Introdução
A vacinação constitui um importante marco na história da medicina, pelo sucesso que representa em termos de saúde pública.1-3 A imunidade de grupo alcançada através da vacinação em massa alterou o panorama das doenças infeciosas a nível mundial, permitindo a diminuição da sua incidência e consequente redução da morbimortalidade. (2,4-5
No último século assistiu-se a um rápido declínio da taxa de mortalidade infantil em Portugal, sendo atualmente uma das mais baixas da Europa. (6 Em 1960, o reconhecimento de elevadas taxas de mortalidade infantil devido a doenças infeciosas, nomeadamente poliomielite, pertússis, tétano e difteria, motivou a criação e implementação do Programa Nacional de Vacinação (PNV) em 1965, (6 que atualmente contempla treze vacinas, administradas gratuitamente em idade pediátrica. (7-8
Em Portugal, a cobertura vacinal varia entre 96,1% e 99,1%.8 No entanto, a crescente emergência de correntes antivacinação poderá comprometer o sucesso alcançado, (1,9-11 contribuindo para o reaparecimento de doenças evitáveis pela vacinação, sendo o sarampo e a tosse convulsa os exemplos mais paradigmáticos desta realidade. (4,12 Dado tratar-se de um problema à escala mundial, a Organização Mundial da Saúde classificou-o em 2019 como uma das “dez ameaças à saúde global”. (9,13
O adiamento ou recusa do programa vacinal é uma realidade observada entre pais, mas também entre profissionais de saúde responsáveis pelo seu aconselhamento e administração. (9,14-15 As razões mais frequentemente implicadas prendem-se com o desconhecimento relativamente às doenças prevenidas pelas vacinas, a desconfiança da sua eficácia e segurança8,16-19 e a noção do desconforto causado pela sua administração. (10
As vacinas são, na realidade, vítimas do seu próprio sucesso. (11 A diminuição da exposição a doenças evitáveis através da vacinação faz com que a população esteja menos sensibilizada para a sua gravidade, assim como para a real eficácia das vacinas, o que justifica a postura cética de alguns relativamente à sua administração. (4,11-12 Por outro lado, a transmissão de informação pouco credível através dos meios de comunicação social e da Internet, nomeadamente a alegada relação de causa-efeito entre algumas vacinas e determinadas patologias, como o autismo, tem levantado dúvidas por parte dos pais quanto à sua segurança. (20
Aos profissionais de saúde compete divulgar o programa, motivar as famílias e aproveitar todas as oportunidades para vacinar os mais suscetíveis, nomeadamente através da identificação e aproximação a grupos com menor acessibilidade aos serviços de saúde.
Sendo os profissionais de saúde os principais vetores dessa informação torna-se fundamental investir na sua formação, de forma a desmistificar falsos conceitos que constituem barreiras ao cumprimento do esquema vacinal, assegurando, assim, a proteção precoce de uma população vulnerável, com consequentes ganhos em saúde. (2-3,5,9,12,14-17,19
Deste modo, são objetivos do presente estudo avaliar o grau de conhecimento sobre as falsas contraindicações à vacinação vigente no PNV e caracterizar práticas de aconselhamento da vacinação em idade pediátrica, comparando os resultados em função da categoria profissional, da atividade clínica, dos anos de carreira e do local de trabalho.
Métodos
Estudo quantitativo, transversal, descritivo e correlacional, baseado em questionário de autopreenchimento, disponibilizado online, entre março e julho/2018, divulgado aos médicos pela Ordem dos Médicos e aos enfermeiros através de grupos existentes nas redes sociais.
Questionário constituído por casos clínicos e afirmações sobre contraindicações à vacinação expressas no PNV em vigor à data da realização do trabalho, bem como atualmente, publicado pela Direção-Geral da Saúde (DGS), disponível em http://www.dgs.pt. Resposta por escala tipo diferencial semântico (1. Discordo totalmente; 5. Concordo totalmente) e dicotómica (Verdadeiro/Falso).
