Introdução
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a canábis é a substância ilícita mais consumida em todo o mundo.1 Seja para fins recreativos ou medicinais, o incremento do consumo de canábis que se tem registado nos últimos anos associa-se inexoravelmente ao aumento do aparecimento de efeitos secundários ligados a esta substância. As manifestações clínicas e repercussões do consumo de canábis são variáveis, dependendo de diversos fatores: padrão, duração e quantidade do consumo, tipo de drogas canabinoides consumidas (marijuana, haxixe, canabinoides sintéticos), concentração de tetra‑hidrocanabinol (THC), além das características individuais de cada pessoa. (2 Uma destas consequências, o síndroma de hiperemese por canabinoides (SHC) constitui uma entidade clínica relativamente recente, (3 pouco frequente, verificando-se comummente na prática clínica um atraso no seu reconhecimento, diagnóstico e abordagem. A sua fisiopatologia carece de esclarecimento adicional, uma vez que paradoxalmente a canábis tem sido utilizada, em contexto terapêutico, na redução das náuseas e vómitos associados à quimioterapia e na melhoria do apetite e ganho ponderal. (4 A apresentação típica da SHC caracteriza-se pelo padrão de consumo crónico de canabinoides, episódios de vómitos cíclicos e banhos quentes como forma de alívio sintomático durante a fase aguda. (5 Por sua vez, o período interepisódico diferencia-se pelo retorno ao estado de saúde basal, embora possa persistir dor abdominal ou vómitos ocasionais. É comum a ocorrência de vários episódios hipereméticos ao longo do ano. (6
O presente caso clínico pretende alertar para os possíveis efeitos secundários paradoxais da canábis, dando a conhecer a orientação diagnóstica e terapêutica da SHC. Configura especial relevância, tendo em conta o panorama nacional, em que a canábis se apresenta como a substância ilícita com a maior prevalência de consumo ao longo da vida. (7
Descrição do caso
Mulher de 36 anos, casada, a residir com o marido, desempregada no momento da entrevista. Na admissão no serviço de urgência (SU) foi inicialmente observada pela cirurgia geral por quadro com três dias de evolução de dor abdominal epigástrica, náuseas e vómitos. Negada febre, outras queixas gastrointestinais ou urinárias. Ao exame objetivo apresentava-se sudorética e inquieta, sem outras alterações de relevo. Realizou estudo analítico que evidenciou hiponatrémia (Na+ 132 mmol/L), hipocaliemia (K+ 3,2 mmol/L), aumento da CK (744 U/L), leucocitose (12,1 x10^9/L) e neutrofilia (8,85 x10^9/L), sem outras alterações de relevo; e radiografia do tórax sem alterações. Foi medicada com metoclopramida 10 mg e pantoprazol 40 mg endovenoso, com reduzido alívio das queixas. Posteriormente foi solicitada a observação pela psiquiatria, por referência a comportamento inusitado durante a permanência no SU, nomeadamente solicitações recorrentes para tomar duches quentes, tendo até então tomado cinco duches no SU. Na observação pela psiquiatria, a doente mantinha inquietação associada às queixas de náuseas e ao mal-estar generalizado, pedindo novamente para tomar um duche quente - “Posso tomar mais um banho quente? Só assim alivia...” (sic). No exame do estado mental não se apuraram alterações psicopatológicas de relevo. Realizou diazepam 5 mg e posteriormente duas ampolas de clorpromazina 25 mg intramuscular, com alívio temporário dos sintomas. Adicionalmente, em entrevista telefónica com o marido da doente, este descreveu quadro de náuseas e vómitos alimentares cíclicos com cerca de um ano de evolução.
Relativamente aos antecedentes pessoais médico-cirúrgicos foram negadas doenças/cirurgias e história de internamentos prévios. Quanto aos antecedentes psiquiátricos apresentava história de seguimento irregular em consulta de psiquiatria, com referência ao diagnóstico de perturbação de personalidade Borderline. Como medicação habitual fazia escitalopram 10 mg id, valproato de sódio 500 mg 2 id e olanzapina 10 mg id; negadas alergias medicamentosas. Quanto aos hábitos toxifílicos apurou-se padrão de consumo diário de canabinoides (cerca de três charros/dia) com alguns anos de duração; negado consumo de outras substâncias ilícitas ou consumo imoderado de álcool.
Da consulta dos registos dos cuidados de saúde primários (CSP) apurou-se recurso recorrente por epigastralgias, náuseas e vómitos cíclicos no último ano. Neste sentido, o seu médico de família já tinha solicitado controlo analítico - sem alterações de relevo - e endoscopia digestiva alta, que a doente ainda não tinha realizado.
Após a integração de toda a informação reunida foi colocada a hipótese diagnóstica de síndroma de hiperemese por canabinoides. Apesar da realização de terapêutica dirigida ao alívio sintomático em fase aguda, a doente manteve desconforto com náuseas, tendo solicitado alta clínica do serviço de urgência. Foi realizada psicoeducação sobre a condição clínica e recomendada a cessação dos consumos a fim de evitar novos episódios.
Comentário
Este caso constituiu um desafio diagnóstico dada a baixa suspeição clínica da SHC, que se associa frequentemente a um atraso significativo no diagnóstico (média de 4,1 anos após o início dos sintomas), com internamentos e investigações repetidas. (6
Com base nas informações clínicas de uma série de casos, Simonetto e colaboradores propuseram os seguintes critérios de diagnóstico para a SHC: a) critério essencial para o diagnóstico - consumo crónico de canabinoides; b) critérios major para o diagnóstico - episódios cíclicos de náuseas intensas e vómitos, alívio dos sintomas com banhos quentes, resolução do quadro com a cessação dos consumos, dor abdominal epigástrica ou periumbilical e consumo semanal de canabinoides; c) critérios sugestivos de SHC - idade inferior a 50 anos, predomínio matinal dos sintomas, perda ponderal de ≥5 kg, manutenção de hábitos intestinais normais, ECD (analítico, radiográfico e endoscópico) sem alterações. (8 Apesar de existir alguma variabilidade, o quadro surge tendencialmente entre um a cinco anos após o início dos consumos. (8-9
Perante um doente com queixas de náuseas, vómitos e dor abdominal, numa abordagem inicial importa excluir doenças estruturais potencialmente fatais. Na maioria dos casos, os ECD (analíticos e imagiológicos) apresentam-se normais ou com alterações inespecíficas. Numa abordagem ulterior interessa abordar as seguintes questões: se existe consumo de canabinoides, caracterizando este consumo relativamente ao seu início, frequência e quantidade; se existe alívio sintomático com banhos quentes; e se existe melhoria das náuseas e vómitos com a cessação dos canabinoides ou recrudescimento das mesmas com a recaída nos consumos.
Quanto ao tratamento, de acordo com a literatura, a única abordagem eficaz a longo prazo consiste na cessação do consumo de canabinoides, sendo essencial realizar psicoeducação neste sentido junto do doente. (6,10 Contudo, na fase aguda deve assegurar-se tratamento de suporte, nomeadamente fluidoterapia endovenosa caso haja desequilíbrios hidroeletrolíticos ou depleção de volume com afeção da função renal. (11 Para alívio sintomático existe evidência para a utilização de benzodiazepinas (em particular, o lorazepam), haloperidol ou capsaicina tópica no abdómen. (10-14 A utilização de antieméticos, como a metoclopramida, revela-se pouco eficaz. (15 Ressalve-se apenas que a evidência se baseia sobretudo em relatos e séries de casos, sendo necessário futuramente estudos prospetivos robustos, controlados e randomizados relativamente à abordagem terapêutica mais eficaz. A fase aguda geralmente dura cerca de 48 h, embora a recorrência seja comum caso o indivíduo retome os consumos. (16 A fase hiperémetica - momento mais frequente da procura de ajuda médica - pode ser um momento-chave para informar e esclarecer o doente quanto à relação dos sintomas com os consumos e que a sua cessação levará à resolução do quadro. Adicionalmente, se necessário, dever-se-á referenciar para apoio especializado.
O atraso no diagnóstico tem impacto a diferentes níveis. Primeiramente para o doente, pelo sofrimento psicológico e incapacidade gerada; e que, devido à manutenção do quadro clínico sem resolução sintomatológica, se submete a ECD, por vezes invasivos e desnecessários, com possível iatrogenia. Mas também a nível económico, pelos gastos associados à realização de múltiplos e dispendiosos ECD e pelo recurso continuado aos cuidados de saúde, seja no SU ou nos CSP. Neste sentido, é essencial uma maior sensibilização da comunidade médica para a SHC, permitindo um screening sistemático da mesma e, consequentemente, uma atempada identificação e adequada abordagem terapêutica.
De realçar ainda a pertinência da consciencialização dos profissionais de saúde para os possíveis efeitos paradoxais associados ao consumo crónico de canabinoides, tendo em conta as suas propriedades antieméticas mais comummente conhecidas, a sua elevada prevalência de consumo em Portugal e o seu uso crescente em contextos terapêuticos.
Contributo dos autores
Conceptualização, CPG, JMP e SR; metodologia, CPG e JMP; investigação, CPG e JMP; recursos, CPG, JMP e SR; redação do draft original, CPG e JMP; revisão, edição e validação do texto final, CPG, JMP e SR; visualização, CPG, JMP e SR; supervisão, SR; administração do projeto, CPG, JMP e SR. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.