC-2 da lista selecionada referente a patologias passíveis de gerar prescrição de MFR. É de destacar que existem outras patologias que podem gerar prescrição de MFR noutras áreas de intervenção, como terapia ocupacional para problemas de desenvolvimento ou patologia de saúde mental, que poderão justificar esta falta de registo de codificação constante na Tabela 2.
Limitações do estudo
Como limitações do estudo é de referir que este foi realizado com dados secundários, isto é, obtidos através de registos médicos, pelo que os resultados poderão não ser totalmente sobreponíveis aos de estudos de prevalência desenhados para esse mesmo fim e realizados com dados primários, podendo não ser possível extrapolar para populações de outros ACeS.
Adicionalmente, importa ainda acrescentar que os problemas de saúde codificados na consulta se baseiam na avaliação e julgamento do médico prescritor e não em parâmetros pré-definidos para este estudo, pelo que poderão não corresponder à situação clínica em causa.
Ainda de referir as limitações de codificação ICPC-2 e o facto de a prescrição de terapia ocupacional ser realizada da mesma forma da reabilitação física, o que torna mais complexa a análise dos resultados, podendo gerar um viés.
Conclusão
Em conclusão, este estudo evidenciou que a maioria dos utentes a quem foi prescrita consulta de MFR eram do sexo feminino, em idade ativa e com critérios de isenção do pagamento de taxas moderadoras. Os problemas de saúde que mais frequentemente motivaram a prescrição foram L86 - Síndrome da coluna com irradiação de dor e L92 - Síndrome do ombro doloroso, quer para primeira consulta quer para consulta subsequente. Verificaram-se algumas limitações na codificação médica, nomeadamente na correta codificação de diagnósticos passíveis de prescrição de consulta de MFR, com grande variabilidade entre as várias unidades funcionais.
De acordo com a literatura são escassos os estudos realizados em Portugal sobre o tema.8 Neste sentido, e apesar das limitações apontadas, trata-se de um estudo relevante e com um tamanho amostral considerável, que permite obter uma caracterização das prescrições de MFR efetuadas neste ACeS, podendo constituir um ponto de partida para melhorar a adequação dos recursos em saúde no mesmo e implementar programas de cuidados dirigidos às principais patologias encontradas.
Para futuras investigações nesta área propõe-se a realização de um estudo que permita avaliar a adequação da prescrição de MFR, bem como um estudo de acompanhamento para melhoria da codificação das patologias que motivam a prescrição, com vista a um real conhecimento do problema.
Contributo dos autores
Conceptualização, MFA, DSS, ABR e CP; metodologia, MFA, DSS, ABR e CP; validação, MFA, DSS, ABR e CP; análise formal, ABR; investigação, MFA, DSS, ABR e CP; gestão de dados, MFA, DSS, ABR e CP; redação do draft original, MFA, DSS, ABR e CP; revisão, edição e validação do texto final, MFA, DSS, ABR e CP; visualização, MFA, DSS, ABR e CP; supervisão, CP; administração do projeto, MFA, DSS, ABR e CP; aquisição de financiamento: trabalho integralmente realizado com fundos dos autores.