Introdução e definição do problema
Em outubro de 2022 foi comunicado um problema de abastecimento do medicamento Ozempic®, situação que afetou Portugal, bem como outros países europeus e os Estados Unidos da América (EUA).1
Este medicamento, cujo princípio ativo é o semaglutido, um análogo do péptido-1 semelhante ao glucagon (aGLP-1), encontra-se indicado em Portugal para o tratamento de adultos com diabetes mellitus tipo 2 insuficientemente controlada. Alegadamente, a ruptura de stock do Ozempic® deveu-se à prescrição off-label do mesmo, o qual terá sido sobejamente prescrito a doentes não diabéticos, com a finalidade de perda de peso, um dos efeitos conhecidos desta classe farmacológica.
Que problemas surgem desta prática? Vários, entre os quais ético-sociais e económicos, que se interligam entre si.
Contextualização acerca dos aGLP-1
Os aGLP-1 mimetizam a incretina GLP-1, uma hormona que estimula a secreção de insulina e reduz a secreção de glucagon de forma glucose-dependente, atrasando o esvaziamento gástrico e promovendo a saciedade. (2 Para além do controlo glicémico, os aGLP-1 têm demonstrado inúmeros benefícios, como a redução do risco cardiovascular e a perda de peso. (3-4 Estes fármacos foram disponibilizados a partir de 2007 e vieram revolucionar o paradigma do tratamento da diabetes mellitus tipo 2. (4
Em Portugal, para além do Ozempic®, encontram-se atualmente comercializados outros três medicamentos aGLP-1 com indicação para o tratamento da diabetes mellitus tipo 2: Victoza®, Bydureon® e Trulicity®, cujos princípios ativos são, respetivamente, liraglutido, exenatido e dulaglutido. A sua administração é diária no caso do liraglutido e semanal no exenatido e no dulaglutido.
Particularizando para o caso do medicamento aqui em análise, o Ozempic® encontra-se indicado no tratamento de “adultos com diabetes mellitus tipo 2 insuficientemente controlada, como adjuvante à dieta e exercício, em monoterapia, quando a metformina é considerada inapropriada devido a intolerância ou contraindicações; ou em adição a outros fármacos para o tratamento da diabetes”. (5 No entanto, este medicamento encontra-se apenas comparticipado pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) para o tratamento da diabetes mellitus tipo 2 em doentes insuficientemente controlados e que apresentem um índice de massa corporal (IMC) igual ou superior a 35 kg/m2, de acordo com a informação do relatório público de avaliação, datado de 12 de março de 2021. (6 Aliás, esta comparticipação é idêntica para os restantes medicamentos aGLP-1 indicados para o tratamento da diabetes mellitus tipo 2. Apesar disso, têm sido prescritos também para os diabéticos tipo 2 com IMC inferior a 35 kg/m2. De facto, considerando as últimas recomendações da American Diabetes Association, os aGLP-1 são um dos fármacos de primeira linha no tratamento dos doentes diabéticos tipo 2 que apresentem doença cardiovascular aterosclerótica ou elevado risco de a desenvolver, independentemente de estarem medicados com metformina ou do seu controlo glicémico. (7 Contudo, a ruptura de stock do fármaco Ozempic® parece ter ficado a dever-se à prática frequente da prescrição do fármaco a pessoas não diabéticas, com a finalidade de perda de peso. Neste caso falamos de uso off-label do medicamento - prescrição de um medicamento com uma indicação diferente da aprovada na respetiva autorização de introdução no mercado.
Nos EUA, esta mesma molécula foi aprovada pela U.S. Food and Drug Administration para o tratamento do excesso de peso e obesidade em 2021. Trata-se do medicamento Wegovy®, sendo que a dose indicada para o tratamento do excesso de peso e obesidade é superior à que é utilizada para o tratamento da diabetes mellitus tipo 2. (8
Em Portugal também existe um aGLP-1 com indicação formal para o tratamento da obesidade ou excesso de peso (se IMC igual ou superior a 27 kg/m2) com comorbilidades, o Saxenda®, cujo princípio ativo é o liraglutido (em dose também superior à utilizada no tratamento da diabetes). Este medicamento não beneficia da comparticipação do Estado.
