Introdução
A infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH) continua a alastrar em todo o mundo. A incidência está a aumentar em todos os continentes e em todos os estratos da sociedade. A infeção adquirida por transmissão sexual continua a ser responsável por 80% dos novos casos em todo o mundo. No entanto, desde há vários anos que deixou de ser quase exclusiva de homens que têm atividade sexual com outros homens e de trabalhadores do sexo. Excetuando os países da África Subsariana, onde a incidência da doença continua a aumentar, principalmente entre os indivíduos heterossexuais, no resto do mundo, o risco de contrair uma infeção por VIH com indivíduos dos dois primeiros grupos é exponencialmente maior.1-2
A infeção por VIH pode apresentar-se com sintomas muito inespecíficos ou mesmo inexistentes nas fases aguda e subaguda. 3
A neuropatia periférica (NP) é a sua complicação neurológica mais frequente; no entanto, não é a mais típica forma de apresentação, já que é mais comum em estádios avançados da doença, momento no qual estão presentes outros sintomas e sinais da mesma. 4 É por isso necessário um elevado grau de suspeição para conseguir chegar ao diagnóstico nos cuidados de saúde primários (CSP). Descreve-se uma manifestação atípica de uma infeção que ressalva a complexidade da especialidade de medicina geral e familiar (MGF) e que, apesar da sua tendência decrescente sustentada nos países da Europa Ocidental, em Portugal mantém elevadas taxas de novos diagnósticos. 5
Este caso demonstra características nucleares da MGF, como a abordagem da doença, reconhecendo particularidades das mesmas em todas as fases de evolução e a tomada de decisão baseada em conhecimentos sólidos sobre a epidemiologia da comunidade que serve. Destaca também o facto dos CSP serem a porta de entrada de todo o sistema de saúde e como o médico de família se assume como fulcral neste diagnóstico e na qualidade de vida futura do doente.
Descrição do caso
Utente de 21 anos, sexo masculino, solteiro, raça negra, de nacionalidade angolana, estudante do ensino superior, inserido numa família de co-habitação e que reside há três meses em Portugal. Tem, como antecedentes pessoais de relevo, asma e malária cerebral aos oito anos de idade. Nega antecedentes tabágicos, mas refere ser consumidor ocasional de álcool (não quantificável, mas sem binge drinking). Nega outros consumos tóxicos. Não faz qualquer medicação habitual. Sem antecedentes familiares de relevo. Heterossexual, nega história de infeções sexualmente transmissíveis. Usa preservativo como método contracetivo. Sem parceira estável atualmente, relata práticas sexuais desprotegidas na relação anterior, que cessou cerca de um ano antes. Nega consumo de drogas parenterais ou história de transfusões no passado. Plano Nacional de Vacinação angolano completo, com imunização completa contra a COVID-19.
Recorre a uma consulta não programada nos CSP para solicitar a emissão de um atestado médico de forma a justificar o absentismo escolar. Quando questionado sobre o motivo do absentismo relata quedas frequentes ao longo do último mês, associadas a mialgias e sensação de diminuição da força nos membros inferiores que chegavam a dificultar a deambulação. Nega disestesias. Além disso, mostra preocupação pelo impacto que esta sintomatologia tem assumido no seu dia-a-dia, mas também na sua atividade académica. Ao exame objetivo encontra-se apirético e hemodinamicamente estável. No exame neurológico constata-se diminuição da acuidade visual no olho esquerdo, presente desde a infância, atribuída a sequela da malária. Objetiva-se também diminuição da força nos quatro membros, de grau 4 em 5 no membro superior esquerdo e 4+ em 5 nos restantes membros. Sem alterações cutâneas ou meningismo. Sem estigmas de uso de drogas parenterais ou alcoolismo. Avaliação da orofaringe sem alterações. Não se identificam gânglios palpáveis na região occipital, cervical, supraclavicular, axilar ou inguinal. A auscultação cardíaca e pulmonar estava dentro dos parâmetros da normalidade. Nega sudorese, perda de peso ou evidência de febre nos últimos meses. Sem outras alterações na avaliação médica.
Consultado o Registo de Saúde Eletrónico verifica-se que havia sido avaliado em contexto de urgência hospitalar com a mesma sintomatologia em múltiplas ocasiões. Realizou um estudo analítico onde apresentava neutropenia de 2,29×109/L e um aumento da creatinaquinase (CK) total de 273 U/L. Foi incentivado a procurar avaliação nos CSP, dado não se tratar de uma situação que requeresse cuidados imediatos.
Dada a sintomatologia do doente, as hipóteses diagnósticas propostas foram apresentação inicial de uma doença autoimune ou de uma patologia neuromuscular degenerativa, neuropatia periférica por compressão ou ainda uma infeção vírica.