Para a validação do questionário recorreu-se a um painel de quatro peritos que trabalham na área da vacinação e infeciologia pediátrica, através da aplicação de uma técnica de Delphi. Na primeira ronda, apesar do Índice de Validade de Conteúdo (IVC) médio ter sido aceitável, os peritos sugeriram correções linguísticas para evitar dúvidas na interpretação; sugeriram a eliminação de questões consideradas menos pertinentes e a inclusão de questões que abordassem aspetos controversos/geradores de dúvidas em torno da vacinação. Na segunda ronda apurou-se um IVC médio de 85%, obtendo-se deste modo a validação da versão final do questionário. (21
As respostas na escala diferencial semântica e questões dicotómicas foram recodificadas em resposta «Correta» e «Incorreta», de acordo com a sua interpretação no referencial teórico. A amostra por cotas de 430 clínicos foi analisada por categoria profissional [Médico (M); Enfermeiro (E)], atividade clínica [profissionais responsáveis pela prescrição/administração de vacinas em idade pediátrica (PA); profissionais que não prescrevem/administram vacinas em idade pediátrica (NPA)], anos de carreira [A1 (<20 anos); A2 (≥20 anos)] e local de trabalho [cuidados de saúde primários (CSP); hospital/clínica privada (H)].
A associação entre as variáveis foi estudada com o teste do Qui-quadrado, χ2. A análise estatística foi efetuada em SPSS® v. 24, tendo-se fixado um nível de significância de 0,05.
O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Centro Hospitalar de Leiria e foi assegurada a participação voluntária, anónima e confidencial.
Resultados
Obtiveram-se 430 respostas, das quais 82% (351) de profissionais do género feminino e 35% (152) da faixa etária dos 35 aos 44 anos. Mais de metade dos respondentes [59% (n=254)] pertencia ao grupo de profissionais que prescreve/administra vacinas em idade pediátrica (PA), sendo 88% (n=168) médicos. Dos que faziam parte do grupo que na sua prática clínica não prescrevem/administram vacinas em idade pediátrica (NPA), 64% (n=154) eram enfermeiros (E).
Dos respondentes, aproximadamente dois terços [63% (n=270)] exercia funções nos cuidados de saúde primários (CSP) e a maioria tinha pelo menos 20 anos de carreira [74% (n=318)]. A caracterização da amostra encontra-se representada na Tabela 1.
No que respeita aos resultados em função da categoria profissional, os enfermeiros consideraram mais frequentemente como contraindicações à vacinação a doença ligeira aguda, com ou sem febre (M 38%, E 61%; p<0,001), a terapêutica antibiótica concomitante (M 41%, E 61%; p=0,017) e os antecedentes pessoais de autoimunidade (M 34%, E 55%; p<0,001). A convalescença de doença aguda foi considerada uma contraindicação à vacinação por ambos os grupos profissionais, com discreto predomínio entre os enfermeiros (M 56%, E 67,5%; p<0,001).
Quanto à administração da vacina antirrotavírus foi consensual a sua recomendação, independentemente da frequência de infantário (M 92%, E 83%; p=0,007). Pelo contrário, apesar da ausência de significado estatístico, a maioria dos médicos e enfermeiros considerou que a administração de vacinas vivas poderá ser realizada nas quatro semanas que antecedem uma terapêutica imunossupressora (M 67,9%, E 66,7%; p=0,788).
Os resultados em função da categoria profissional encontram-se resumidos na Tabela 2.
Relativamente à atividade clínica, os profissionais que habitualmente não prescrevem nem administram vacinas em idade pediátrica consideraram a doença ligeira aguda com ou sem febre (PA 43%, NPA 62%; p<0,001), a terapêutica antibiótica concomitante (PA 43,5%, NPA 63%; p<0,001) e os antecedentes pessoais de autoimunidade (PA 39,5%, NPA 55%; p=0,002) como contraindicações à vacinação.
A história anterior de doença para a qual a criança seria vacinada e a convalescença de doença aguda foram também consideradas contraindicações à vacinação pela maioria dos respondentes de ambos os grupos (PA 52%, NPA 62%; p=0,04 e PA 57%, NPA 71%; p=0,004, respetivamente).
