Introdução
A diabetes mellitus (DM) é um distúrbio metabólico caracterizado por níveis elevados de glicemia. É uma condição de saúde crónica, de etiologia multifatorial, que pode ser desencadeada por fatores genéticos e/ou ambientais.
Em 2019 mais de 420 milhões de pessoas sofriam de DM em todo o mundo, estimando-se que esse número ultrapasse o meio bilião até 2030.1 São esperados cerca de 693 milhões de pessoas sofrendo de DM (PDM) em 2045. 2
Em Portugal, segundo uma publicação de 2019, foi estimada em 2018 uma prevalência de 13,6% de PDM2 com idades compreendidas entre os 20 e os 79 anos (7,7 milhões de indivíduos), significando que mais de um milhão de portugueses neste grupo etário teria diabetes. 3
Para que se institua um tratamento correto é necessário determinar o tipo de DM, o tipo de pessoa e o seu contexto. Existem vários tipos de diabetes; no entanto, a DM tipo 2 (DM2) é o tipo mais comum, representando cerca de 90% dos casos. 4
A DM2 deve-se quer à diminuição progressiva da produção de insulina pelas células β pancreáticas quer ao aumento da resistência periférica à insulina. De etiologia não cabalmente esclarecida foi comprovada associação entre o risco de desenvolver DM2 e o avançar da idade, a obesidade e o sedentarismo. A maioria das PDM2 tem excesso de peso, obesidade ou, pelo menos, uma grande percentagem de massa gorda a nível abdominal. 5
Um estilo de vida saudável, envolvendo a prática de exercício físico e um regime alimentar saudável são dois dos três pilares do tratamento da PDM2. A terapia farmacológica é o outro pilar, devendo ser iniciada aquando do diagnóstico, tendo em conta fatores individuais, nomeadamente a multimorbilidade e o conhecimento dos objetivos a atingir. 6
São vários os fármacos hipoglicemiantes orais aprovados para o tratamento da DM2, entre os quais os inibidores do co-transportador de sódio-glicose-2 (iSLGT2), que estão associados à redução do peso. 7
O co-transportador de sódio-glicose-2 (SGLT2) é responsável pela reabsorção de glicose nos túbulos proximais renais (cerca de 80-90%). A sua inibição leva a uma redução da glicemia, o que determina o seu uso no tratamento da PDM2. 8
Os iSGLT2 estão especialmente recomendados para doentes com associada insuficiência cardíaca (IC), melhorando o prognóstico e/ou doença renal crónica (DRC), reduzindo a sua progressão, bem como em todas as PDM2 com doença cardiovascular (DCV) ou com risco cardiovascular (RCV) muito elevado/elevado, contribuindo para uma redução de eventos. 9
Os quatro iSLGT2 aprovados pela Agência Europeia do Medicamento (EMA) são comercializados em Portugal, podendo ser usados na terapêutica da DM2: a dapagliflozina, a empagliflozina, a canagliflozina e a ertugliflozina. 10
Dada a frequência relativa de PDM2 e a crescente utilização prática de iSGLT2 visando um bom controlo metabólico e clínico, bem como de redução das complicações renais e cardiovasculares em PDM2, faz sentido estudar os valores obtidos na utilização populacional, em ambiente diferente do de ensaio clínico, utilizando os registos clínicos efetuados no suporte eletrónico usado em ambiente de medicina geral e familiar, o SClínico, para avaliação da eficiência da terapêutica com iSGLT2.
Desta forma, o presente trabalho teve como objetivo verificar a efetividade dos iSLGT2 a nível analítico (HbA1C) e a nível antropométrico (IMC e PA) e perceber tal impacto na prevalência de controlo de PDM2, tendo em conta dois pressupostos: valor alvo de HbA1c ≤7% para controlo até aos 65 anos e de ≤8% para maiores de 65 anos, como definido no Bilhete de Identidade dos Cuidados de Saúde Primários (BI-CSP). 1,5,11-12
Métodos
Realizou-se um estudo observacional de coorte retrospetiva, analisando os dados fornecidos, em anonimato, pelos serviços informáticos da Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro, dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) Baixo Mondego e Dão Lafões, duas das seis unidades funcionais administrativas da ARS do Centro, que coordenam os respetivos centros de saúde e nos quais as unidades de trabalho em medicina geral e familiar, como as Unidades de Saúde Familiar ou as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, prestam cuidados a PDM2. A escolha destes dois ACeS foi aleatória.
