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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.40 no.4 Lisboa ago. 2024  Epub 31-Ago-2024

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v40i4.13736 

Estudos originais

Conhecimentos e opiniões dos internos de medicina geral e familiar sobre desprescrição

Family medicine residents’ knowledge and opinions towards deprescribing

Margarida Gonçalinho Almeida1 
http://orcid.org/0000-0002-2531-532X

Pedro Simões2  3 

Inês Rosendo4  5 

Luís Monteiro6  7  8 

1. Médica Interna de Formação Geral. ULS Viseu - Dão Lafões. Viseu, Portugal.

2. Médico de Medicina Geral e Familiar. UCSP Fundão. Fundão, Portugal.

3. Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior. Covilhã, Portugal.

4. Médica de Medicina Geral e Familiar. USF Coimbra Centro. Coimbra, Portugal.

5. Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

6. Médico de Medicina Geral e Familiar. USF Esgueira+, ULS Região de Aveiro. Aveiro, Portugal.

7. CINTESIS - Centre for Health Technology and Services Research, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Porto, Portugal.

8. Department of Medical Sciences, University of Aveiro. Aveiro, Portugal.


Resumo

Objetivos:

Pretende-se saber a perceção dos internos de medicina geral e familiar relativamente a opiniões e conhecimentos, sobre a temática da desprescrição.

Métodos:

Estudo transversal. Os dados foram colhidos através de um questionário enviado a internos de medicina geral e familiar de todo o país por correio eletrónico e é referente a 2022. O questionário, previamente estruturado, contém três perguntas de resposta aberta, vinte e duas afirmações para serem classificadas de acordo com uma escala de Likert de cinco pontos e cinco questões de escolha múltipla sobre o género, faixa etária, ano de internato e se a desprescrição foi um tópico discutido e em que fase do percurso profissional.

Resultados:

Obtiveram-se 106 respostas válidas: 76,4% do sexo feminino, 70,8% entre os 25-30 anos e 34% de internos do 1.º ano. A maioria dos inquiridos concorda que a desprescrição traz grandes benefícios e as grandes barreiras passam pela literacia do doente, tempo de consulta e ferramentas e informação insuficiente para médicos e utentes.

Conclusão:

Os resultados obtidos sublinham a importância que a desprescrição tem para os internos e a necessidade de adoção de estratégias para aumentar a desprescrição e diminuir a polifarmacoterapia. Será importante aprofundar a temática para determinar como ter uma adesão mais fácil por parte do doente e criar diretrizes que auxiliem o médico a otimizar a desprescrição.

Palavras-chave: Desprescrição; Polifarmacoterapia; Multimorbilidade

Abstract

Aims:

This study aims to know the perception of the family medicine residents concerning their personal opinions and knowledge about deprescription.

Methods:

Cross-sectional study. The data was collected through a survey sent to interns of family medicine across the country by email. The survey contained three open questions, twenty-two statements to classify using a 5-point Likert scale, five multiple choice sociodemographic questions, and whether deprescription has been a subject discussed in their professional journey and at what stage.

Results:

One hundred and six valid answers were obtained: 76.4% were female, 70.8% were between 25 and 30 years old, and 34% were first-year family medicine residents. Most of the participants agree that deprescribing is beneficial and the barriers include health literacy, time per appointment, and the lack of information for doctors and patients.

Conclusion:

The results underline how important deprescribing is for the residents and the need to adopt strategies for its implementation. It is important to deepen the theme to determine how to have easier adherence from the patient and to create guidelines that help doctors optimize deprescribing.

Keywords: Deprescription; Potentially inappropriate medication list; Multimorbidity