Pelo contrário, foi consensual que a vacina antirrotavírus influencia a gravidade do quadro clínico, independentemente da frequência de infantário (PA 90,9%, NPA 75,6%; p<0,001), e que a vacina antipapilomavírus humano (HPV) poderá ser administrada a adolescentes fora da idade preconizada no PNV, independentemente do início da atividade sexual (PA 98,8%, NPA 95,5%; p=0,031).
Embora sem diferença estatisticamente significativa, a maioria dos respondentes do grupo PA reconhece que o intervalo de quatro semanas apenas deve ser respeitado entre a administração de duas vacinas vivas injetáveis, contrariamente aos do grupo NPA (PA 56,3%, NPA 47,2%; p=0,059).
Os resultados em função da atividade clínica encontram-se descritos na Tabela 3.
Comparando os resultados obtidos entre médicos que prescrevem vacinas em idade pediátrica com aqueles que habitualmente não exercem essa função na sua prática clínica verificou-se que os que pertencem ao grupo NPA consideraram a terapêutica antibiótica concomitante (M-PA 35%, M-NPA 82%; p<0,001), a história pessoal ou familiar de alergias (M-PA 21%, M-NPA 64%; p<0,001), a história anterior de doença para a qual a criança seria vacinada (M-PA 46%, M-NPA 82%; p=0,002), os antecedentes de patologia autoimune (M-PA 29%, M-NPA 73%; p<0,001) e a rinofaringite aguda sem febre (M-PA 18%, M-NPA 59%; p<0,001) como impeditivos ao cumprimento do esquema vacinal.
Contrariamente, a convalescença de doença aguda foi considerada uma contraindicação à vacinação pela maioria dos médicos de ambos os grupos, apesar de um claro predomínio no grupo NPA (M-PA 51,5%, M-NPA 91%; p<0,001). Similarmente, apesar da ausência de significado estatístico verificou-se que, de uma forma geral, os médicos consideraram a história familiar de reação adversa grave a uma determinada vacina como um motivo para adiar o esquema vacinal, com maior expressão no grupo NPA (M-PA 52,4%, M-NPA 72,7%; p=0,053).
Constata-se ainda que os médicos do grupo PA reconhecem, na sua maioria, que o intervalo de quatro semanas apenas deve ser respeitado entre vacinas vivas injetáveis, contrariamente aos do grupo NPA (M-PA 57,1%, M-NPA 31,8%; p=0,027).
Analisando os resultados obtidos entre enfermeiros dos grupos PA e NPA, apesar da ausência de diferenças estatisticamente significativas, verifica-se que a maioria dos profissionais de ambos os grupos considerou os antecedentes de autoimunidade e a história anterior de doença para a qual a criança seria vacinada como contraindicações ao cumprimento do esquema vacinal, com ligeiro predomínio no grupo PA [(E-PA 60,5%, E-NPA 51,9%; p=0,203) e (E-PA 64%, E-NPA 59,7%; p=0,521), respetivamente].
A doença ligeira aguda, a convalescença de doença aguda e a terapêutica antibiótica concomitante também foram consideradas contraindicações à vacinação pela maioria dos enfermeiros, ainda que sem diferenças estatisticamente significativas entre ambos os grupos [(E-PA 57%, E-NPA 63%; p=0,360), (E-PA 67,4%, E-NPA 67,5%; p=0,989) e (E-PA 59,3%, E-NPA 59,7%; p=0,947), respetivamente].
Relativamente aos intervalos entre vacinas constata-se que genericamente os enfermeiros consideraram que seria necessário aguardar um mês entre uma terapêutica imunossupressora e a administração de vacinas inativadas (E-PA 75,6%, E-NPA 77,3%; p=0,766). O mesmo se verifica relativamente ao intervalo entre vacinas vivas orais e vacinas injetáveis, em que a maioria considerou que as primeiras não poderão ser administradas com qualquer intervalo das segundas (E-PA 68,6%, E-NPA 61%; p=0,242).
Os resultados obtidos entre médicos e enfermeiros do grupo PA e NPA estão resumidos na Tabela 4.