Implicações éticas
Como se calcula, a utilização off-label deste medicamento, que resultou em problemas no seu abastecimento, levanta várias inquietações éticas.
Analisaremos estas questões tendo como base os princípios éticos de Beauchamp e Childress: (9
Beneficência. As ações dos profissionais devem ter em vista o melhor interesse do doente. E, neste sentido, não se duvida da boa intenção do médico que prescreve Ozempic® (semaglutido) ao seu doente que, não sendo diabético, é obeso ou tem excesso de peso. De facto, o médico está a atuar com vista ao melhor interesse do seu doente, no sentido em que sabe que o mesmo lhe trará benefício pelo seu efeito de perda de peso. No entanto, aqui é ignorado o interesse da comunidade em que o doente está inserido, com claro prejuízo para esta.
Não maleficência. Não se deve prejudicar o doente de forma consciente. Quando se prescreve semaglutido a um doente não diabético para auxílio de perda de peso não se espera que esse ato provoque malefícios no doente. À partida, os efeitos adversos da administração do fármaco serão semelhantes aos já conhecidos da molécula aquando da sua administração em diabéticos.
Autonomia. Deve respeitar-se a opinião do doente, a qual deve ser voluntária e esclarecida. O doente é informado que existe um medicamento que auxilia na perda de peso e decide se é da sua vontade a sujeição a tal tratamento. Este princípio também pode ser analisado do ponto de vista do profissional de saúde. Por exemplo, um doente obeso (mas não diabético) solicita ao médico que lhe prescreva o Ozempic® (semaglutido), porque conhece alguém que faz esta terapêutica com bons resultados. Neste caso, o médico poderia rejeitar o pedido, de acordo com os seus princípios e a sua consciência. Deveria ainda informar o doente sobre os fármacos existentes no mercado devidamente aprovados para esse fim.
Justiça. O princípio da justiça é indubitavelmente o mais importante a ser discutido neste caso, o qual teve como resultado a privação do medicamento para os diabéticos. Este princípio ético assenta na premissa de que os recursos são escassos e limitados e implica equidade na distribuição dos mesmos, tendo em conta que estamos inseridos numa sociedade. O conceito de racionamento em saúde, entendido como a retenção de potenciais intervenções benéficas devido ao custo inerente às mesmas, está presente em vários níveis de sistemas de saúde em todo o mundo. (10 Portanto, se os recursos são escassos e o racionamento em saúde é inevitável, este deve ser feito de modo justo e eficiente. A avaliação económica de um medicamento, nomeadamente para efeitos de atribuição de comparticipação, releva aqui a sua importância. De facto, esta avaliação pode ser feita de acordo com quatro tipos de estudos: minimização de custos, custo-benefício, custo-efetividade e custo-utilidade. (11
Impacto económico
No período de janeiro a outubro/2022, de acordo com o Infarmed, o SNS gastou aproximadamente 1,3 mil milhões de euros com medicamentos, mais 10,6% que no período homólogo do ano anterior. Os medicamentos antidiabéticos surgem em terceiro lugar na análise das classes terapêuticas com maior utilização. São, no entanto, os fármacos que resultam em maior encargo para o SNS. O semaglutido foi o medicamento com maior aumento de despesa, tendo custado mais de 24 milhões de euros ao SNS, neste período. (12
A prevalência estimada da diabetes na população portuguesa (idades entre os 20 e os 79 anos) é de 13,6%, segundo dados de 2018 publicados no Relatório Anual do Observatório Nacional da Diabetes. (13 Por sua vez, a obesidade é uma doença que afeta mais de 20% da população adulta portuguesa e o excesso de peso é um importante fator de risco para a saúde, cuja prevalência ultrapassa os 50%.14 Estas condições apresentam outros fármacos, além dos aGLP-1, aprovados para o seu tratamento em Portugal. Contudo, nenhum é comparticipado pelo Estado. Assim se percebe o elevado impacto económico para o SNS do uso off-label do Ozempic®, resultando num aumento da despesa não prevista.
Por outro lado, devemos lembrar que tanto a diabetes como a obesidade e o excesso de peso acarretam outros custos diretos em saúde, nomeadamente em consultas, internamentos hospitalares, em meios complementares de diagnóstico e de terapêutica. Quanto menos controlada a doença estiver ou, de outra forma, quanto mais grave for o problema tanto maiores serão os custos. E aqui deve incluir-se o impacto económico indireto.