A amostra em estudo foi constituída pelas PDM2 de ambos os ACeS (Código T90 da International Classification for Primary Care-2 - ICPC-2) medicadas com iSLGT2 em 2017 e que mantinham a mesma terapêutica em 31 de dezembro de 2022.
Obteve-se parecer positivo da Comissão de Ética da ARS do Centro e recebidos, para cada PDM2, classe socioeconómica de Graffar, sexo, idade, PA, IMC e valor da HbA1c para valores o mais próximos possível do final dos anos de 2017 e de 2022. A caracterização da população foi feita, como a análise dos dados clínicos e antropométricos, assumindo a sua unicidade e não fazendo comparação entre os ACeS.
Definiu-se efetividade como o resultado obtido e registado por profissional de MGF no sistema informático SClínico.
O limiar e controlo de PDM2 foi definido para o valor de ≤7% segundo o constante em relatórios internacionais, tendo-se igualmente realizado análise segundo o valor de HbA1c de ≤8%, dado o constante em BI-CSP. 11-12
Na análise estatística dos dados foi utilizado o software IBM SPSS® (Statistical Package for the Social Sciences), v. 27, tendo-se recorrido ao teste de Kolmogorov-Smirnof com correção de significância de Lilliefors para avaliar a normalidade da distribuição dos dados numéricos. Foi utilizada estatística inferencial não paramétrica, nomeadamente a Correlação de Postos de Spearman e o teste de Wilcoxon.
Calculou-se a dinâmica de crescimento da percentagem de PDM2 controlada entre os anos de 2017 e 2022 e aplicou-se o Teste Exato de Fisher para determinar se esta foi estatisticamente significativa para os dois valores de corte para o controlo descrito. 11-12
Considerou-se um nível de significância de probabilidade p<0,01.
Resultados
Estudou-se uma amostra de 264 participantes, dos quais 156 (59%) do sexo masculino, 149 (56,4%) PDM2 com menos de 65 anos e 58,7% com um índice de Graffar médio, sendo 221 (83,7%) seguidos no ACeS Baixo Mondego (Tabela 1).
Foi possível obter 262 (95,6%) valores de HbA1c e PA para os anos de 2017 e 2022. Quanto ao IMC, em 2017 havia registo de 243 (92,0%) PDM2 e em 2022 de 251 (95,1%).
De acordo com a Tabela 2 verificou-se que, de 2017 para 2022, houve uma variação dos valores médios da HbA1c de 7,62±1,22 para 7,56±1,12 (Δ=-0,096); do IMC de 31,65±8,73 para 29,90±4,56 (Δ=-0,005) e do PA de 104,90±13,64 para 105,58± 11,11 (Δ=0,006).
Legenda: HbA1c = Hemoglobina glicada; IMC = Índice de massa corporal; PA = Perímetro abdominal; dp = Desvio-padrão.
O teste de Kolmogorov-Smirnov com a Correção de Significância de Lilliefors verificou haver distribuição não-normal das variáveis numéricas HbA1c, IMC e PA para os anos de 2017 e 2022 (p<0,001).
Na Tabela 3 são mostrados os valores da correlação de Spearman, da diferença entre valores pelo teste de Wilcoxon e da dinâmica de crescimento entre 2017 e 2022 para cada uma das variáveis.
Verificou-se uma correlação positiva e significativa entre os conjuntos de variáveis: fraca para HbA1c em 2017 e HbA1c em 2022 (ρ=0,237 e p<0,01); forte para IMC em 2017 e IMC em 2022 (ρ=0,871 e p=0,000) e forte PA em 2017 e PA em 2022 (ρ=0,820 e p=0,000).