Da análise da Tabela 5 verifica-se que os profissionais com mais anos de carreira consideraram mais frequentemente a doença ligeira aguda com ou sem febre (A1 33,9%, A2 56,6%; p<0,001), a terapêutica antibiótica concomitante (A1 39,3%, A2 55,7%; p=0,003), os antecedentes pessoais de doença autoimune (A1 31,3%, A2 50,9%; p<0,001) e a história anterior de doença para a qual a criança seria vacinada (A1 44,6%, A2 60,4%; p=0,004) como impeditivas à administração de vacinas.
As reações locais a vacinas anteriores foram consideradas como uma falsa contraindicação à vacinação pela maioria dos respondentes de ambos os grupos, com predomínio no grupo A1 (A1 94,6%, A2 73%, p<0,001), o que também se verificou relativamente à história pessoal ou familiar de alergias, que consensualmente foi considerada uma falsa contraindicação à vacinação (A1 76,8%, A2 62,3%, p=0,005).
Contrariamente, a convalescença de doença aguda foi apontada como um motivo para protelar a vacinação em ambos os grupos (A1 51,8%, A2 66,4%; p=0,006).
No que respeita aos casos clínicos, a maioria dos respondentes de ambos os grupos recomenda a administração da vacina antirrotavírus independentemente da frequência de infantário (A1 94,6%, A2 84,6%; p=0,006), reconhecendo que a mesma influencia a gravidade do quadro clínico (A1 92,9%, A2 81,8%; p=0,005). Da mesma forma, a maioria dos respondentes, de ambos os grupos, tem conhecimento que a vacina anti-HPV pode ser administrada gratuitamente a uma adolescente que tenha ultrapassado a idade preconizada no PNV (A1 78,6%, A2 88,7%; p=0,008).
Verifica-se ainda que 52,7% dos respondentes do grupo A1 considerou que a vacina VASPR (vacina antisarampo, parotidite e rubéola) pode ser administrada no centro de saúde a uma criança com história de exantema isolado, coincidente com a introdução de gema de ovo (A1 52,7%, A2 40,6%; p=0,026).
Embora sem significado estatístico, a maioria dos respondentes considerou que a administração de vacinas vivas poderá ser realizada nas quatro semanas que precedem uma terapêutica imunossupressora, com ligeiro predomínio no grupo A2 (A1 60,7%, A2 69,5%; p=0,089). O mesmo se verificou relativamente à administração de vacinas vivas após ciclos curtos (<14 dias) de corticoides sistémicos, em que a maioria considerou necessário respeitar o intervalo de um mês entre o término do tratamento e a vacinação (A1 83%, A2 85,2%; p=0,581).
As respostas obtidas em função dos anos de carreira encontram-se resumidas na Tabela 5.
Analisando os resultados em função do local de trabalho verifica-se que os profissionais dos cuidados de saúde primários consideraram mais frequentemente como contraindicações à vacinação a doença ligeira aguda (CSP 58,1%, H 38,1%; p<0,001) e a terapêutica antibiótica concomitante (CSP 60,4%, H 36,3%; p<0,001). Apesar de não ser estatisticamente significativo verifica-se que tendencialmente a convalescença de doença aguda é considerada como motivo para adiar o esquema vacinal pela maioria dos respondentes de ambos os grupos (CSP 65,2%, H 58,1%; p=0,144).
Foi ainda consensual recomendar a vacinação anti-HPV independentemente do início da atividade sexual, com ligeiro predomínio no grupo dos cuidados primários (CSP 99,6%, H 93,8%; p<0,001). No entanto, constata-se que a maioria dos respondentes de ambos os grupos não reconhece que a administração de vacinas vivas está contraindicada nas quatro semanas que antecedem uma terapêutica imunossupressora, sendo esse resultado mais expressivo entre os profissionais do grupo H (CSP 63,7%, H 73,1%; p=0,044).
Os resultados em função do local de trabalho encontram-se resumidos na Tabela 6.