Introdução

Portugal é um dos países da Europa com maior índice de envelhecimento.1 Em 2050, o número de idosos deverá atingir o valor mais elevado de sempre. Em 2030, 24% das pessoas terão 65 ou mais anos. 2 Dos idosos portugueses, mais de 90% tem mais do que uma doença crónica, o que é designado de multimorbilidade. 3 De forma a diminuir o impacto destas doenças muitas vezes recorre-se à polifarmacoterapia. Esta é definida como a toma de cinco ou mais fármacos em simultâneo ou o uso de fármacos não indicados, ineficientes ou que levam a duplicação terapêutica. 4 Em 2018, 77% dos idosos seguidos nos cuidados de saúde primários em Portugal estavam sujeitos a polifarmacoterapia. 5 Para além da multimorbilidade, outros fatores podem contribuir para a polifarmacoterapia, como o seguimento por médicos de diversas especialidades, a presença de doenças mentais crónicas, a residência em instituições de cuidados a longo termo, a não atualização da ficha clínica e as prescrições realizadas de forma não presencial. 6 A polifarmacoterapia acarreta determinados riscos, como o consumo de medicamentos potencialmente inadequados, em que os malefícios da sua toma são superiores aos benefícios, existindo uma alternativa mais segura disponível. 7 Também pode haver prescrições potencialmente inapropriadas associadas à dosagem, duração ou por não estarem de acordo com as necessidades do doente. 3 Devido a alterações na farmacodinâmica e farmacocinética causadas pelo envelhecimento e à elevada quantidade de fármacos que consomem, os idosos têm maior probabilidade de ter interações medicamentosas, em especial se as prescrições não forem as mais adequadas, o que pode aumentar o risco de reações adversas, hospitalizações, morbilidade e mortalidade. 8 De entre as classes farmacológicas que mostraram causar efeitos adversos mais graves encontram-se os anticolinérgicos, benzodiazepinas, antipsicóticos e opioides. 9

Assim sendo, são necessárias estratégias para garantir que as pessoas estão medicadas de forma adequada. O seu objetivo é a redução de custos de saúde sociais e do doente e o aumento de ganhos de saúde, através da redução do risco de interações medicamentosas e melhor adesão terapêutica, também pelo reduzido uso de medicamentos potencialmente inapropriados e diminuição da mortalidade. 11-12 A desprescrição de fármacos é uma abordagem para gerir a polifarmacoterapia, que se define como o processo de paragem ou redução de medicamentos inapropriados, supervisionada por um profissional de saúde. 11 Como outras estratégias, a desprescrição tem os seus riscos, dos quais podem destacar-se síndromas de abstinência, retorno dos sintomas e alterações no metabolismo dos fármacos com que o doente continua a ser medicado. 9 Os internos de medicina geral e familiar (MGF), após a conclusão da sua formação específica, acompanharão os doentes sujeitos a polifarmacoterapia mais regularmente nos anos seguintes e acabarão por prescrever e gerir a toma da maior parte dos fármacos. Existem diversos estudos em Portugal sobre o tema de desprescrição de determinados fármacos ou usando certos modelos computacionais, mas nenhum a nível nacional nos últimos dez anos, em que a população alvo sejam os internos de MGF.

Assim, com este estudo pretende-se saber a perceção dos internos de MGF sobre a temática da desprescrição. Elaborou-se um questionário para estudo transversal, que pretende saber se o tema já foi discutido em alguma fase do seu percurso profissional, que conhecimentos possuem sobre desprescrição e quais as dificuldades, riscos e benefícios que consideram existir quando esta é mencionada, de modo a melhor informar, desenvolver e otimizar intervenções para a desprescrição.

Métodos

Desenho do estudo

Foi realizado um estudo transversal quali-quantitativo com três questões abertas, vinte e duas afirmações para classificar de acordo com uma escala de Likert de cinco pontos e cinco questões de escolha múltipla sobre o género, faixa etária, ano de internato e se a desprescrição foi um tópico discutido e em que fase do percurso profissional.

Amostra do estudo e recrutamento dos participantes

De forma a determinar o tamanho da amostra foram contactadas as coordenações de internato das zonas Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo, Algarve, Madeira e Açores no sentido de aferir o número de internos da especialidade. Obteve-se um total de 1.332 internos de MGF, que inclui 428 da zona Centro, 745 da zona Norte, 62 do Algarve, 48 da Madeira e 49 dos Açores. Face à ausência de resposta, e considerando que as vagas da zona de Lisboa e Vale do Tejo são semelhantes às da zona Norte e as do Alentejo às do Algarve, pode-se estimar um total de 2.139 internos de MGF a nível nacional.

A amostra foi constituída por conveniência, sendo o seu valor-alvo de 241 para uma margem de erro de 5% e um intervalo de confiança de 90%.

