Introdução
A definição de aborto espontâneo varia entre diferentes países e organizações internacionais, mas geralmente define-se como a perda de uma gravidez intrauterina, antes de esta ter viabilidade.1 De acordo com a Organização Mundial da Saúde, é caracterizado como a morte embrionária ou fetal não induzida ou a expulsão de produtos da conceção antes das 22 semanas de gravidez ou com um peso inferior a 500 gramas. 2 A prevalência do aborto espontâneo relaciona-se com a sua definição, isto é, com o limite superior utilizado (idade gestacional e peso fetal) e também com os critérios de diagnóstico utilizados (doseamento de hormona gonadotrofina coriónica humana [b-HCG] e ecografia), havendo um risco de aborto espontâneo em cerca de 15% das gravidezes clinicamente reconhecidas. 1 Aproximadamente 80% dos casos de perda fetal ocorrem no primeiro trimestre. 3
Existem muitos mitos e crenças associados ao aborto espontâneo, o que pode levar muitas mulheres a não procurarem ajuda. 1 À mulher que sofreu um aborto espontâneo, o profissional de saúde em geral e as equipas de família em particular devem fornecer informação e apoio, tendo em conta as circunstâncias individuais de cada mulher e casal e a sua resposta emocional à situação. 4 Os profissionais de saúde devem estar elucidados para o facto de o aborto espontâneo poder trazer sofrimento à mulher e ao casal e devem possuir competências específicas para lidar com estas situações. 4 O impacto exato nas famílias, na sociedade e nos serviços de saúde está comprovado, mas é provavelmente subestimado. 1
Com o relato deste caso clínico pretende-se rever o diagnóstico de aborto espontâneo, os seus fatores de risco e a sua abordagem inicial, assim como a importância do papel da equipa de família no acompanhamento longitudinal, no luto gestacional, nos sintomas psicológicos associados à perda e na prevenção de eventos futuros. As autoras esperam contribuir para a consciencialização da importância de uma abordagem abrangente desta entidade, sobretudo pelos cuidados de saúde primários, que podem assumir uma função determinante no acompanhamento e sucesso de uma futura gravidez.
Descrição do caso
Mulher de 37 anos, natural do Nepal, residente em Portugal há três anos, casada há dois anos. Reside com o marido em meio urbano em Lisboa, num apartamento partilhado com mais três pessoas. Não têm filhos juntos nem filhos de outras relações. Apesar do título de mestre em Gestão de Imprensa, obtido no país de origem, é ajudante de cozinha num restaurante em Lisboa. O marido tem 35 anos, também é natural do Nepal, está em Portugal através de um processo de reagrupamento familiar com a esposa, há dois anos, é motorista numa empresa de transporte de pessoas e bens (escala de Graffar: classe social média). Não apresentam antecedentes pessoais ou familiares relevantes, negam hábitos toxicofílicos ou toma de qualquer medicação habitual.
O casal recorre pela primeira vez à sua Unidade de Saúde Familiar por múltiplas tentativas em engravidar, sem sucesso, há mais de doze meses. Após investigação inicial do casal, que não revela alterações, é realizada a referenciação à consulta de infertilidade do hospital da sua área de residência. Cerca de um mês após a consulta engravidou espontaneamente. No entanto, às dez semanas de gestação consulta novamente a sua unidade de saúde, após ocorrência de hemorragia vaginal, sendo referenciada para o serviço de urgência. É diagnosticado aborto espontâneo, confirmado ecográfica e analiticamente com o doseamento da b-HCG. É adotada uma atitude expectante, tendo ocorrido expulsão espontânea e total do feto em uma semana e tendo tido alta hospitalar, não referenciada para uma consulta de seguimento em cuidados de saúde primários ou secundários.
É realizado um contacto telefónico cerca de uma semana depois, para acompanhar a situação. Apesar de não apresentar sintomas físicos, a utente manifesta sentimentos de culpa, tristeza, ansiedade, medo, isolamento e falta de esperança, e desorientação face aos cuidados necessários. Não é aplicada nenhuma escala de avaliação do luto gestacional.
A equipa de família deparou-se com alguns desafios durante este caso. Entre eles estão o desconforto por não realizar as consultas na sua língua materna, as barreiras culturais, os fatores de vulnerabilidade social, nomeadamente a integração num novo país, o afastamento das redes de pertença, o desconhecimento do funcionamento dos serviços e dos seus direitos. Numa tentativa de melhor compreender as redes de suporte desta família foi realizado o eco-mapa (Figura 1), verificando-se a escassez de fontes de apoio e recursos da utente, alertando para o isolamento social do casal.
É realizado um plano de consultas de seguimento de enfermagem e médicas, centrando-se no esclarecimento de dúvidas, desmistificação de mitos, escuta ativa e reconhecimento do sofrimento da pessoa. O casal assume clara vontade de ter filhos, pelo que é realizada valorização dos objetivos dos valores da família para o casal. São exploradas as modalidades de expressão do luto na cultura de origem e incentivada a realização de rituais culturalmente caracterizados de conforto (orações, momentos de partilha com familiares, redes de apoio social, práticas de meditação). Adicionalmente são realizados ensinos para estimular mudanças de comportamentos (alimentação saudável, exercício físico diário, estratégias de bem-estar mental) e de capacitação do casal para a procura de uma nova gravidez (literacia em saúde sexual e reprodutiva, incentivo da intimidade do casal).
Cerca de quatro meses após o aborto espontâneo, a utente engravida, tendo mantido o seguimento da sua gravidez na sua Unidade de Saúde Familiar, tendo esta decorrido sem intercorrências.
Comentário
Causas, fatores de risco, sintomas e diagnóstico
A ocorrência de abortos espontâneos é comum. As anomalias cromossómicas fetais são responsáveis por cerca de 50% dos abortos espontâneos. 1,3 Os fatores de risco mais comuns são a idade materna avançada e a existência de um aborto espontâneo anterior. 1,3 No entanto, existem outros fatores de risco conhecidos como os defeitos na decidualização do endométrio, os fatores clínicos (como a idade gestacional), os fatores demográficos (como o índice de massa corporal), os fatores ambientais (como a poluição) e os hábitos de vida (como o tabagismo, o consumo de álcool, o trabalho por turnos ou o stress). 1 No caso descrito, a utente não apresentava nenhum fator de risco conhecido, à exceção da idade materna avançada.
Os sintomas mais comuns são a hemorragia vaginal e as dores pélvicas, sintomas que também surgem na gravidez normal, sendo essencial reconhecer a possível existência de aborto espontâneo ou outras complicações da gravidez. 3,5 O diagnóstico é efetuado pela combinação da história clínica, do exame físico, da ecografia e do doseamento da b-HCG e, por vezes, pode não ser claro.3 No entanto, os critérios utilizados não são uniformes. 5 As opções terapêuticas incluem uma atitude expectante, o tratamento médico ou o tratamento cirúrgico, conforme a preferência das utentes, e todas mostraram ser efetivas, não havendo diferença nos resultados a longo prazo. 3-5
Prevenção e abordagem após o aborto espontâneo
Ao longo do processo de suspeita e diagnóstico de aborto espontâneo devem ser explicados quais os sintomas ou os sinais que devem motivar a procura de cuidados de saúde e o que esperar do período de recuperação - retoma da atividade sexual, tentativa de nova gravidez, impacto na fertilidade futura. 4-5 Por fim, deve ser garantida uma ou mais consultas de seguimento, com o tempo adequado para discutir as questões e dúvidas da mulher e do casal. 4,6-7 Na perda gestacional precoce (até às 14 semanas), muitas vezes o follow-up é realizado apenas nos cuidados de saúde primários, devendo ser feita essa referenciação através do local onde é confirmada e tratada a perda. 6
Em geral, apenas há necessidade de avaliação adicional quando existiram dois abortos espontâneos consecutivos e não existem intervenções farmacológicas eficazes para prevenir o aborto espontâneo, à exceção do uso da progesterona na presença de hemorragia vaginal precoce e de aborto espontâneo anterior, com evidência de eficácia limitada. 3,5 A evidência atual indica que deve ser realizada uma intervenção para a adoção de hábitos de vida mais saudáveis, como a cessação tabágica, a gestão do stress, a moderação ou cessação do consumo de álcool, os cuidados na alimentação e a redução de trabalho noturno, podendo estas medidas reduzir o risco de futuros abortos. 1 No caso relatado, perante a ocorrência de um evento, não seria necessária avaliação adicional.
Após um aborto espontâneo deve ser efetuado o aconselhamento sobre contraceção e as mulheres que desejam contraceção podem iniciar métodos hormonais imediatamente após o aborto espontâneo estar concluído. 3 Não há contraindicações para a colocação de dispositivos intrauterinos após tratamento cirúrgico do aborto, exceto quando há suspeita de aborto sético. 3 É oportuno também manter a vigilância de hemorragia vaginal, dos sinais de infeção, do controlo da dor ou de outros problemas físicos (obstipação, suturas). 6-7 Em alguns casos de perda gestacional tardia pode ser necessário abordar a lactação. 6
Sintomas psicológicos, luto e psicopatologia
O apoio após uma perda gestacional, em qualquer idade gestacional, no contexto territorial, deve ser contínuo, próximo e multidisciplinar e incluir familiares, amigos e profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais). 6-7 Os abortos espontâneos são frequentes, mas as suas consequências psicológicas são muitas vezes esquecidas. 5,8 Apesar de ainda não existirem normas de orientação estandardizadas para a abordagem ao luto associado à perda gestacional, vários estudos e recomendações de boas práticas concordam com a abordagem holística, realçando a importância de individualizar o acompanhamento de acordo com as características sociais, psicológicas, físicas, culturais, espirituais, religiosas e étnicas de cada utente. 6
O luto gestacional pode ser particularmente intenso, duradouro e complicado, ainda que os sintomas de luto vão diminuindo de intensidade ao longo do tempo. 9 A experiência do luto é individual e não se baseia necessariamente na idade gestacional, no nível socioeconómico ou educacional ou no número de perdas vivenciadas ou de filhos vivos. 9-10 O luto é uma resposta normal à perda de alguém próximo; contudo, pode tornar-se patológico e é recomendado rastrear todos os pais nesse sentido. 10 Existem ferramentas que permitem avaliar o luto relacionado com a perda gestacional, sendo a Escala de Luto Perinatal a ferramenta mais amplamente utilizada. 11
A desvalorização social da morte gestacional pode prejudicar o processo de luto dos pais, levando a consequências como o isolamento, o sentimento de culpa, a vergonha e a sensação de solidão no casal e especialmente das mulheres, além de alterar a perceção da frequência deste evento. 12
As cerimónias funerárias, assim como outros rituais, são um meio importante para aceitar a realidade da perda, atrair apoio social e incentivar a expressão de emoções e são frequente e culturalmente caracterizadas. 10 Contudo, não se deve cair no engano da uniformidade cultural, mas explorar e incentivar a criação de rituais de luto e conforto significativos para e com cada utente, adotando uma atitude aberta e empática. 13
A ansiedade, a depressão, a perturbação de stress pós-traumático, a raiva, a culpa, a sensação de fracasso e até a ideação suicida são diagnósticos e sintomas reconhecidos após a ocorrência de perdas fetais. 8 No entanto, os estudos sobre a avaliação do impacto e o seguimento destas utentes são escassos. 8 O maior estudo prospetivo que avalia as consequências psicológicas da gravidez ao longo do tempo revelou que existe uma proporção de 29% das mulheres com stress pós-traumático, 24% das mulheres com ansiedade moderada a grave e 11% das mulheres com depressão moderada a severa, verificando ainda que nove meses após o evento esses distúrbios ainda se mantêm em 17%, 6% e 13% das mulheres, respetivamente. 8 Recomenda-se realizar um rastreio de psicopatologia, como a depressão, a ansiedade e o stress pós-traumático a todos os pais que experienciam a perda gestacional e referenciar para cuidados secundários os casos detetados. 10
Comunicação e abordagem holística
Na gestão do processo de luto gestacional devem ser demonstrados empatia, respeito e apoio durante o atendimento, de forma a atenuar o estigma que acompanha estas situações. 6-7,10 A comunicação reveste um papel fundamental na abordagem ao utente em luto, sendo importante criar o correto ambiente físico, com direito à privacidade e num local onde não se realize a consulta de saúde materna ou de saúde infantil, e adaptar a comunicação verbal e não verbal à pessoa que se acompanha. 6 A escolha de certos termos pode ser sensível nestas situações, devendo o profissional utilizar a linguagem que os pais usam para descrever o filho, a gravidez ou o feto. 6 No caso relatado, este acompanhamento baseou-se na criação de uma relação terapêutica que permitiu adequar a consulta às necessidades do casal.
O apoio oferecido deve ter como objetivo empoderar as escolhas em saúde dos pais. A escuta, a criação de um espaço livre de juízo de valor para o esclarecimento de dúvidas e medos, assim como o reconhecimento e valorização dos sentimentos são pilares para se conseguir uma eficiente e terapêutica comunicação médico-utente. 6-7 É consensual a importância de produzir e partilhar folhetos informativos ou material noutro suporte, de modo a aumentar a literacia em saúde dos utentes. 6
Importa realçar que a perda gestacional representa um momento desafiante para toda a família, podendo implicar com o equilíbrio e bem-estar das relações entre os seus membros. 6 A intimidade e a sexualidade do casal podem ser afetadas, sendo importante abordar estes assuntos durante as consultas. 6 O casal do caso descrito apresentava múltiplas dúvidas em relação à perda vivenciada, medos em relação à sua intimidade e vida sexual e desconhecimento face à importância de realização do luto, o que dificultou o processo da perda e a dificuldade em procurar uma nova gravidez.
A orientação comunitária é um passo fundamental na abordagem do bem-estar dos casais que sofreram um aborto. A equipa de família deve incentivar a ligação a recursos comunitários, como os grupos de partilha, que podem auxiliar na aceitação do luto e na atenuação da sensação de solidão. 6,14 No caso de pessoas migrantes é oportuno investigar a ligação a redes de entreajuda da comunidade migrante, pilares do processo de integração no país de acolhimento. 15 Na situação descrita, o apoio de associações da diáspora nepalesa presentes em Lisboa apoiou a elaboração do luto, através da realização de orações comunitárias; também a criação de uma ligação com um grupo de mulheres da mesma origem, com história de perdas gestacionais ou com experiências de vida semelhantes, contrariou o isolamento social e permitiu a adaptação cultural do processo de luto.
Conclusão
Em Portugal são escassos os dados recentes ou os estudos validados sobre o luto gestacional e as consequências psicológicas na vida da mulher ou do casal. É possível também que os registos clínicos falhem no que diz respeito à codificação do aborto espontâneo no processo clínico, podendo este facto subestimar a frequência deste evento. Assim, é fulcral que estes dados sejam recolhidos e trabalhados, de modo a acelerar a investigação e os cuidados prestados nestas situações. 1 Apesar disto, o Código do Trabalho garante o direito a uma licença com duração de 14 a 30 dias consecutivos nos casos de interrupção da gravidez.16 Esta licença reconhece a importância de oferecer tempo ao processo de luto da mulher e pode contribuir para a diminuição das consequências psicológicas negativas da morte gestacional.
As equipas de família têm um papel tanto privilegiado como dificultado, nomeadamente no que se refere aos cuidados longitudinais, abrangentes e multidimensionais que prestam. A relevância do presente caso clínico prende-se com o facto de se tratar do primeiro relato de caso de luto gestacional numa família migrante nepalesa, tendo em conta o importante fluxo migratório dos países do Sul da Ásia em Portugal. Apesar dos cuidados e fenomenologia da situação não diferirem entre pessoas migrantes ou não, importa considerar a possibilidade de poder haver desafios na comunicação e no encontro com utentes com especificidades culturais que podem não ser familiares para os profissionais que prestam cuidados. Neste sentido, a importância de perguntar e investigar as crenças e preferências de cada pessoa, sem cair em estereótipos, pode ajudar a empoderar o utente nas suas escolhas e estipular um plano centrado na pessoa, garantindo o direito de acesso à saúde e o respeito dos direitos humanos.
No processo de suspeita de aborto espontâneo há que atentar aos sinais e sintomas que devem motivar uma avaliação ou seguimento adicional nos casos de aborto espontâneo, atender a sintomas físicos e psicológicos, abordando a doença e a dolência, tendo a importante função de suspeita diagnóstica, referenciação atempada e respetiva melhoria do prognóstico. Após o diagnóstico importa manter o seguimento da mulher e do casal, avaliando o planeamento de gravidezes futuras, a gestão do luto e despiste de psicopatologia, atuando em cuidados transculturais e na dimensão social e familiar de cada um. Lidar com este caso exige competências essenciais às equipas de família: conhecimento, treino e empatia, sendo fulcral a intervenção e o desempenho adequado dos cuidados de saúde primários.