Introdução
O sucesso do Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem como pilar a mudança de paradigma alcançada nas doenças infeciosas, como a pneumonia, através de um Programa Nacional de Vacinação universal e gratuito, mas também na notória redução na mortalidade atribuível a fatores de risco potencialmente evitáveis. Portugal é dos países da Organização e Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com uma esperança média de vida mais elevada (81,1 anos), mas um dos piores no que respeita ao indicador «número de anos de vida saudável vividos depois dos 65 anos».1-3 Sabe-se que mais de metade da população vive com pelo menos uma doença crónica e que uma percentagem significativa da mortalidade é evitável. 1-2
As doenças cérebro e cardiovasculares, as doenças neoplásicas e as doenças do sistema respiratório são as principais causas de mortalidade no nosso país. 1,4-7 De entre as doenças cérebro e cardiovasculares sobressai o acidente vascular cerebral (AVC), enquanto principal causa de mortalidade, e o enfarte agudo do miocárdio (EAM). Estima-se que o AVC afete um português a cada três horas e que o EAM mate cerca de doze pessoas por dia. 7-9 A pneumonia, também apelidada de epidemia esquecida, mantém-se como a principal causa de morte de etiologia respiratória, sendo responsável por dezasseis óbitos por dia. Analisando o perfil evolutivo destas patologias encontram-se tendências opostas com um decréscimo, variável, da mortalidade cardiovascular e um aumento, perene, das mortes por neoplasias. 2,10-13
A literacia em saúde é tema de popularidade e pertinência crescentes face à relevância e impacto que tem em diversos resultados clínicos. 14 Um grau de literacia em saúde mais baixo condiciona menor compreensão dos cuidados propostos, nos resultados que se pretendem obter, bem como na utilização eficaz dos sistemas de saúde, nomeadamente na procura de medidas de promoção de saúde. 14 A internet constitui atualmente a fonte primária de informação, também na área da saúde. Enquanto principais utilizadores de plataformas digitais, os mais jovens [faixa etária entre os 15 e os 18 anos; faixa etária entre nos 24 e os 29 anos] representam uma população particularmente atrativa a campanhas de prevenção. Perante fatores influenciadores da comunicação em saúde, como pandemias, campanhas publicitárias ou notícias dos media, fica por perceber o impacto que estes têm na opinião pública e de que forma se traduzem depois em interesse digital pela sua pesquisa. Por esse motivo, o objetivo da presente investigação foi caracterizar o interesse da população portuguesa relativo às doenças cérebro e cardiovasculares, neoplasias e doenças do sistema respiratório, explorando a associação entre picos de pesquisa e eventos sociais promotores da literacia em saúde.
Métodos
Para estudar o interesse digital em saúde da população portuguesa, relativo às principais causas de mortalidade no país, realizou-se um estudo do volume médio de pesquisas online sobre as quatro doenças (AVC, EAM, neoplasia e pneumonia) que mais contribuem para a taxa de mortalidade.
O volume médio de pesquisa nos motores de busca online foi extraído através da plataforma Google Trends® (https://trends.google.com/; Google, LLC, Mountain View, CA, USA), sendo a análise realizada entre 01/janeiro/2016 e 31/dezembro/2021. Estudou-se a pesquisa global no território português, mas também a sua variação demográfica relativa.
A seleção das queries foi realizada tendo em conta os tópicos pré-definidos do Google Trends®, com correspondência formal a todos os denominativos, sinónimos e idiomas, obtendo-se os quatro itens finais: “Acidente Vascular Cerebral” - doença, “Enfarte Agudo do Miocárdio” - doença, “Neoplasia” - doença e “Pneumonia” - doença.
Os dados foram extraídos através da representação da pesquisa média relativa (PMR), que se refere ao interesse proporcional médio do tópico em determinada data e localização, relativamente a todas as pesquisas realizadas no motor de busca para o mesmo perfil demográfico e temporal. Esta PMR é indexada em valores entre 0 e 100, em que 100 representa o interesse máximo para o tópico procurado. As variáveis contínuas foram expressas sob a forma de medida de tendência central e dispersão, atendendo ao tipo de distribuição. A comparação na distribuição das PMR foi submetida a análise através de testes não paramétricos para amostras emparelhadas. Os dados foram analisados através do Package for Social Sciences®, v. 26.0 e do Matlab® R2020a.