O questionário foi enviado a todas as coordenações de internato de MGF de Portugal Continental e Regiões Autónomas e a todos os coordenadores do internato de MGF das mesmas zonas, que ajudaram na divulgação do questionário junto dos internos da especialidade a nível nacional, através dos respetivos correios eletrónicos com um Google Forms®. Os participantes cumpriam os critérios de inclusão desde que fossem internos de MGF entre o primeiro e o quarto ano a exercer em Portugal Continental, Madeira ou Açores, com domínio da língua portuguesa. Não foram definidos critérios de exclusão.

Recolha e análise de dados

A recolha de dados foi feita entre novembro/2022 e janeiro/2023, através de um questionário constituído por quatro partes: uma primeira parte com perguntas sobre características dos respondentes (género, idade, ano de formação); uma segunda parte constituída por duas perguntas sobre desprescrição, sendo que a primeira era de uma única opção e a segunda podia ter várias hipóteses de escolha; uma terceira parte, que consistia em 22 afirmações sobre dificuldades, benefícios e obstáculos à desprescrição para o médico classificar de acordo com o grau de concordância, segundo uma escala de Likert de 5 pontos (1 = Discordo totalmente; 2 = Discordo parcialmente; 3 = Neutro; 4 = Concordo parcialmente; 5 = Concordo totalmente). A última parte era constituída por três perguntas abertas, em que o médico tinha espaço para referir alguma barreira/dificuldade que não tivesse sido mencionada no questionário, formas através das quais a desprescrição poderia ser um tema a discutir em consultas e a importância que achavam que a temática teria no seu futuro como especialistas. As diferentes partes do questionário foram apresentadas na mesma página.

Antes do questionário encontrava-se um texto introdutório onde era explicado o objetivo do estudo e garantido o caráter voluntário e anónimo do questionário. O presente estudo teve parecer favorável da Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro.

Para a análise quantitativa descritiva dos dados utilizou-se os dados fornecidos pelo Google Forms®. Quanto aos dados qualitativos, um investigador codificou as respostas dos participantes, resumindo o seu conteúdo, que foram posteriormente agrupados, por análise de conteúdo. Não foi realizada nenhuma análise estatística para estes dados.

Resultados

Do número estimado de 2.139 internos de MGF, 106 completaram o questionário. O número de participantes representa aproximadamente 5% da totalidade de internos de MGF em Portugal.

A Tabela 1 apresenta as características dos participantes, sendo que dos 106 elementos, 81 eram do sexo feminino (76,4%), 75 (70,8%) tinham entre 25 e 30 anos, 36 (34%) encontravam-se no 1.º ano da especialidade e 35 (33%) no 2.º ano.

Tabela 1 Características dos participantes 

Já tinham abordado o tema «Desprescrição» 95 participantes (89,6%), sendo que apenas 11 não o tinham (10,4%). Para 56 dos participantes (58,9%) ocorreu durante o curso de medicina, para 29 (30,5%) no internato geral/ano comum/formação geral e para 85 (89,5%) no internato da especialidade. Dois dos inquiridos (2,2%) selecionaram a opção «Outro», tendo discutido este tema em “formações que procuraram fazer sobre o tema” e na “prática médica privada”. Na pergunta sobre em que etapa discutiram o tema «Desprescrição», os inquiridos podiam selecionar mais do que uma opção.

Na segunda parte do questionário existiam 22 afirmações sobre desprescrição que foram classificadas de 1 a 5 (1 = Discordo totalmente; 2 = Discordo parcialmente; 3 = Neutro; 4 = Concordo parcialmente; 5 = Concordo totalmente). Na Tabela 2 encontram-se as afirmações do questionário por ordem decrescente de concordância, estando discriminadas as suas frequências e percentagens em cada ponto da escala de Likert.