Na consulta foram pedidos exames complementares de diagnóstico (ECD): hemograma completo, estudo da coagulação, ionograma, creatinina, ureia, glicose, aspartato aminotransferase, alanina aminotransferese, gama-glutamiltransferase, fosfatase alcalina, CK total, vitamina B12, proteína C reativa, velocidade de sedimentação, anticorpos antinucleares, pesquisa de anticorpo HLA-B27, fator reumatoide, perfil lipídico, hormona tiroestimulante e T4 livre, serologias para pesquisa de citomegalovirus, toxoplasmose, vírus Epstein Barr, VIH 1 e 2, anticorpo anti-VHC, antigénio HBs e testes não treponémicos (VDRL). Para além do estudo analítico foi também pedido um exame eletromiográfico dos quatro membros, bem como tomografias computorizadas (TC) do crânio, da região cervical e lombar.
Cerca de três semanas após o primeiro contacto com os CSP vem novamente à consulta para mostrar os resultados dos exames pedidos. Nestes destaca-se apenas uma neutropenia de 1,23×109/L e a positividade para a infeção por VIH.
O doente foi então referenciado para a consulta de infeciologia. Após a realização de uma primeira consulta foram pedidos novos ECD com vista ao início da terapia antirretroviral. Apresentava 775 linfócitos CD4 e positividade para o VIH-1 de subtipo G, sem mutações.
Iniciou terapia antirretroviral com lamivudina 300 mg e dolutegravir 50 mg, com boa tolerância. Atualmente, o doente apresenta melhoria das quedas e não manifesta nova sintomatologia, ainda que relate a mesma sensação de falta de força. Mantém acompanhamento regular na consulta de infeciologia.
Comentário
As complicações neurológicas estão descritas em todas as fases de evolução da infeção por VIH, sendo a NP a mais frequente. 4 Pode atingir 30 a 60% de prevalência nos doentes infetados e resulta de degeneração axonal. 6
Entre as várias apresentações clínicas da NP, a polineuropatia simétrica distal é a mais comum. 4 Trata-se uma polineuropatia que afeta as extremidades, sendo a apresentação nos membros superiores, por norma, mais tardia que nos membros inferiores (MI). Caracteriza-se por uma afetação nervosa mista, sensorial e motora. Entre as manifestações deste quadro encontram-se parestesias, distesias e/ou diminuição/abolição dos reflexos osteotendinosos. As sensibilidades álgica, térmica e vibratória podem apresentar afetação variável. Na avaliação da força, estes doentes podem manifestar uma diminuição da mesma nas extremidades, ainda que de forma discreta, 4,7-8 mas na maioria das vezes esta está conservada. 6
Diversos estudos implicam fatores inflamatórios na patogénese sem ser conhecido o mecanismo exato, mas acredita-se que terá uma etiologia multifatorial. 6 Com a progressão do quadro são também frequentemente relatadas queixas álgicas intensas. Consequentemente, a qualidade de vida destes doentes é afetada com o comprometimento da sua autonomia. 4
Além da NP associada à infeção por VIH, a literatura descreve uma associação reconhecida entre esta infeção e o síndroma de Guillan-Barré. 9 É uma apresentação mais típica de fases precoces da infeção. 9 Este síndroma advém da imunossupressão provocada pela infeção por VIH, impulsionando as infeções oportunistas como por citomegalovirus. 9 )Clinicamente apresenta-se como uma NP sensitivo-motora, onde as parestesias e a fraqueza nos MI são os sintomas mais reconhecidos ao diagnóstico. 9
O tratamento da NP é sintomático, sendo os antidepressivos tricíclicos algumas das opções que mostraram superioridade ao placebo. 10 No momento não existe um gold standard para o diagnóstico. É recomendável excluir sempre outras causas de NP. 10
É, portanto, mandatório recordar a infeção por VIH quando se procuram causas de NP. Desta forma, é necessário inquirir estes doentes sobre comportamentos sexuais de risco ou consumo de drogas, além de procurar sinais e sintomas que possam reforçar a suspeita desta infeção.
A evidência mostra que a NP continua a ser comum, apesar do início precoce da terapia e com recurso a tratamentos cada vez mais adequados. 11 Será necessária mais investigação sobre a patogénese desta condição para possibilitar o desenvolvimento de mecanismos de prevenção e tratamento mais adequados. 12-13
Em conclusão, destaca-se o papel do médico de família no reconhecimento de sinais e sintomas das patologias em todas as fases de evolução, dado este ter sido o primeiro contacto do doente com o sistema de saúde e o papel daquele na orientação adequada do doente na continuação dos seus cuidados. Este relato de caso denota como os CSP tiveram um papel meritório no prognóstico e na qualidade de vida futura deste doente.
Agradecimentos
Os autores gostariam de agradecer a todos os que contribuíram com a leitura crítica deste trabalho.
Contributo dos autores
Conceptualização, CC e CJ; metodologia, CC e CJ; software, CC; validação, CC e CJ; análise formal, CC e CJ; investigação, CC e CJ; recursos, CC e CJ; curadoria de dados, CC; redação do draft original, CC; revisão, validação e edição do texto final, CC; supervisão, CJ. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.