Resultados
Entre 2016 e 2021, a neoplasia foi o termo mais procurado online (Tabela 1), seguido pelo AVC, a pneumonia e o EAM.
A variação da PMR entre 2016 e 2021 encontra-se representada na Figura 1. Os tópicos AVC, neoplasia e pneumonia demonstraram um interesse sobreponível entre a primeira e a segunda metade temporal do estudo (p>0,05), ao contrário do enfarte (p<0,01), com interesse superior nos últimos três anos de estudo. As doenças neoplásicas motivaram maior interesse desde 2016, tratando-se do único tópico que atingiu uma PMR de 100 em setembro/2019 e assumindo-se também como o tópico com maior variabilidade de interesse. Por outro lado, foi também consistentemente o tópico mais procurado à exceção de um pico de pesquisa sobre o EAM (PMR 80) em 2019. O AVC apresentou um aumento abrupto relativo da pesquisa em 2020 (PMR máximo 54), assim como a pneumonia (PMR máximo 47), ainda que nenhum deles tenha superado o PMR das neoplasias para a mesma data.
Discussão
A pesquisa sobre neoplasias foi consistentemente a mais frequente dos quatro tópicos em estudo. Se, por um lado, não espanta o peso crescente da doença neoplásica na mortalidade total nacional, e que é reflexo do perfil demográfico português, de uma política de rastreio de base populacional alargada responsável por maior número de diagnósticos e de evolução constante com melhoria das armas terapêuticas, é considerável a assimetria de interesse face aos seus comparadores. Este dado é ainda mais significativo se se considerar que são as doenças do aparelho circulatório aquelas que mais matam no nosso país e que 80% desta mortalidade poderia ser evitada mediante o controlo de fatores de risco.
A literatura existente sugere preocupações atribuíveis ao cancro, entre elas a baixa compreensão sobre o impacto condicionado pelo medo, enquanto facilitador ou dissuasor, de comportamentos de diagnóstico precoce. 12 Um estudo direcionado a esta melhor compreensão conclui que dois terços dos doentes demonstram preocupação pela ameaça à vida e pela perturbação emocional que um diagnóstico de cancro configura, sendo que metade referiu preocupação com questões relacionadas com os tratamentos e com a perda de autonomia e um quarto destacava preocupações de cariz social e económico. 13 Por esse motivo, a conotação negativa associada às doenças neoplásicas poderá ser um fator mobilizador no interesse por este tema. Em contrapartida, são as doenças cerebrovasculares que apresentam maior mortalidade, o que pode constituir um elemento confundidor na medida em que os indivíduos que tendencialmente mais usam os recursos digitais pertencem à geração com maior incidência ativa destas doenças.
Por outro lado, na análise temporal da pesquisa sobre neoplasias verifica-se que os dois picos de interesse que acontecem anualmente acontecem no mês de fevereiro e depois novamente em outubro. É da opinião dos autores que traduzam as duas efemérides relacionadas com as doenças neoplásicas: 4/fevereiro e o peditório da Liga Portuguesa Contra o Cancro no final de outubro/início de novembro. Observa-se também que há uma exceção a este último pico no ano de 2020, eventualmente em virtude da pandemia COVID-19, em que o peditório anual da Liga Portuguesa Contra o Cancro não se realizou. Infere-se, assim, que o maior interesse pelas neoplasias poderá ser fruto de uma comunicação mais eficaz e personalizada, mas também devido ao facto de estas serem por si só um tema mobilizador, com conotação mais negativa em idades mais jovens.
Relativamente aos restantes termos estudados, e de forma a entender os padrões de variabilidade observados, exploraram-se os três picos de pesquisa anormais relativos ao AVC, EAM e pneumonia. Verificou-se que todos eles coincidiam temporalmente com situações que mediatizaram os termos de pesquisa em estudo: o pico de pesquisa por EAM coincidiu com o diagnóstico no jogador Iker Casillas, o pico de pesquisa por AVC ocorreu no mesmo período em que a mãe do jogador Cristiano Ronaldo foi acometida por essa patologia e o pico de pesquisa para a temática da pneumonia correspondeu ao período em que foi confirmado o primeiro caso de infeção pela COVID-19 em Portugal.