Tabela 2 Afirmações do questionário por ordem decrescente de concordância, frequências e percentagens de cada ponto da escala de Likert 

As 17 primeiras afirmações apresentam uma maior percentagem de concordância. Estas afirmações são referentes a temas como efeitos da desprescrição, fatores que influenciam a decisão de desprescrever, maior abordagem do tema nas diferentes etapas, expectativas e receios dos doentes, consultas (tempo necessário, revisão do plano terapêutico, orientação do tema, número de consultas) e impacto de ferramentas, guidelines ou modelos computacionais que auxiliem o processo. A maioria discorda com as últimas quatro afirmações, podendo não discordar totalmente. Estas relacionam-se com a relação médico-doente e o efeito da desprescrição nessa relação. A afirmação 18, que questiona sobre a satisfação do doente após ser retirado um fármaco, teve como opção mais escolhida aquela que não concorda nem discorda com o descrito.

Barreiras/dificuldades na desprescrição

A maior parte dos participantes não revelou nenhuma barreira/dificuldade que não tenha sido mencionada nas vinte e duas afirmações previamente mencionadas. Muitos reforçaram algumas dificuldades mencionadas, como: tempo de consulta insuficiente; falta de formação e ferramentas/não dominar o tema (especialmente no que se refere à relação risco/benefício nos idosos); literacia em saúde dos doentes, nomeadamente a sua reticência na paragem da toma de fármacos; seguimento e prescrições por diferentes médicos sem abordagem multidisciplinar sobre a gestão do doente (foi referido em específico a falta de informação sobre o início de certos medicamentos e a represcrição de medicamentos que tinham sido retirados) e a relação médico-doente.

Outras barreiras, mencionadas por uma minoria, incluem a inexistência de consulta própria de gestão do doente sujeito a polifarmacoterapia para se conseguir avaliar a necessidade de desprescrição, a influência dos familiares, especialmente se cuidadores, e a necessidade de mais estudos que demonstrem/quantifiquem o benefício da desprescrição.

Introdução do tema «Desprescrição» na consulta

As sugestões dos respondentes sobre a introdução ao tema «desprescrição» na consulta passaram por combater muitas das dificuldades referidas. As formas mais mencionadas pelos internos incluem: o aumento do tempo de consulta, a existência de ferramentas/guidelines/estudos para auxílio e a revisão da terapêutica em todas as consultas. Relativamente a ferramentas são sugeridos sistemas informáticos que facilitem o registo e consulta da medicação atual. De forma a ultrapassar a dificuldade do não domínio do tema são também sugeridas “sessões com casos práticos durante o internato”.

Alguns internos também consideram importante a introdução de consultas específicas, por exemplo, para seguimento dos doentes durante a desprescrição de certos medicamentos ou consultas de revisão terapêutica para os doentes sujeitos a polifarmacoterapia.

Muitas respostas estão associadas à relação médico-doente, nomeadamente a explicação dos motivos e benefícios da desprescrição (diminuição dos efeitos secundários, interações, custos); a repetição e normalização do assunto nas consultas; a abordagem através da perspetiva do utente, tendo em conta os seus receios e dúvidas; a promoção da capacitação do doente para que seja este a introduzir o tema. Também foi sugerido o uso de folhetos informativos, palestras, aplicações ou formulários sobre desprescrição.

Outras sugestões incluem a prática da desprescrição por todos os médicos e não apenas pelas “gerações mais novas”, “análises sanguíneas” e “abordagem do tema quando é feita a prescrição”.

Algumas citações das respostas a esta perguntam encontram-se na Tabela 3.

Tabela 3 Citações das sugestões dadas sobre como introduzir a desprescrição na consulta 

Importância da desprescrição no futuro como especialista

Muitos dos inquiridos concordam que a desprescrição será muito importante no seu futuro como especialista para “melhorar os cuidados prestados aos utentes”. Acreditam que através da desprescrição é possível reduzir custos em saúde, efeitos adversos, interações medicamentosas, “realizar uma prevenção quaternária” e “melhorar a adesão à terapia e confiança do doente no médico”.

Uma minoria dá uma importância relativa à desprescrição ou acha que “não é aplicável”. Um dos candidatos considera que tem uma importância “mediana”, pois “não pode ser vista sem olhar à otimização terapêutica, estabelecendo objetivos realísticos para a abordagem do utente e apoiando a decisão nessas metas, partilhadas com o utente e mutuamente consentidas”.

Discussão

No presente estudo foram avaliados os conhecimentos e opiniões sobre desprescrição de uma amostra de internos de MGF em Portugal, nomeadamente se o tema foi discutido em alguma fase do percurso profissional, importância, dificuldades e barreiras e abordagem do tema com o doente.

