Na Grécia Antiga dizia-se que a medicina se fazia com faca, ervas e palavras, mas a investigação tem ignorado o conhecimento “das palavras” e este exige o recurso a outras metodologias que não exclusivamente quantitativas. Será que somos tão bons a abordar a complexidade do ser humano, apenas com cirurgia e fármacos, que podemos dispensar a palavra para cuidar dos nossos pacientes?
Introdução
É frequente invocar a medicina baseada na evidência (MBE) para chancelar a cientificidade de uma informação, afirmação ou resultados de estudos.
O termo MBE foi usado pela primeira vez, em literatura médica, em 1993 por Gordon Guyatt;1 portanto, tem trinta anos, embora tudo leve a crer que não foi ele o autor, mas antes o primeiro a colocá-lo na literatura. Curiosamente, o conceito vem da revolução do ensino médico, no Canadá, quando passou a usar de modo generalizado o ensino baseado em problemas (PBL, de Problem Based Learning).
Em 1996, David Sackett2 publica um artigo, simples e conciso, que marca a história da MBE onde explicita de forma clara “o que é e não é MBE”.
Para David Sackett, a MBE era “o uso consciencioso, explícito e criterioso da melhor evidência disponível para a tomada de decisões sobre os cuidados a prestar”. Mas ainda foi mais explícito ao mencionar que a prática, segundo a MBE, é integrar a perícia clínica de acordo com a “melhor evidência”. Mas o que é a “melhor evidência”? E as metodologias qualitativas não são evidência?
A tríade de tomada de decisão clínica
A boa prática clínica é a integração da perícia clínica com a melhor evidência clínica externa disponível, produzida pela bem elaborada investigação clínica. Por perícia clínica entende-se a proficiência e juízo clínico adquiridos através do treino e experiência clínica, reflexiva e supervisionada por pares e/ou pelos pacientes. A perícia clínica expressa-se pela eficiência no diagnóstico e pela compreensão e uso dos atributos e predicados da pessoa (consultante do médico) para tomar as melhores decisões clínicas no exclusivo interesse deste.
A “melhor evidência” clínica externa disponível é a investigação clinicamente relevante gerada não só pela investigação, mas especialmente pela investigação clínica centrada no paciente.
O termo facilmente se propagou, relegando, no processo de tomada de decisão, a intuição para lugar de menor importância e elegendo a evidência científica como o primado da decisão clínica associada à perícia clínica, esta entendida como o valor do treino clínico. Ninguém pode nem deve tomar decisões sem ter sólida experiência prática supervisionada, estar a par da melhor evidência disponível e conhecer as características do paciente (a medicina centrada no paciente) (Figura 1).
Um clínico sem perícia clínica tem uma prática tiranizada pela evidência que, por mais excelente que seja, não é aplicável ou adequada para todos os doentes; mas sem evidência científica a prática clínica corre o risco de rapidamente ficar obsolescente e prejudicial para o paciente.
Os estudos clínicos randomizados (RCT, de randomized clinical trial) e as meta-análises (de RCT) são o padrão-ouro da evidência científica.
Contudo, existem outros métodos que podem ajudar a responder a questões clínicas, como os estudos de coorte e qualitativos. Para o valor terapêutico de princípios ativos apenas são aceites RCT e meta-análises, se excetuarmos a situação de doenças e fármacos órfãos.
Como acontece em muitas outras situações, quando um termo é usado até à exaustão, não para definir mas para ter um efeito, acaba por ser usado de forma abusiva e ultrapassa o seu significado referencial original para “acoitar” aquilo que não deve fazer parte dele. É como um destino turístico conhecido como um paraíso na terra, que todos procuram pelas suas qualidades, mas se frequentar esse local cair na moda e der estatuto social ainda maior será a invasão, mas já não é pela sua beleza mas antes pelo estatuto que dá.
É o que por vezes sucede com a MBE que alguns investigadores e comunicadores de ciência usam apenas para credibilizar as suas investigações, mas que de científico pouco têm, a não ser a aplicação da “ciência do marketing”.
O problema
O valor científico dos diferentes tipos de estudo varia num contínuo em que num extremo estão os RCTs e meta-análises e, no outro, a opinião de peritos. Neste contínuo de valor há uma grande quantidade de métodos de investigação que podem não constituir evidência tão potente quanto os métodos padrão-ouro, mas têm valor informativo porque ajudam a tomar decisões em situações em que não existem estudos que minimizam os vieses, como são os RTCs. Para além disso, são ótimos geradores de hipóteses de investigação.
