Face à recente decisão do Governo em contratar médicos estrangeiros para o exercício de funções destinadas a médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar (MGF), vimos expor os motivos da nossa perplexidade e descontentamento, bem como a nossa preocupação com o previsível impacto nefasto desta medida no sistema de saúde português e na saúde da população portuguesa.
O bastonário da Ordem dos Médicos (OM) manifestou-se “contra qualquer processo de facilitismo que não respeite a qualidade dos cuidados de saúde (...), que não respeite uma avaliação muito rigorosa das habilitações dos médicos que vêm trabalhar para Portugal”. Já em agosto de 2014, a OM tinha emitido o comunicado A desnecessária contratação de médicos estrangeiros, manifestando: “Há centenas de médicos especialistas a emigrar, incluindo especialistas em Medicina Geral e Familiar, porque o vencimento bruto que lhes é proposto é de 2700 euros mensais, por um trabalho extremamente complexo, desgastante e de alto risco, com desperdício de milhares de milhões de euros em formação médica especializada. (...) Há centenas de médicos a deixar o sector público para o sector privado, perante a passividade do Ministério da Saúde, devido à degradação das condições de trabalho e das condições assistências aos doentes no SNS, fruto de cortes excessivos. (...) Há centenas de médicos precocemente reformados e disponíveis para voltar a trabalhar, incluindo Médicos de Família, desde que com condições minimamente aceitáveis”.1 É efetivamente importante garantir que estes médicos terão as qualificações adequadas na prestação de cuidados de saúde com qualidade à população portuguesa.
Além disto, perante esta medida do Governo, a Amnistia Internacional apelou ao cumprimento dos direitos humanos nos acordos de contratação e permanência de médicos cubanos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) português, reforçando: “Que em qualquer contrato ou acordo que o governo faça, respeite a liberdade e os direitos humanos de todas as partes envolvidas”, pedindo ainda que o Governo “não deixe de desenvolver outras soluções e esforços (...) com mais medidas de retenção de profissionais de saúde (...)”.2
A medicina geral e familiar é uma especialidade médica que surgiu em Portugal no início dos anos 80, 3-4 com a criação dos Institutos de Clínica Geral, do Internato da Especialidade e da formação específica em exercício, sob supervisão, avaliações regulares (interpares e por médicos de outras especialidades), que habilitaram os médicos de MGF a criar uma aliança terapêutica da relação médico-doente e a cuidar da saúde dos seus utentes de uma forma abrangente ao longo de toda a vida - planeamento familiar, vigilância da gravidez de baixo risco, de crianças, adultos e idosos, saudáveis ou com patologia (aguda e crónica) e eventualmente referenciar para recursos da comunidade ou hospitalares. A estrutura formativa do internato, com estágios dos internos em diferentes serviços, tem permitido integrar cada vez mais competências nos cuidados primários e tem sido um dos motores técnico-científicos que tornaram a MGF portuguesa distinta do vulgo clínico geral. Por isso, acreditamos que nesta medida figura mais um retrocesso no caminho da especialidade de MGF praticada por profissionais altamente diferenciados.
O Governo desvaloriza o papel e a formação especializada do médico de família, descredibilizando a especialidade. Após a dureza dos últimos anos, quer nas mudanças das carreiras médicas (Decreto-Lei n.º 177/2009, de 4 de agosto5 e Decreto-Lei n.º 266-D/2012, de 31 de dezembro) 6 quer nas novas funções e burocracias relacionadas com a pandemia COVID-19, agora, com a publicação desta medida, os médicos de família e os médicos internos de MGF estão desmotivados, mas, acima de tudo, preocupados com a saúde em Portugal. Lutam constantemente para que sejam valorizados, respeitados e distinguidos do “médico generalista”/clínico geral.
Atualmente, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o número de utentes com médico de família caiu de 97,5% em 2019 para 96,4% em 2020, 7 apesar da população residente também estar a diminuir.8 Apesar do excesso de mortalidade e baixa natalidade nos últimos anos, atualmente mais de 1,4 milhões de portugueses não têm médico de família, pelo que a cobertura reduziu abaixo dos 90%. Dados também do INE dão conta que 20% dos médicos em Portugal no ativo têm mais de 60 anos - a demografia médica não é novidade. Resumindo, a frase da nossa tutela governativa poderia ter sido formulada do seguinte modo: “A gestão que o Governo tem feito da carreira médica e do SNS tem sido totalmente desadequada. Ao contrário do prometido, cada vez menos residentes têm médico de família”. É necessário capacitar o Serviço Nacional de Saúde de condições de trabalho mais atrativas e salários dignos para captar médicos portugueses para o SNS, evitando a sua emigração para outros países ou para o contexto privado.
Pela lente dos médicos de família, a aposta do Governo deverá ser na contratação de médicos de família em número suficiente para os centros de saúde, na redução drástica da burocracia a que estão sujeitos, na simplificação dos indicadores de desempenho orientados para benefícios em saúde dos utentes e na contratação de outros profissionais para as equipas (enfermeiros, assistentes técnicos, fisioterapeutas, psicólogos, entre outros) também em número suficiente para responder às necessidades. Todos os anos centenas de médicos de família recém-especialistas estão dispostos a serem contratados e receber listas de utentes, mediante contratos de trabalho justos e condições de trabalho condignas que lhes permitam providenciar os melhores cuidados aos seus utentes.
Como olham os recém-especialistas e jovens médicos de família para este status quo da MGF do SNS e para a gestão que tem sido feita nas últimas décadas? Muitos começam a perder a esperança num rumo orientador para o SNS português, um serviço fundado com intenções honestas e concretas de melhorar a saúde universal dos portugueses. Quando algo não funciona, todos temos o dever de dar um passo atrás e refletir acerca do problema, planear e desenhar soluções para reconstruir e, se necessário, fundar novos alicerces. Apenas com um sistema alicerçado em cuidados de saúde primários de excelência poderemos progredir na saúde do país a todos os níveis. Para isso é necessário vontade, motivação, valores e esperança num futuro para todos, mas também entreajuda, comunicação e cooperação, não só com quem nos tutela, mas também entre os diversos níveis de cuidados.
Não estaremos há demasiado tempo a trabalhar num sistema no seu limiar de capacidade e com necessidade de uma reforma profunda? Não estaremos há demasiado tempo divididos no que deveria ser um objetivo comum? Como poderemos reacender a esperança de um SNS que conceda “o direito à proteção da saúde, a prestação de cuidados globais de saúde e o acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social, nos termos da Constituição”? 8
Contributo dos autores
Conceptualização, MSR, MSS, ACG e NF; metodologia, MSR, MSS, ACG e NF; recursos, MSR, MSS, ACG e NF; redação do draft original, MSR, MSS, ACG e NF; revisão, validação e edição do texto final, MSR, MSS, ACG, NF e CP; supervisão, MSR, MSS, ACG e NF. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito