Introdução
A diabetes mellitus (DM) ou diabetes é uma doença de caráter crónico, que consiste principalmente na hiperglicemia, decorrente do aumento da resistência periférica à insulina ou pela falta ou insuficiência da secreção desta hormona, sendo que dentre as classificações da DM as que se destacam são diabetes mellitus I e diabetes mellitus tipo II.1-2
A DM tipo I é uma doença genética, autoimune, em que os anticorpos próprios atacam as células beta pancreáticas que produzem a hormona insulina, resultando na diminuição da insulina. O tipo II pode ser genético, assim como ocasionado por fatores ambientais, sendo este o mais prevalente. 2-3
A diabetes gera complicações microvasculares (artérias de menores calibres e capilares) devido a hiperglicemia crónica, sendo estas responsáveis pela retinopatia, nefropatia e neuropatia, e macrovasculares (artérias de grandes calibres e vasos), que se refletem na aterosclerose. 2,4
Partindo desta premissa, pessoas com dislipidemia e hipertensas têm maiores hipóteses de ter aterosclerose, já que a dislipidemia aumenta o nível de lipoproteína de baixa densidade (LDL) plasmática e a hipertensão que, quando não controlada, produz lesões importantes nas paredes das artérias e/ou veias. 5-6
Destaque-se a pandemia da COVID-19, que contribuiu para a redução do autocuidado, diminuição da prática de exercício físico, aumento na ingestão de alimentos de risco, descontrolo glicémico e a redução da procura de medicamentos junto do Sistema Único de Saúde (SUS). 7
Diante dessas questões, os farmacêuticos são fundamentais para a atenção farmacêutica dessa população. 8 Portanto, o presente estudo teve como objetivo relatar um caso de DM e outras comorbidades, identificar a fisiopatologia e a farmacoterapia do paciente e as possíveis intervenções farmacológicas necessárias para abordar os problemas relacionados aos medicamentos.
Descrição do caso
Paciente E.S.S., sexo masculino, 57 anos, aposentado por invalidez, 1,70 m de altura e 87 kg, ex-fumador (cessou há aproximadamente 25 anos), que apresenta como principal problema de saúde a DM. Além disso, tem hipertensão, aterosclerose e obesidade de grau I, conforme o IMC (Índice de Massa Corporal). 9
A descoberta da diabetes no paciente foi durante a sua fase adulta jovem (aos 33 anos, em 1997); relata que vivia sob estresse e levava uma vida sedentária, com alimentação inadequada. Em 2015, o paciente apresentou isquemia vascular periférica, necessitando de angioplastia na perna esquerda; porém, não obteve sucesso na desobstrução da artéria ilíaca, sendo necessário fazer o procedimento da ponte de safena.
Além disso, houve amputação de dois dedos (o segundo e o terceiro metatarso do pé direito), sendo que no pé esquerdo ocorreu o encurvamento do segundo dedo, o qual levou ao chamado de dedo de martelo, ambos os problemas decorrentes da evolução da diabetes, além de ter ulcerações nos pés e queixar-se pelas pontadas e queimação.
Com esse quadro, o paciente utiliza diversos medicamentos (Tabela 1). Ainda se queixa de que sente sonolência, tontura e boca seca quando utiliza os medicamentos do período noturno. Os resultados de exames realizados ambulatorialmente estão descritos nas Tabelas 2, 3 e 4 referentes ao mês de outubro/2021. O controlo da diabetes e da hipertensão arterial podem ser observados nas Tabelas 5 e 6.
Nos dias atuais, o paciente não pratica exercício físico com frequência, devido às complicações da diabetes. A única atividade realizada é a caminhada leve, em torno de 15 minutos por dia, no quintal de casa, acompanhada de sua esposa. Em relação à sua alimentação apresentou alterações depois das complicações, ou seja, não ingere hidratos de carbono em excesso, assim como doces; entretanto, apesar dessa mudança, o paciente repete sistematicamente suas refeições.