A Canadian Task Force foi a primeira a definir níveis de evidência científica, em 1979, a propósito da publicação das suas conclusões sobre o impacto dos exames periódicos para os níveis de saúde.3
As questões de investigação distribuem-se por diferentes categorias: diagnóstico, tratamento, prognóstico e decisão político-económica. Se os RCTs são exequíveis para avaliar o valor dos tratamentos serão sempre os melhores métodos para avaliar o melhor nível de evidência, mas para as outras categorias de investigação nem sempre isso é possível. Temos, então, de criar outras escalas de níveis de evidência adaptadas, como é o caso da Sociedade Americana de Cirurgia Plástica que definiu cinco níveis de evidência para o prognóstico. (4 O Oxford Centre of Evidence-Based Medicine (OCEBM) desenvolveu uma classificação que cruza a probabilidade de melhor evidência com a pergunta de investigação, podendo esta ser de tratamento, diagnóstico, prognóstico ou de rastreio. (5 Porque me parece ser um bom conselho, transcrevo o aviso inicial do manual de instruções desta classificação: “nenhum sistema de classificação de evidência ou ferramenta de decisão pode ser usado sem uma boa dose de julgamento e reflexão”* . (6
Todas estas classificações são muito úteis para cientistas, clínicos e decisores políticos, mas deixam de fora as metodologias qualitativas, que são importantes e incontornáveis para os estudos da Comunicação em Saúde, onde a aleatorização e ocultação são difíceis. No âmbito do estudo da medicina centrada na pessoa recorre-se a estudos perspetivos (não confundir com prospetivos), que procuram estudar os pontos de vista ou a posição relativa das pessoas perante determinados fenómenos, isto é, estudam a forma como determinado fenómeno é visto num dado contexto. Os estudos quantitativos são ótimos para responder ao quanto, mas não ao como dos fenómenos. Ora as abordagens linguísticas, a análise conversacional ou de conteúdos, entre outras metodologias qualitativas, não estão previstas nas classificações de níveis de evidência atuais que preveem apenas estudos quantitativos (se excluirmos a opinião de peritos).
Um manifesto assinado por 42 clínicos e filósofos de todo mundo (mas sem portugueses), integrados numa rede de investigação que trabalha especificamente as questões de causalidade em medicina, afirma que para considerar “evidência” é necessário conhecer o contexto em que a “evidência” foi colhida, como é que ela é interpretada e a sua aplicabilidade na prática de tomada de decisões. (7
Para isso deve-se considerar a possibilidade de outras metodologias que não apenas as quantitativas, que podem acrescentar conhecimento ou iniciar uma hipótese a demonstrar.
Uma abordagem mais alargada da evidência é importante para as pessoas que precisam de informação clara sobre benefícios e danos dos fármacos e de todas as demais intervenções clínicas para tomar decisões em contextos de incerteza.
Existe uma relutância em aceitar um argumento de causalidade em áreas de incerteza, mas isso não é motivo para não se falar de causalidade, mas antes para melhorar os métodos que permitam conhecer melhor o que é ainda incerto e o que mais se aproxima da certeza.
A proposta
É neste contexto que o Comité de Políticas e Práticas da EACH (International Association for Communication in Healthcare), conhecido por pEACH, argumenta que as abordagens anteriormente descritas são desafiantes e exigem medidas de qualidade diferentes das usadas noutro tipos de estudos, mas que preenchem necessidades de investigação que não podem ser satisfeitas pelas metodologias quantitativas e, por isso, sugere, não uma adesão estrita a qualquer definição existente ou aos achados de revisões sistemáticas e meta-análises rigorosas, mas uma combinação delas com a interpretação e aplicação realista que pode ser oferecida por aqueles com experiência neste campo. (8 Nesta linha de raciocínio, Smith9 propõe a classificação da evidência, em seis níveis, descrita na Tabela 1.
Esta classificação tem em consideração a investigação que dá informação de grande valor para identificar o que é melhor para as pessoas, investigação e ensino, mas que não pode ser obtida com ensaios clínicos.
Com esta reflexão pretendo sobretudo chamar a atenção para a importância dos estudos qualitativos para conhecer uma parte cega do nosso (médico) conhecimento: as perspetivas dos pacientes e da população que servimos. Para além disso, são fundamentais para conhecer o impacto do que dizemos e do como dizemos. Na Grécia Antiga dizia-se que a medicina se fazia com faca, ervas e palavras, mas a investigação tem ignorado o conhecimento “das palavras” e este exige o recurso a outras metodologias que não exclusivamente quantitativas. É através das “palavras” que se constroem relações, se promovem mudanças e desenvolvimento/crescimento psicossocial. Será que somos tão bons a abordar a complexidade do ser humano, apenas com cirurgia e fármacos, que podemos dispensar a palavra para cuidar dos nossos pacientes? Notem: “cuidar” tem a mesma raiz etimológica que “curiosidade”. Então, ter curiosidade pelo nosso paciente é cuidar dele e a “palavra” é imprescindível para satisfazer a curiosidade.