Face a estes achados explorou-se adicionalmente outras duas efemérides: 29/setembro - Dia Mundial do Coração e 29/outubro - Dia Mundial do AVC. O expectável, como já mencionado, caso uma campanha de prevenção digital seja efetiva, seria observar-se um pico de pesquisa no dia e na semana subsequente à comemoração da efeméride como indicam também outros estudos de metodologia semelhante à da presente investigação. 10-11 Constata-se que não houve aumento abrupto da pesquisa no dia alusivo ao AVC nem na semana subsequente. No que respeita ao EAM regista-se um aumento ligeiro da PMR, não na data específica, mas ao longo do mês de maio que, desde 2016, foi instituído como Mês do Coração pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC), salvaguardando-se que se trata de um conjunto de ações que se estendem por um período temporal maior ao invés de um dia isolado. Estes achados podem, por um lado, traduzir ações comemorativas menos mobilizadoras do que as efemérides das neoplasias ou então, por outro lado, campanhas endereçadas a meios não digitais ou a um público-alvo que não as gerações que mais usam a Internet.
A campanha «Por Cuidados mais Justos», da Liga Portuguesa Contra o Cancro, trata-se de uma estratégia de consciencialização trianual que, através de diferentes ações que se estendem para lá do próprio Dia Mundial do Cancro, propõe trabalhar um tema específico em cada ano - conhecer (2022), agir (2023) e desafiar (2024). Mediante expressões como salvar, juntos criamos a mudança e responsabilidade de todos enfatiza-se a importância da prevenção, sensibiliza-se para a possibilidade de cura mediante diagnóstico mais atempado e reconhece-se a equitabilidade com envolvimento de todos.
A literacia em saúde é uma ferramenta de educação e um veículo de mobilização social poderosa e sobre a qual há muito a ser melhorado. 12 O Programa de Literacia em Saúde e Integração de Cuidados alinhado com o programa de modernização do SNS «SNS + Proximidade» surge deste reconhecimento, procurando dinamizar estratégias concertadas e vanguardistas. A Biblioteca de Literacia em Saúde do Portal SNS foi a primeira ação a ser concretizada. Trata-se de um repositório digital de recursos de apoio à promoção da literacia em saúde, onde se incluem livros digitais interativos sobre saúde e o Diário da Minha Saúde, que incentivam as pessoas a organizar a sua informação sobre saúde e a assumir o controlo da sua saúde ao longo da vida. Percebe-se cada vez melhor a multidimensionalidade do conceito de saúde e a forma como diversos fatores, em particular os comportamentais, a influenciam. Os desafios em saúde mantêm-se, assim, como uma temática pertinente, de complexidade crescente e nos quais todos - indivíduos, sociedade, profissionais de saúde, decisores políticos - têm um papel a desempenhar. 13-14
Apesar da visão nacional deste estudo, existem algumas limitações metodológicas, nomeadamente a limitação de um único motor de busca, bem como a não caracterização da amostra, inviabilizada pela ferramenta de pesquisa utilizada e pela política de proteção de dados, mas também a impossibilidade de estudar o tipo de ferramentas digitais consultadas pelos utilizadores. 13,14
É necessária mais investigação por forma a avaliar o impacto das campanhas de promoção da literacia da saúde.
A desinformação e os sites não fidedignos são um problema crescente em todo o mundo, sendo particularmente preocupante na área da saúde em que a informação veiculada como correta, não o sendo, pode trazer danos diretos e reiterados à população.
Conclusão
Conclui-se que as doenças neoplásicas são, entre os tópicos estudados, as que suscitam maior interesse na população portuguesa, apesar de serem apenas a terceira causa de morte, precedidas pelo AVC e pelo EAM. A variabilidade do interesse pelas doenças em estudo poderá ser motivada por períodos pandémicos, campanhas de sensibilização e efemérides, mas também por acontecimentos mediáticos na sociedade.
É essencial que o interesse nas principais causas de mortalidade seja vocacionado para estratégias ativas de prevenção, em particular em idade jovem, na qual os fatores de risco modificáveis são maiores.