Quanto à sua adesão aos medicamentos, o paciente mostrou-se assíduo, o qual, devido aos problemas e às consequências da diabetes, relata que não se esquece de tomar seus medicamentos e que apesar da sua cegueira, sua esposa, que é a cuidadora do paciente, aplica as insulinas e administra os medicamentos. A esposa explica que as agulhas são utilizadas uma por dia, que faz as rotações das aplicações e armazena as insulinas no frigorífico, embaixo das gavetas onde coloca os legumes. Segundo ela, recebeu estas orientações pelo farmacêutico da Unidade Básica de Saúde, na qual retira a insulina. Quanto aos outros medicamentos são entregues diretamente na residência do paciente pelo Hospital das Clínicas de São Paulo. Além deste, também é retirada no Hospital das Clínicas a pomada à base de óleo de girassol que é aplicada nos pés.
Comentário
Progressão das comorbidades e a relação com os exames clínicos
O paciente apresenta condições de saúde que o caracterizam com presença de síndroma metabólica (SM), devido à pressão arterial elevada, altos níveis de glicemia, baixo nível da lipoproteína de alta densidade (HDL) e altas concentrações de triglicéridos (TG). 5,10 Logo, o paciente apresenta importantes fatores de risco de doença cardíaca, diabetes e obesidade. 11-13
O sedentarismo, identificado no relato, também está associado ao desenvolvimento de maiores riscos da síndroma metabólica, 13 pois a inatividade física reduz a circulação sanguínea e as contrações musculares e o retorno venoso fica comprometido, resultando na formação de trombos e outros problemas cardíacos. 11 Esse processo pode ainda ocasionar resistência à insulina, resultando no aumento de glicose, o que pode resultar, especialmente em pacientes diabéticos, em problemas microvasculares, como a retinopatia, a nefropatia e a neuropatia. 12
A retinopatia, do ponto de vista fisiológico, forma novos vasos (neovascularização), assim comprometendo a região da retina e demonstra um estágio mais avançado da DM no paciente. 14-15 Já a nefropatia, que também tem caráter crónico, progressivo e lento, além da hipertensão, pode resultar numa hipertrofia renal. 16 No caso deste paciente não se observou a presença de insuficiência renal crónica; apesar de o resultado da proteinúria (albuminúria) estar acima dos valores de referência, a relação proteinúria/creatinina (0,12 g/g creatinina) encontra-se dentro do valor de referência (0,06 a 0,35 g/g de creatinina). Destaque-se que o valor exclusivo da proteinúria não demonstra que o paciente tem quadro grave de lesão renal, assim precisando da creatinina para corrigir esse valor, sendo considerado padrão-ouro. 17
Outrora, a neuropatia diabética, que lesiona as fibras nervosas do sistema nervoso periférico, gera dores, queimação e pontadas nos pés, além de poder provocar ulcerações e amputação dos membros inferiores, 16,18-21 situações que foram identificadas no relato apresentado. Além disso, a neuropatia diabética pode favorecer processos de ulceração e amputação dos membros inferiores, pois com a perda de sensibilidade em concomitância de traumas na região, especialmente nos pés, há maior risco de infeção, o que pode gerar o denominado pé diabético. Destaque-se que essa é a causa mais comum de amputações em indivíduos com diabetes. 16,18
Ademais, note-se que a hemoglobina glicada (HbA1c) está acima dos valores de referência e, por isso, se entende que o paciente não tenha um adequado controlo da glicemia durante os últimos 60 a 120 dias antes da realização do exame, pois a hemoglobina, além de ter como função o transporte de oxigénio para os tecidos, quando há alta concentração de glicose no sangue, esse açúcar liga-se à hemoglobina A1c. 22
Farmacoterapia do paciente
Nota-se que a glicemia do paciente está equilibrada na maior parte dos dias, mas apresentou no dia 14/10 um evento levemente hipoglicémico (68 mg/dL) e no dia 15/10 uma hiperglicemia mais significativa (265 mg/dL). No cômputo geral, em mais de 50% dos dias em que a glicemia capilar foi aferida os níveis glicémicos apresentaram níveis superiores aos recomendados pela Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) (<100 mg/dL). Estes valores vão ao encontro do nível de hemoglobina glicada do paciente, com valor de 7,7%, também superior ao recomendado pela SBD (<7,0%) para adultos.2
Na maioria das vezes, a hipoglicemia ocorre mais frequentemente em paciente com diabetes do tipo 1 do que diabetes do tipo 2, em uso exclusivo de insulinas, podendo então indicar que a baixa glicemia deste paciente foi gerada por antidiabéticos orais e/ou insulina e a falta de alimentação, para a qual os sintomas são boca seca, náusea, tontura e visão turva. 23 Nesse caso, chama a atenção o episódio de hiperglicemia importante ocorrer no dia seguinte à possível hipoglicemia e sugere que o paciente pode, por conta própria ou não, ter deixado de fazer o uso dos medicamentos neste (14/10) e no dia seguinte (15/10), devido ao seu entendimento dos riscos da hipoglicemia e com isso houve aumento da glicemia no dia posterior. Isso reforça a importância de uma orientação durante o processo de uso dos antidiabéticos e no controlo da glicemia para não haver problemas na adesão ao tratamento.
Em relação à pressão arterial percebe-se que o controlo da pressão não se apresenta dentro dos parâmetros. Por ser um paciente com alto risco cardiovascular sugere-se que a pressão arterial se mantenha sempre abaixo de 130 mmHg x 80 mmHg. 2,24-27 A dose e uso dos anti-hipertensores estão corretos, podendo então a alta ingestão de sódio ser o motivo do não controlo da pressão arterial, além de outros fatores não-farmacológicos, como sedentarismo, por exemplo. Destaque para o facto de o paciente já utilizar terapia dupla para o tratamento da hipertensão arterial (losartan e atenolol), com alto risco de eventos cardiovasculares. 26 Caso não haja controlo adequado com terapia dupla e melhoria dos hábitos de vida pode ser necessária a terapia tripla ou quádrupla, conforme orientações das Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial - 2020. 26
O uso da amitriptilina e gabapentina, quando concomitantes, pode aumentar os efeitos colaterais da gabapentina (tontura, boca seca e sonolência), sendo estes mencionados pelo paciente. Logo, é necessário reduzir a dose ou aumentar o intervalo de tempo de uma droga para outra. Neste caso, o mais adequado é alterar a dose de gabapentina (de 400 mg para 300 mg), pois a amitriptilina já está na dose inicial recomendada (25 mg). 28 Com essas mudanças pode haver diminuição das queixas que o paciente sente ao usar os medicamentos noturnos. Deve-se destacar que o uso de tricíclicos IRSN (venlafaxina) e anticonvulsivantes (gabapentina) são essenciais para o tratamento da dor neuropática periférica, pois estes medicamentos atuam no sistema nervoso central na redução da libertação dos neurotransmissores que conduzem à dor, sendo estes primeira linha para o tratamento. 29
O omeprazol tem sido muito comum em pacientes polimedicados, pois existe o senso comum que a sua utilização alivia os sintomas gástricos associados ao uso excessivo de medicamentos como consequência da polifármácia. 30-31 Entretanto, não há benefícios nesse contexto para a utilização de inibidores da bomba de protões e, apesar dos benefícios em proteger a parede estomacal em algumas circunstâncias, o seu uso crónico pode levar ao efeito rebote ou hipergastrinemia, que é o aumento rápido da acidez gástrica, o que faz com que os pacientes fiquem dependentes desse fármaco. 32 Sendo assim, cabe rever o uso do omeprazol e aplicar estratégias de desprescrição, se oportuno.
A neuropatia autonómica, causada pela neuropatia, retarda a motilidade gástrica, causando náuseas e vómitos, também chamada de gastroparesia diabética, logo, se utiliza a domperidona. 33-34 De destacar que medicamentos como a amitriptilina e a venlafaxina bloqueiam a recaptura das catecolaminas, gerando alta carga colinérgica, o que pode resultar em tonturas e xerostomia, relatadas pelo paciente. Como a amitriptilina tem importante carga anticolinérgica, somada à domperidona e venlafaxina, que também possui atividade anticolinérgica, 35-37 o paciente pode ter o risco aumentado de apresentar tonturas e xerostomia (boca seca).
Nota-se que a utilização da insulina NPH é de três vezes ao dia (manhã e noite), sendo que essa posologia é mais comum em pacientes hospitalizados. Portanto, como este paciente utiliza 90 Unidades da insulina NPH, divididas em três doses, pode-se sugerir a utilização de 60 Unidades no período da manhã e 30 Unidades à noite. 2
Além disso, a SBD também mostra que o uso da aplicação das insulinas deve ser realizado em rotação, ou seja, aplicar em diferentes locais do corpo, assim evitando danos nos tecidos e no descontrolo glicémico. 2 Conforme foi relatado pela sua esposa, cuidadora, a mesma faz a aplicação das insulinas corretamente, o que minimiza os riscos.
Portanto, como intervenções farmacêuticas há a necessidade de aplicar uma estratégia de mudança no seu estilo de vida, já que o paciente apresenta um perfil lipídico acima dos valores de referência. Logo, este paciente deve ser aconselhado quanto à realização de atividade física leve, como a caminhada, acompanhado de sua esposa, além de uma alimentação equilibrada, sem repetição das principais refeições e, de preferência, com baixo consumo de hidratos de carbono e poucas fibras para evitar os sintomas da gastroparesia, diminuição do consumo de sódio e a utilização de calçado antiderrapante, não apertado e com palmilhas, que protege quanto ao aparecimento de lesões nos pés.
Além disso, uma possibilidade real é a mudança do esquema terapêutico da insulina NPH para duas vezes ao dia, sendo 60 Unidades aplicadas no período da manhã e 30 Unidades no período da noite, com reforço para o baixo consumo de açúcar, o que poderá melhorar o controlo da glicemia, bem como reduzir o risco de hipoglicemia, além da própria hemoglobina glicada. Caso as medidas não farmacológicas e farmacológicas (alteração da forma de uso de insulina) não sejam suficientes talvez sejam necessárias alterações das doses de insulinas (NPH e/ou regular) e, neste caso, a intervenção deve ser realizada diretamente com o profissional prescritor, intermediado pelo paciente.
Em relação às reações adversas referidas pelo paciente será analisado que opção é mais adequada para a diminuição dessas reações, seja pela diminuição da dose dos medicamentos ou no espaçamento do intervalo de tempo de um medicamento para o outro, como no caso da amitriptilina e gabapentina. Ainda, rever, junto com o prescritor, a desprescrição, ainda que adequada para a neuropatia periférica, de amitriptilina, devido à sua elevada carga colinérgica, que pode ser maximizada com o uso de domperidona e venlafaxina. São situações delicadas, pois são medicamentos fornecidos pelo Sistema Único de Saúde e as suas alternativas certamente implicariam em custos financeiros excessivos para o paciente. Sendo assim, todo o processo deve, além de considerar os aspetos clínicos e terapêuticos, também considerar os aspetos humanísticos e económicos do paciente.
Além disso, conforme o relato, o paciente não esquece de tomar seus medicamentos devido aos percursos que a diabetes lhe causou. Nota-se, então, que quanto maiores as implicações que a doença tem na vida do indivíduo maior a possibilidade de se conhecer mais profundamente o seu problema, o que tende a favorecer a maior adesão ao tratamento. 38 Entretanto, não só o processo histórico da doença influencia as ações do paciente, mas o apoio familiar e social auxilia o paciente a ter uma maior adesão, pois o incentivo vindo por parte das pessoas do seu convívio faz com que o paciente possa ter um melhor autocuidado, ainda que estas relações não influenciem quanto à mudança no estilo de vida dos pacientes. 39
E, conforme o relato, sua cuidadora afirma que segue as orientações da insulinoterapia, ou seja, as quantidades das doses de insulina que serão aplicadas ao longo do dia, de acordo com a prescrição médica, assim como na questão do seu armazenamento, seguindo as orientações do profissional farmacêutico. Logo, demonstra a importância deste profissional, pois suas instruções, assim como as intervenções farmacêuticas, fazem com que o paciente possa ter um melhor uso racional do medicamento e adesão e a melhoria do seu quadro clínico, além de que em pacientes que usam muitos medicamentos, como é o caso do presente paciente, existe um maior risco de reações adversas e de interação medicamentosa, resultando, assim, numa baixa eficácia do tratamento. 40
Conclusões
Conclui-se que o paciente, por apresentar problemas micro e macrovasculares, decorrentes da diabetes, necessita de importantes modificações no estilo de vida, com caminhadas matutinas diárias e refeições leves, sem repeti-las. Além disso, nota-se que a farmacoterapia do paciente não se apresenta muito adequada, pois o paciente apresenta queixas de sentir boca seca, sonolência e tontura, podendo considerar-se a diminuição da dosagem para dosagem inicial da amitriptilina e gabapentina ou espaçar o intervalo de tempo do uso entre os dois medicamentos, bem como a possiblidade de alternativas terapêuticas aos medicamentos em uso. Em adição deve-se rever o esquema terapêutico da insulina NPH e recomendar fortemente a redução do consumo de hidratos de carbono e, se necessário, aumentar a dose diária das insulinas.