Discussão
Sendo os profissionais de saúde os principais veículos de informação sobre vacinas é inquestionável a importância que assumem enquanto promotores da vacinação. (4 Deste modo, os conhecimentos e atitudes que têm sobre esta temática influenciarão a adesão dos pais, crianças e adolescentes e, consequentemente, a taxa de cobertura vacinal. (4-5,9,15,19,22-24
A recusa vacinal por parte dos pais tem sido uma realidade crescente, (10,20 fruto de informação deturpada veiculada sobretudo pelos media. (20 Num estudo desenvolvido em 1999, 87% dos pais considerava a vacinação muito importante. (16,25 Em 2010, 77% dos pais reportaram algum tipo de preocupação relativamente às vacinas, nomeadamente a dor ou a febre causada pela sua administração, o receio do desenvolvimento de doenças como o autismo e a sua segurança. (16,26 Num estudo recente apenas 72,6% dos pais considerou que a vacinação das crianças deveria ser mandatória. (20
Vários estudos têm demonstrado uma tendência decrescente na taxa de cobertura vacinal, (1,16,27-28 tornando as crianças e adolescentes mais vulneráveis a doenças reemergentes. (10
O adiamento do esquema vacinal traduz-se numa perda de oportunidade, que terá impacto na manutenção da imunidade de grupo. O nível socioeconómico baixo, a negligência parental e a relutância na administração de vacinas são os principais fatores que estão na base desse incumprimento. (29-32
Os profissionais de saúde são apontados como as fontes mais confiáveis sobre a vacinação e os principais influenciadores da decisão parental. (14,17 No entanto, nem todos estão devidamente instruídos e capacitados para responder às questões colocadas pelos pais, (14 o que se traduz pela relutância na promoção da vacinação, perpetuação de falsas crenças e, consequentemente, menor cobertura vacinal.
Apesar de globalmente se registarem elevados níveis de confiança nas vacinas existem algumas questões relacionadas com a segurança das mesmas e sobre a necessidade da sua administração que comprometem o aconselhamento e a adesão ao esquema vacinal. (17,19
A título de exemplo refira-se a alegada relação entre a administração da vacina VASPR e o autismo. A associação entre autismo e vacinas surgiu a partir da crença de que um dos conservantes à base de mercúrio, presente nalgumas vacinas em pequenas quantidades, prejudicava o normal desenvolvimento do sistema nervoso central. (12 Em 1998, uma publicação da Lancet correlacionava a administração da vacina VASPR ao desenvolvimento de autismo. (12 Estudos posteriores demonstraram a inexistência dessa relação, (33 sendo a idade de administração da VASPR meramente coincidente com a idade de diagnóstico das perturbações do espectro do autismo. (12,16,34 Para além da VASPR, também a falsa crença na associação entre a vacinação anti-hepatite B e a esclerose múltipla contribuiu para o incumprimento do esquema vacinal. (9,11
No presente estudo foi consensual o aconselhamento da vacina VASPR, não se considerando haver risco acrescido de desenvolvimento de perturbação do espetro do autismo decorrente da sua administração.
De acordo com um estudo de 2008, que procurou aferir as práticas de enfermeiros relativamente à vacinação, a percentagem de recomendação de vacinas variou entre 80 e 99%, sendo o conhecimento acerca das mesmas, nomeadamente o seu perfil de segurança, o principal determinante para a sua recomendação. (35
Vários estudos indicam que, entre os profissionais de saúde que recusam a administração de vacinas, as principais razões apontadas são o receio de efeitos adversos e a perceção de baixo risco de infeção. (17,36-37
No presente estudo procurou-se aferir sobre os principais motivos que levam os profissionais de saúde a adiar, incorretamente, o cumprimento do esquema vacinal, comparando os resultados em função da categoria profissional, da atividade clínica, dos anos de carreira e do local de trabalho. A ausência de estudos nacionais similares limita a comparação dos resultados obtidos; no entanto, procurou-se comparar com a realidade de outros países, ainda que os estudos deste género sejam escassos.