Pelo teste de Wilcoxon e cálculo da dinâmica de crescimento 2017-2022 verificou-se que apenas o IMC teve diferença significativa (p<0,01), sendo de Δ=-0,056. A HbA1c teve Δ=0,009, não significativa (p=0,951) e quanto ao PA observou-se Δ=0,007 não significativa (p=0,424).
Realizou-se uma análise da prevalência de controlo das PDM2 em função do valor de HbA1c ≤7% para idade <65 anos e de HbA1c ≤8% para idade ≥65 anos e, de acordo com a Tabela 4, verificou-se dinâmica de crescimento negativa para ambos os valores, em particular na população mais jovem. Não se verificou, entre 2017 e 2022, para menores de 65 anos diferença no controlo (p=0,278), teste exato de Fisher e, para idades ≥65 anos, tal diferença foi significativa (p=0,002).
Discussão
Este trabalho visou verificar a efetividade dos iSLGT2 no controlo de PDM2, pelos valores de HbA1C e pelo impacto antropométrico em IMC e PA, bem como na prevalência de PDM2 controladas utilizando os valores alvo de HbA1c de ≤7% e ≤8%, em PDM2 que, ao longo do período em estudo, mantiveram prescrição e dados ativos em ficheiro.
São vários os estudos que afirmam que os iSLGT2 são fármacos com eficácia, influenciando positivamente tanto os valores de HbA1c, como os de IMC e PA, bem como resultados clínicos cardiovasculares. 13-16
O estudo EMPA-REG verificou que a empagliflozina, em comparação com o placebo, foi associada a um bom controlo glicémico, verificando às 206 semanas de tratamento (3,95 anos) diferenças médias de HbA1c entre os PMD2 nos braços do estudo placebo e empagliflozina 60mg id de -0,36%. Muitas PDM2 não atingiram as metas glicémicas estipuladas pelas diretrizes internacionais (≤7%), situando-se o nível médio de HbA1c em 7,81% no grupo que tomou a empaglifozina comparativamente aos 8,16% do grupo placebo. 13
O estudo CANVAS evidenciou que a diferença média no nível de HbA1c entre o grupo que tomou a canagliflozina e o grupo placebo foi de -0,58% e a diferença média no peso corporal foi de -1,60kg após 338 semanas de seguimento (6,49 anos). No entanto, após esse mesmo número de semanas, os níveis médios de HbA1c dos doentes que tomaram a canagliflozina ficaram-se pelos 8,05% comparativamente aos 8,25% do grupo placebo, não atingindo também os valores ≤7%.14
Um estudo da American Heart Association revelou que a toma de iSLGT2 resultou numa redução média de 0,39% nos valores de HbA1c e de 2,9 kg após dois anos de toma em comparação com outras medicações. 15
Os resultados do presente estudo revelam que apenas o IMC teve uma redução estatisticamente significativa, corroborando os dados obtidos por outros estudos. 13,16 A HbA1c teve uma dinâmica de crescimento negativa de 0,009, comparando-se com o já observado. 13-16 O PA revelou uma dinâmica de crescimento não significativa de +0,007. O facto de o IMC ter tido dinâmica de crescimento negativa, contrastando com uma dinâmica positiva de PA, pode, em parte, ser justificado pelo intervalo de cinco anos entre as observações e, durante o qual, a sarcopenia, pela menor atividade física, se terá instalado. E a atividade física, que é uma das armas terapêuticas para o controlo da PDM2, pode reduzir-se à medida que a idade aumenta.
A evolução da prevalência do controlo das PMD2, com o referencial de HbA1c ≤7%, foi de 34% em 2017 para 32,1% em 2022, Δ=-5,50; e para o de HbA1c ≤8%, de 73,7% em 2017 para 74% em 2022, Δ=+0,04. Ao ler estes valores, segundo o grupo etário para período de avaliação, verificam-se dinâmicas de crescimento negativas de -12,9 para PDM2 com idade inferior a 65 anos e de -0,02 para idade ≥65 anos.
