Introdução
A literacia em saúde é definida pela Organização Mundial da Saúde como “o grau em que os indivíduos têm a capacidade de obter, processar e entender as informações básicas de saúde para utilizarem os serviços e tomarem decisões adequadas”. Este conceito contribui de forma inequívoca para a promoção da saúde e prevenção da doença, bem como para uma maior eficácia e eficiência dos serviços, nomeadamente através do aumento dos níveis de compreensão do funcionamento dos serviços médicos por parte do utente e a capacidade do mesmo para seguir e compreender as indicações prestadas pelos profissionais de saúde.1-2
Sabe-se atualmente que o grau de conhecimento da população relativo aos cuidados de saúde tem um impacto direto a nível socioeconómico. Nos Estados Unidos, a American Medical Association estimou um impacto anual de 73 mil milhões de dólares diretamente decorrentes da baixa literacia em saúde. 3 Vários estudos demonstram já que o nível de literacia em saúde está relacionado com a frequência de utilização dos cuidados de saúde, hospitalizações, medidas globais de saúde e gestão de algumas doenças crónicas. 4 Um baixo conhecimento em saúde tem sido globalmente associado a um maior número de hospitalizações, uso indevido dos serviços de urgência, má adesão a rastreios e programas de vacinação e, em populações mais velhas, a maiores taxas de mortalidade. 5 De facto, constatou-se em vários estudos que as populações com baixos níveis de literacia apresentam problemas consideráveis de acesso aos cuidados de saúde, bem como maiores dificuldades na verbalização das suas queixas e compreensão dos tratamentos recomendados. 1,4 Sabe-se, por exemplo, que indivíduos que não completam o ensino secundário revelam muitas vezes piores resultados em termos de saúde física e mental, bem como pior capacidade de autoavaliação em termos de saúde. 3 Na população pediátrica, a baixa literacia em saúde pode levar a problemas de má nutrição, maiores taxas de obesidade, erros de medicação e uso indevido dos serviços de urgência. 4
No que diz respeito à situação a nível nacional, um estudo realizado a nível europeu em 2014 mostrou que a população portuguesa apresentava uma proporção mais elevada de indivíduos com baixos níveis de literacia em saúde (38,1%) em comparação com a média europeia (35,2%). Por outro lado, a percentagem de população com excelente nível de literacia em saúde era a mais baixa a nível europeu (8,6% nacional vs 16,5% de média europeia). 6 Mais recentemente, um estudo nacional realizado entre 2019 e 2021 demonstrou que 65% da população portuguesa apresenta um nível suficiente de literacia em saúde, 22% apresentam um nível problemático e 7,5% um nível inadequado. 7 Num estudo de 2016 concluiu-se que, em comparação com oito países da União Europeia, Portugal apresentava uma posição intermédia, ligeiramente abaixo da média no que diz respeito ao Índice Geral de Literacia em Saúde. Verificou-se ainda que quanto mais jovem era a população e maior a sua escolaridade, maiores eram os níveis de literacia em saúde. 8
É essencial para os profissionais de saúde, nomeadamente os médicos de família, enquanto gestores do percurso dos utentes e dos recursos disponíveis, o desenvolvimento de iniciativas promotoras da capacitação dos cidadãos no que diz respeito ao seu conhecimento nas temáticas de saúde e acesso aos seus recursos de forma eficaz e eficiente.
Perante esta problemática foi proposta a realização de um projeto de intervenção em utentes de seis Unidades de Saúde Familiares (USF) de dois Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) da Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte, com o objetivo de criar um vídeo formativo, facilmente replicável noutras unidades do País e que permita aumentar o nível de literacia em saúde dos utentes em questões relacionadas com a gestão e organização dos cuidados de saúde primários (CSP).
Métodos
Foi realizado um estudo observacional, prospetivo, do tipo coorte. A população em estudo era constituída por pessoas com idade igual ou superior a 18 anos, inscritas e pertencentes a seis USF da Região Norte em 1 de julho de 2022. Os critérios de exclusão considerados foram: utentes com idade inferior a 18 anos, não responder ao questionário pré- ou pós-intervenção e não assistir aos conteúdos formativos.
A amostra utilizada foi de conveniência, constituída pelos utentes que aceitaram participar livremente no estudo após divulgação do mesmo através de um cartaz nas salas de espera e de uma publicação nas redes sociais com um QR Code de acesso direto ao questionário inicial.
Numa primeira fase, os investigadores aplicaram um questionário online previamente validado, após obtenção de consentimento informado escrito por parte dos utentes. A validação do questionário foi realizada através da aplicação a 34 profissionais de saúde e utentes, com o intuito de corrigir eventuais erros de interpretação e tornar o mesmo mais acessível. O consentimento informado foi disponibilizado imediatamente no início do questionário online, tendo sido explicitados os objetivos e metodologia do estudo, só permitindo avançar para as secções seguintes após confirmação de aceitação. Os dados recolhidos foram: sexo; idade; escolaridade e frequência de utilização dos CSP no último ano. Foram ainda realizadas dezoito questões de escolha múltipla e verdadeiro/falso no que diz respeito à organização dos ACeS e das USF, à especialidade de medicina geral e familiar e ao funcionamento dos CSP.
A segunda fase consistiu na divulgação, através do e-mail dos participantes, de um vídeo formativo acerca dos temas referidos. O vídeo ficou disponível para visualização até duas semanas após o término da partilha do questionário inicial. De forma a garantir que o vídeo era acedido pelos participantes, este foi partilhado em formato formulário Google® Docs, tendo sido posteriormente conferida a lista de e-mails que o submeteu.
Numa última fase foi aplicado o questionário pós-intervenção quatro semanas após o término da partilha do vídeo formativo. Os dados recolhidos foram semelhantes aos do questionário pré-intervenção.
Os resultados foram codificados e registados no programa informático Microsoft Office Excel®. Para o tratamento estatístico foi utilizado o programa SPSS® (Statistical Package for the Social Sciences), v. 23.0. Foi realizada a análise dos resultados obtidos utilizando a média, desvio-padrão, mediana e frequências para a caracterização global das variáveis, recorrendo ao teste de qui quadrado para comparação entre variáveis categóricas e independent sample t test para comparação de médias. Considerou-se significância estatística para um valor de p<0,05.
Foi obtido parecer favorável da Comissão de Ética da ARS Norte, ACeS e USF dos participantes para a realização do estudo.
Resultados
Ao longo da intervenção, 274 utentes responderam ao primeiro questionário, 165 visualizaram o vídeo formativo e 113 responderam ao segundo questionário. Apenas 88 utilizadores participaram em todas as fases do projeto e foram considerados elegíveis para a interpretação dos resultados.
De acordo com a Tabela 1, dos 88 utentes 53 (60,2%) pertencem ao sexo feminino e 35 (39,8%) ao sexo masculino. A maioria dos participantes (81,8%) encontrava-se na faixa etária dos 30 aos 59 anos, predominando também os utentes com licenciatura (44,3%), seguindo-se aqueles que completaram o ensino secundário (27,3%) e em terceiro lugar os utentes com mestrado (22,7%).
A Tabela 2 indica a taxa de acerto em cada questão do questionário pré e pós-intervenção. Globalmente, a intervenção realizada permitiu melhorar a percentagem de respostas corretas de 66,7% para 72,7% (p=0,004; IC 95%).
Verificou-se uma melhoria, ainda que de forma não estatisticamente significativa, em todas as questões com exceção de três: «Que médicos constituem uma Unidade de Saúde Familiar (USF)?», onde se verificou um declínio nas respostas certas (de 98,9% no questionário pré-intervenção, para 93,2%); «É necessário fazer uma especialização para se poder exercer como médico de Medicina Geral e Familiar. Esta afirmação é...», tendo ocorrido uma redução na taxa de acerto de 98,9% para 97,7%; e «Qual dos seguintes grupos é seguido por Medicina Geral e Familiar?», na qual se verificou uma percentagem de respostas corretas igual entre o questionário pré e pós intervenção (96,6%).
Apenas a questão «Apenas o Médico de Família pode renovar a minha carta de condução. Esta afirmação é...» obteve diferenças estatisticamente significativas entre os dois momentos avaliados [taxa de acerto pré: 70,5% vs pós: 80,7% - (p=0,019; IC 95%)].
Foi possível também constatar melhorias em questões relevantes na gestão dos CSP. Na questão «Qual deve ser o primeiro contacto presencial de um doente não urgente com o Serviço Nacional de Saúde?», todos os participantes responderam corretamente no segundo momento face aos 97,7% do primeiro questionário. Relativamente à organização dos CSP verificou-se uma melhoria em relação à ideia que os utentes têm sobre as dimensões de uma lista de utentes: numa fase inicial 13,6% e 22,7% dos participantes responderam respetivamente 300 e 650 utentes, tendo posteriormente estes valores sido referidos apenas por 5,7% e 18,2%.
Obtiveram-se também melhores taxas de acerto em questões que frequentemente sobrecarregam os CSP do ponto de vista burocrático, nomeadamente nas questões «Qual dos seguintes corresponde a um motivo de consulta aberta?», «As Unidades de Saúde Familiar (USF) estão impedidas de prescrever exames pedidos em consultas privadas ou por hospitais públicos. Esta afirmação é...» e «Apenas o Médico de Família pode renovar a minha carta de condução. Esta afirmação é...».