Uma das razões mais frequentemente implicada no adiamento do esquema vacinal foi a intercorrência febril, transversal a todos os grupos analisados. De acordo com as recomendações da DGS, da Academia Americana de Pediatria e seus homólogos franceses e ingleses, uma infeção respiratória com sintomas ligeiros, assim como qualquer outra doença aguda com ou sem febre, não constitui motivo para adiar o esquema vacinal. (29 Um estudo francês, desenvolvido em 2014, revelou que 94% dos médicos generalistas incluídos na amostra recomendavam o adiamento da vacinação em crianças com um quadro de rinofaringite aguda febril não complicada, sendo a febre a principal razão apontada para essa decisão. (29 Por outro lado, os médicos com maior grau de confiança sobre a segurança das vacinas recomendaram com maior frequência a vacinação das crianças com uma intercorrência febril benigna. (29
No presente estudo verificou-se que os enfermeiros, assim como os profissionais com mais anos de experiência, os do grupo NPA e aqueles que trabalham nos cuidados de saúde primários foram os que mais frequentemente consideraram a intercorrência aguda febril como uma contraindicação à vacinação.
De acordo com a literatura, os principais motivos apontados para o adiamento do esquema vacinal numa criança febril são a dificuldade em determinar a causa da febre após a vacinação, (29 a presumível perda de eficácia da vacina, o agravamento do padrão da febre com consequente risco de convulsão e o receio de que os pais sobrestimem os efeitos secundários da vacinação, com consequente perda de adesão ao plano vacinal subsequente. (29
À semelhança da doença febril aguda, a convalescença de doença aguda, a terapêutica antibiótica concomitante e a história anterior de doença para a qual a criança vai ser vacinada foram igualmente apontadas, incorretamente, como contraindicações à vacinação, registando-se maior número de respostas incorretas entre enfermeiros e profissionais do grupo NPA, A2 e CSP.
No que respeita ao intervalo a respeitar entre a administração de vacinas registou-se, tendencialmente, maior percentagem de respostas incorretas em todos os grupos analisados no presente estudo, com resultados similares por categoria profissional, atividade clínica, anos de carreira e local de trabalho. Verificou-se que, na generalidade, se desconhece que deve ser respeitado um intervalo mínimo de quatro semanas entre a administração de vacinas vivas injetáveis ou entre a administração de vacinas vivas injetáveis e o início de terapêutica imunossupressora, onde se incluem cursos superiores a catorze dias de corticoterapia em doses elevadas. Da mesma forma, também não é do conhecimento geral que as vacinas vivas orais e as vacinas inativadas podem ser administradas em qualquer período, independentemente da administração prévia ou subsequente de outras vacinas.
Contrariamente, foi consensual que a vacinação antirrotavírus deveria ser recomendada, independentemente da frequência de infantário, registando-se maior percentagem de respostas corretas entre médicos, profissionais do grupo PA, M-PA e do grupo A1. Da mesma forma, a maioria dos respondentes de ambos os grupos analisados reconhece que a vacinação anti-HPV pode ser administrada gratuitamente a adolescentes que já tenham ultrapassado a idade preconizada no PNV e independentemente do início da atividade sexual, registando-se maior percentagem de respostas corretas entre enfermeiros, profissionais do grupo PA, M-PA, A2 e CSP.
Analisando os resultados em função da categoria profissional registou-se maior percentagem de respostas corretas entre médicos, exceto no que respeita às condições para administração da vacina anti-HPV. Registou-se um predomínio de respostas incorretas relativamente aos intervalos a respeitar entre a administração de vacinas, com resultados similares entre médicos e enfermeiros.
Relativamente ao local de trabalho registou-se maior percentagem de respostas corretas entre os profissionais dos CSP, exceto no que respeita à administração de vacinas concomitantemente a uma intercorrência febril aguda ou a terapêutica antibiótica. A convalescença de doença aguda e a história anterior de doença para a qual a criança será vacinada foram incorretamente consideradas contraindicações à vacinação por ambos (CSP e H). Da mesma forma, o intervalo a respeitar entre a administração de vacinas vivas e o início de terapêutica imunossupressora, assim como entre a administração de vacinas vivas orais e qualquer outra vacina (inativada ou viva injetável), não é globalmente conhecido.
Similarmente, um estudo israelita desenvolvido em 2016, que procurou aferir os conhecimentos e práticas dos pediatras e enfermeiros sobre a vacinação, revelou que os profissionais mais dedicados à medicina preventiva estão mais familiarizados com esta temática do que aqueles que trabalham em centros que praticam uma medicina mais curativa. (5
No que respeita à atividade clínica, de uma maneira geral, os profissionais do grupo PA estão mais familiarizados com a temática da vacinação, com maior percentagem de respostas corretas. A convalescença de doença aguda e a história anterior de doença para a qual a criança será vacinada foram as únicas condições incorretamente consideradas como contraindicações à vacinação, quer pelos profissionais do grupo PA quer NPA. Registou-se também maior percentagem de respostas incorretas em ambos os grupos relativamente aos intervalos entre vacinas, exceto no que respeita às vacinas vivas injetáveis, com maior número de respostas corretas no grupo PA.
Um estudo desenvolvido na Suíça que procurou aferir as práticas vacinais dos médicos demonstrou que os pediatras estão mais sensibilizados para esta temática, cumprindo mais frequentemente o esquema vacinal preconizado. São também os pediatras os que mais recomendam a administração de vacinas extraprograma e que vacinam mais precocemente, provavelmente porque a sua prática clínica permite que estejam mais despertos para as consequências das doenças preveníveis pela vacinação. Em contraste, os médicos não pediatras foram os que mais frequentemente omitiram ou adiaram doses de vacinas, nomeadamente a VASPR e a DTP (difteria-tétano-pertussis), por falsos conceitos relacionados com estas vacinas. (2 No presente estudo são igualmente os médicos do grupo PA, no qual se incluem os pediatras, aqueles que estão mais familiarizados com esta temática comparativamente aos M-NPA.
No que respeita aos anos de carreira, globalmente registou-se maior percentagem de respostas corretas no grupo A1. O intervalo a respeitar entre a administração de vacinas e o início de terapêutica imunossupressora não é do conhecimento da maioria dos respondentes do grupo A1 e A2. A convalescença de doença aguda foi igualmente considerada, incorretamente, uma contraindicação à vacinação por ambos.
Conclusão
Dos resultados do presente estudo conclui-se que, na generalidade, os médicos, os profissionais com menos de vinte anos de carreira, os médicos/enfermeiros que prescrevem/administram vacinas em idade pediátrica e os que trabalham ao nível dos cuidados de saúde primários mostraram-se mais conhecedores das verdadeiras contraindicações à vacinação em idade pediátrica.
A intercorrência aguda febril, a convalescença de doença aguda, a terapêutica antibiótica concomitante e a história anterior da doença para a qual vai ser vacinado são frequentemente interpretados como motivos para adiar o esquema vacinal.
É consensual a recomendação da vacinação antirrotavírus, independentemente da frequência de infantário e, de uma forma geral, as indicações para a administração da vacina anti-HPV são conhecidas. Em contrapartida, o intervalo a respeitar entre a administração de vacinas vivas orais e outras vacinas injetáveis é globalmente desconhecido.
A formação dos profissionais de saúde e, consequentemente, a desmistificação de falsos conceitos é essencial para uma adequada promoção da vacinação e consequente adesão ao esquema vacinal preconizado, sendo fundamental investir ao nível dos cuidados de saúde primários, onde o aconselhamento e a administração de vacinas são práticas correntes.
Este estudo apresenta algumas limitações, entre as quais se destaca o facto de descrever relações entre construtos teóricos a partir de uma amostra não aleatória de médicos e enfermeiros. Como tal, não se pode garantir a representatividade dos resultados com relação à população-alvo. Também a participação voluntária dos respondentes (médicos e enfermeiros) pode gerar um viés de autosseleção nos resultados, caso haja algum interesse particular na participação. Quanto ao tamanho da amostra, ainda que se tenha obtido uma amostra expressiva de 430 clínicos com questionários válidos, a mesma pode ser considerada pequena, tendo em conta a população-alvo.
Contributo dos autores
Conceptualização, PM; metodologia, PSM e PM; software, PSM, PG e RP; validação, PG; análise formal, PG; investigação, PSM; recursos, PSM, PG e RP; curadoria de dados, PG; redação do draft original, PSM; revisão, validação e edição do texto final, PSM, PG, RP e PM; supervisão, PM. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.