Assim, a leitura de situação de controlo deve considerar as diferenças que podem ajudar a perceber estes resultados. A utilização destes relativamente novos e promissores medicamentos no controlo da PDM2 parece, populacionalmente, ser diferente da obtida em ensaios clínicos, por fatores vários que devem agora ser estudados. Como fatores poderemos pensar em menor atividade física, sarcopenia, menor adesão à terapêutica, diferente literacia, patologias hematológicas, polifarmacoterapia e mesmo alterações alimentares com o aumento da idade. Igualmente deve merecer estudo futuro o aumento do PA, que aqui é assumido como um viés sistemático e que deve ser padronizado na sua forma de avaliação. Ao aumentar, o PA pode significar obesidade visceral, que se sabe ser uma das causas para a insulino-resistência. 11 Os valores da HbA1c, que determinam prevalência e controlo, estão, ainda assim, em linha com os dos estudos EMPA-REG e CANVAS. 13-14
A leitura dos resultados deve ser, no entanto, cautelosa. Apesar de provirem de uma amostra aleatória de PDM2 do Centro de Portugal podem existir diferenças quanto à sua composição socioeconómica, literacia em diabetes, atividade física e a sua tipologia com outras regiões de Portugal. Também a atividade desenvolvida pelas equipas de saúde em cuidados de saúde primários (e não só dos médicos de MGF que nelas participam) pode ser diferente em função dos contextos organizacionais de cada ACeS. A prescrição de estilos de vida saudáveis e sua adesão são fatores importantes que no presente estudo não foram considerados e que se sabe serem atendidos em ensaios clínicos. 13-14 Devem ainda considerar-se como fatores confundidores, ou mesmo viéses, outras terapêuticas simultâneas, como metformina e análogos de GLP1, que se desconhece. Igualmente são desconhecidos os iSGLT2 prescritos e a sua dose e posologia. No entanto, como nos ensaios clínicos, os resultados foram obtidos adicionando o medicamento ao tratamento farmacológico que as normas nacionais e as guidelines aconselhavam à data de prescrição. 17-18 Finalmente, dever-se-á notar o facto de que o estudo decorreu ao longo de cinco anos, incluiu os cerca de dois anos (2020 e 2021) da pandemia a COVID-19 que, por ter sido uma situação atípica em todo o mundo, poderá ter influenciado os resultados. Entre 2017 e 2019, em estudo de semelhante metodologia mas de população de maiores dimensões, verificaram-se melhores valores para HbA1c e IMC, estando o PA pior. 19 Igualmente, e quanto aos registos, deve haver algum cuidado na leitura pela ausência de padronização na mensuração do PA.
No entanto, estes resultados permitem, dada a sua forma de obtenção, perceber o resultado no mundo real dos registos em cuidados de saúde primários, em particular da medicina geral e familiar e, em particular, na região Centro de Portugal. Não foi possível obter informação sobre a adesão à terapêutica, porque não consta no SClínico. O estudo de terapêuticas concomitantes e de patologias associadas não foi possível realizar-se por insuficiências nas saídas informáticas, mas o envelhecimento, a multimorbilidade e a polifarmacoterapia serão o padrão. 20-21
Conclusão
Entre 2017 e 2022, os iSLGT2 foram eficientes na redução do IMC e da HbA1c, embora apenas o IMC tenha tido redução significativa, o mesmo não se verificando com o PA, que teve um aumento não significativo.
A prevalência de PMD2 controladas pelo valor limite de HbA1c <7% teve dinâmica de crescimento negativa de -5,6 e um aumento de +0,4 pelo limite de corte de 8%.
Os registos carecem de melhoria de efetivação pela padronização da medição do PA.
Contributo dos autores
Conceptualização, DPS, LMS, BO, JP; metodologia, DPS, LMS, BO, JP; software, LMS, BO; validação, DPS, LMS, BO; análise formal, LMS, BO; investigação, DPS, LMS; recursos, LMS, JP; curadoria de dados, DPS, LMS; redação do draft original, DPS, LMS; redação, revisão e validação do texto final, DPS, LMS, BO, JP; supervisão, LMS, BO, JP. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.