Expectativas do doente

No que se refere à prescrição, a maior parte dos inquiridos concorda que o doente espera ser medicado quando vai a uma consulta, mas admite não prescrever fármacos apenas por essa razão. Esta atitude por parte dos médicos pode levar à diminuição da futilidade terapêutica.

Efeitos no número de consultas

Ao terem menos fármacos nos seus planos terapêuticos, teoricamente, o número de consultas poderia ser reduzido pois muitas interações e efeitos secundários não seriam problemas. Apesar disso, os utentes continuam a ter patologias que necessitam de vigilância e com a desprescrição possivelmente ainda mais, para além de novas queixas, prescrições e avaliação de exames complementares de diagnóstico.

Falta de tempo por consulta e formas de mitigar este obstáculo

A falta de tempo por consulta referida neste estudo e pela American Academy of Family Physicians pode levar os médicos a continuarem a prescrever a medicação habitual do doente, sem fazerem uma revisão terapêutica adequada que passa por inferir a indicação de cada medicamento. Pode ser uma justificação para que a percentagem de inquiridos a concordar que faz a revisão terapêutica em cada consulta não seja maior. Uma forma de ultrapassar esta barreira seria aumentar o tempo de consulta, o que nem sempre poderá resultar, pois outros assuntos importantes para o doente podem ocupar o tempo dedicado à revisão terapêutica. Outra sugestão mencionada pelos internos, e mais passível de obter resultados positivos apesar de logisticamente mais difícil, passa pela criação de consultas para o acompanhamento durante a desprescrição ou consultas específicas para a revisão terapêutica do doente sujeito a polifarmacoterapia. Sendo o médico de família a realizar esta consulta, o número deste tipo de consultas pode até aumentar se a desprescrição for mais adotada na prática clínica. Para além desse entrave era necessário estabelecer quais os critérios de inclusão dos utentes para aceder a esta consulta. A melhor hipótese poderá passar por conciliar a agenda do doente e do médico, onde deve estar incluída a desprescrição, com o tempo atribuído a cada consulta. E, tal como são marcadas consultas para reavaliação dos sintomas após início de terapêutica, o mesmo deverá ser feito quando é feita a desprescrição. Para ter espaço na agenda do médico poder-se-ia pensar em reduzir o número de doentes por cada médico.

Abordagem multidisciplinar

A inexistência de uma abordagem multidisciplinar relativamente à gestão terapêutica é uma barreira à desprescrição mencionada por muitos internos. Para tornar a desprescrição mais fácil seria importante melhorar os sistemas de comunicação entre os médicos de família e outros especialistas.

Literacia dos utentes sobre desprescrição

A baixa literacia em saúde dos doentes, nomeadamente sobre os efeitos benéficos e riscos dos fármacos, condiciona a desprescrição. Estes mostram-se reticentes à suspensão de fármacos, especialmente porque se preocupam com o agravamento dos sintomas ou porque os fármacos foram prescritos por outro profissional de saúde.

Uma forma de ultrapassar este obstáculo passa por capacitar o doente sobre a desprescrição, por exemplo, com folhetos ou fazendo uso de uma boa relação médico-doente, em que este último se sinta confortável a expor os seus receios e dúvidas. Ambas as sugestões têm como objetivo fazer com que o doente sinta que a paragem de certo medicamento é o que lhe traz maior ganho de saúde. Seria ainda interessante fazer mais estudos de desprescrição da perspetiva do doente, de forma a saber o seu verdadeiro conhecimento do tema, dúvidas, crenças e expectativas e comparar com estudos cuja população alvo são médicos.

Ferramentas de apoio inexistentes ou inadequadas

Tendo em conta a análise quantitativa, alguns médicos internos sentem-se capazes de orientar o doente na interrupção da toma de fármacos e outros não. Uma das grandes dificuldades detetada aquando da análise qualitativa, e com algum grau de concordância na análise quantitativa, passa pela falta de guidelines ou ferramentas que auxiliem nesse processo. Esta dificuldade poderá ser o motivo da insegurança de alguns internos na desprescrição.