Discussão
A literacia em saúde é um determinante fundamental da prestação de cuidados médicos. A existência de baixos índices de literacia condiciona a capacidade dos profissionais de saúde prestarem cuidados médicos de excelência, levando médicos e enfermeiros a ocupar parte do seu tempo a orientar os utentes na complexidade dos serviços de saúde. Em populações com elevada literacia em saúde, esse mesmo tempo pode ser dedicado à prestação de serviços médicos, algo que garante um melhor acompanhamento aos utentes. Ao mesmo tempo, libertam-se profissionais altamente qualificados de tarefas burocráticas que nesse cenário ideal se tornam desnecessárias. 4
Não existindo uma abordagem estabelecida como ideal pela comunidade científica para melhorar a literacia em saúde, neste projeto de intervenção optou-se por utilizar meios digitais para chegar à população alvo. Recorreu-se à construção de um vídeo formativo que foi posteriormente divulgado pelos participantes, algo que na opinião dos investigadores se revelou uma mais-valia ao permitir maior flexibilidade por parte do utilizador. Esse vídeo tinha como objetivo dar respostas às questões colocadas no questionário e, dessa forma, educar os utentes acerca de temáticas relativas à organização dos CSP. Uma das principais preocupações dos autores consistiu em adaptar a linguagem a uma população alvo não relacionada com a saúde, bem como a confrontação do conteúdo do mesmo com profissionais de saúde.
Com esta estratégia conseguiu-se melhorar de forma significativa a taxa de acerto global ao questionário, passando de 66,7% para 72,7%, o que representou uma melhoria na literacia em saúde dos utentes envolvidos no projeto. A percentagem de respostas corretas em questões estruturais relativas aos CSP foi mais elevada, como o local para um primeiro contacto com o Serviço Nacional de Saúde por parte de um doente urgente, questão à qual todos os participantes responderam corretamente face aos 97,7% do primeiro questionário.
Relativamente à organização dos CSP, obteve-se maior taxa de acerto no conhecimento dos utentes face a temáticas como as dimensões das listas dos médicos de família, a não transcrição de meios complementares de diagnóstico do sistema privado ou hospitalar, bem como a possibilidade de outros médicos realizarem procedimentos burocráticos, como a emissão de atestados para renovação de carta de condução. Não obstante os resultados favoráveis obtidos para as questões individuais, apenas uma dessas obteve melhoria estatisticamente significativa, o que poderá resultar do baixo tamanho amostral e limita a extrapolação de resultados para outros contextos.
Com este projeto conseguiu-se criar uma ferramenta capaz de melhorar o conhecimento em saúde por parte dos utentes. Pela sua simplicidade, esta é facilmente replicável, podendo ser aplicada em outros ACeS do país.
Apesar dos resultados obtidos existem algumas limitações que devem ser consideradas. Por um lado, o número reduzido de participantes que completaram todas as fases do estudo, sendo esta decorrente da dificuldade em motivar os utentes ao longo de todas as etapas e que, conforme referido, poderá limitar a extrapolação das conclusões obtidas para outras populações. Simultaneamente, a utilização de um formato online é passível de criar um viés de seleção, escolhendo utentes que são previsivelmente mais jovens e possivelmente com maior literacia em saúde. Trata-se também de uma amostra de conveniência que inclui apenas os utentes que responderam a todas as etapas do estudo e, por último, apesar da disponibilização do vídeo formativo ter sido realizada através de um formulário Google® Docs não foi possível constatar a visualização integral do mesmo.
Seria interessante no futuro abordar qual o impacto desta estratégia em indicadores de saúde diretamente relacionados com o outcome médico destes utentes, nomeadamente em termos da sua morbimortalidade. Seria também interessante inserir variáveis de estudo como a profissão, se se tratam de utentes ativos ou reformados e se são frequentadores da consulta aberta da USF.
Conclusão
Com o presente projeto de intervenção, além de cumprir com o objetivo inicialmente proposto, de melhorar a literacia em saúde dos utentes em estudo, os autores consideram ter desenvolvido uma ferramenta multimédia passível de replicação noutras unidades de saúde do país. Pela diversidade de utentes envolvidos no estudo, os autores consideram ser possível esperar um resultado semelhante em termos da melhoria da literacia em saúde, sendo expectável um ganho secundário em outcomes relativos a morbimortalidade desses utentes e na eficiência dos serviços de saúde.
Contributo dos autores
Conceptualização, TFF, AV, BM, MAG, JMP, AIP e JGL; metodologia, TFF, AV, BM, MAG, JMP, AIP e JGL; validação, TFF, AV, BM, MAG, JMP, AIP e JGL; análise formal, TFF e JMP; investigação, TFF, AV, BM, MAG, JMP, AIP e JGL; recursos, TFF, AV, BM, MAG, JMP, AIP e JGL; gestão de dados, TFF e JMP; redação do draft original, TFF, AV, BM, MAG, JMP, AIP e JGL; revisão, edição e validação do texto final, TFF, AV, BM, MAG, JMP, AIP e JGL; visualização, TFF, AV, BM, MAG, JMP, AIP e JGL; supervisão, TFF, AV, BM, MAG, JMP, AIP e JGL; administração do projeto, TFF, AV, BM, MAG, JMP, AIP e JGL.