Doenças que, por exemplo, causem elevada mortalidade neonatal têm impacto no crescimento populacional e económico de um país. Por outro lado, há doenças que, embora não sejam letais, afetam a qualidade de vida dos indivíduos devido à morbilidade que causam. A combinação de anos de vida perdidos por morte prematura e por incapacidade denomina-se “anos de vida ajustados por incapacidade” (DALYs, do inglês, Disease-Adjusted Life Year). (15 Esta métrica permite comparar o impacto de diferentes doenças e fatores de risco na saúde das populações. É um recurso importante para perceber as áreas da saúde onde é necessária maior intervenção e pode ser utilizado para estudos de custo-efetividade.
Em Portugal, segundo o relatório Global Burden of Disease de 2019, a diabetes é a quarta doença responsável por mais anos de vida ajustados pela incapacidade, resultando em 1.509,37 DALYs por 100.000 habitantes. (16 Quanto a fatores de risco, ter um IMC elevado é também o quarto mais associado a DALYs, causando 2.478,33 DALYs por 100.000 habitantes. (17 Tratam-se, portanto, de problemas de saúde com um forte impacto na qualidade de vida dos indivíduos, causando a perda de anos de vida saudável. Isto resulta em custos indiretos ou intangíveis para a sociedade e para o indivíduo, sendo por vezes difíceis de avaliar, mas que se traduzem, por exemplo, em menor produtividade dos indivíduos ou agravamento do estado psicossocial das famílias, respetivamente. (11
O papel da medicina preventiva
Devem ser tomadas medidas para reduzir o impacto económico, sem perder, contudo, a efetividade no tratamento e prevenção da diabetes, bem como do excesso de peso e da obesidade. Portugal implementou, em 2012, o Programa Nacional para a Promoção de Alimentação Saudável e, em 2016, o Programa Nacional para a Promoção da Atividade Física, que se constituem como programas de saúde prioritários. As suas ações são definidas por várias estratégias, que englobam a divulgação de informação e capacitação do cidadão, criação de ambientes promotores de estilos de vida mais saudáveis, estabelecimento de parcerias intersetoriais e desenvolvimento de ferramentas de avaliação e aconselhamento ao nível dos cuidados primários e secundários. Efetivamente ambos os programas resultaram numa melhoria em diferentes áreas. Existem hoje plataformas institucionais com materiais de literacia para a saúde, os profissionais de saúde aconselham mais sobre alimentação saudável e prática de atividade física e criaram-se leis que permitiram a redução do teor médio de açúcar em bebidas açucaradas e a diminuição da quantidade de anúncios televisivos promotores de alimentos e bebidas. (18-19 Tem-se verificado uma redução do excesso de peso e obesidade infantil (6-8 anos) (19 e um aumento da atividade física. (18 No entanto, os níveis de sedentarismo também têm aumentado, (18 assim como a prevalência de excesso de peso e de obesidade. (19 A identificação do risco nutricional é feita essencialmente a nível hospitalar, mas apenas 32,4% dos hospitais com rastreio nutricional implementado é que de facto o realizam de forma adequada. (20 A avaliação e aconselhamento sobre exercício físico é essencialmente realizada nos cuidados de saúde primários (CSP), mas em média apenas 2% dos utentes são avaliados. (18
É evidente que existe bastante margem para melhoria no âmbito da saúde preventiva. No contexto dos cuidados de saúde primários, como médicos de família, consideramos que não basta facultar instrumentos de abordagem e aconselhamento sobre estilos de vida. É preciso garantir que são aplicados, o que pode ser feito por médicos e enfermeiros, mas também por outros profissionais de saúde, nomeadamente nutricionistas, cujo rácio nos CSP é de um por cada 86 mil utentes. Isto é claramente insuficiente para uma abordagem preventiva efetiva e com resultados mantidos ao longo do tempo. E este é apenas um exemplo.
Fica claro que se conseguem ganhos em saúde importantes através de programas abrangentes, com intervenções de prevenção primordial e primária. Importa repensar a alocação de recursos e a operacionalização das estratégias em saúde se o que se pretende é melhorar os cuidados em medicina preventiva.