Muitos negam dificuldades em abordar o doente no que toca à desprescrição. Apesar disso, entre as afirmações com maior grau de concordância encontram-se aquelas em é necessário uma melhor e maior abordagem da desprescrição durante o curso de medicina e durante o internato de MGF de modo a capacitar os médicos. Será importante o investimento em ferramentas comunicacionais, palestras, folhetos ou disponibilização de estudos sobre desprescrição e criação de guidelines de desprescrição para os fármacos mais comummente indevidamente prescritos para que os internos se sintam confiantes em introduzir o tema «desprescrição» e orientar o doente durante este processo.

Alguns internos referem, na pergunta aberta, a necessidade de mais estudos que demonstrem o benefício da desprescrição. Será importante a divulgação de mais estudos que abordem este tema, que mostrem claro benefício ou não inferioridade. Uma vez que 87,7% e 82,1%, respetivamente, concordam que os custos para o doente e para o Sistema Nacional de Saúde são reduzidos com a desprescrição, estudos que demonstram não inferioridade são suficientes para provar que desprescrever é mais eficiente do que não o fazer. Este benefício também é um dos encontrados pela American Academy of Family Physicians.

Num outro estudo, que pretendia saber as práticas de desprescrição, hábitos e atitudes de especialistas e internos de geriatria por toda a Europa, foram encontradas as mesmas barreiras mencionadas pela American Academy of Family Physicians, e outras também encontradas neste estudo, como a falta de guidelines ou ferramentas específicas e uma abordagem insuficiente da desprescrição durante o percurso profissional. 13

Como linhas futuras de investigação seria importante a realização de trabalhos sobre medicamentos potencialmente inapropriados em Portugal e continuar a monitorizar a sua prescrição. Outra possibilidade seria a aplicação das opiniões mencionadas no presente estudo para auxiliar na abordagem da desprescrição.

Pontos fortes e limitações

O questionário não foi validado formalmente, o que torna difícil a comparação com estudos atuais e futuros. Não foi adotada uma metodologia que permitisse a dupla ocultação, o que também constitui uma forte limitação do estudo. Este foi respondido de forma anónima e sem nenhum método identificativo da resposta. Deste modo, não se pode ter a certeza de que um indivíduo apenas submeteu uma vez o formulário, nem que as suas respostas foram a sua própria opinião e não apenas aquilo que é considerado socialmente mais aceite. Apesar de ter sido divulgado através do correio eletrónico da coordenação de internato, também não é possível garantir que apenas internos participaram. Uma vez que não se atingiu o tamanho amostral alvo não é possível generalizar os resultados para a população. Esta amostra poderia ter sido atingida, usando outros meios de difusão do formulário, através de redes sociais ou questionários em papel. O alargamento do prazo para a colheita de respostas poderia ter sido outra medida tomada. Foi usada uma amostra de conveniência, o que pode introduzir um viés de seleção. Para além disso, apesar das diversas tentativas de difusão do questionário, o número de respostas depende sempre do interesse do interno no seu preenchimento.

Até onde é possível saber, este estudo representa o primeiro estudo sobre desprescrição que envolve apenas o parecer dos médicos em formação. Sendo estes os médicos que representam muitas vezes o primeiro contacto dos doentes é importante saber as suas opiniões neste momento, pois a maioria destas poderá manter-se. Para além disso, tendo a noção das atitudes dos internos é possível identificar os pontos que devem ser melhorados para que a desprescrição seja mais usada na prática clínica e, consequentemente, obter um melhor tratamento dos doentes.

Conclusão

O presente estudo permitiu aferir as perspetivas dos internos relativamente à desprescrição: expectativas do doente, relacionamento médico-doente, dificuldades especialmente no que se refere ao tempo de consulta e de ferramentas/informação disponíveis, benefícios, fatores que influenciam a tomada de decisões e a necessidade de abordagem multidisciplinar. Através deste estudo é possível concluir que a desprescrição é algo considerado importante para os futuros médicos especialistas de MGF, porque o consideram benéfico para os doentes.

Os resultados obtidos sublinham a importância na adoção de estratégias para aumentar a desprescrição e diminuir a polifarmacoterapia inadequada. Por conseguinte, deve ser feito um investimento na formação dos médicos, mesmo durante o curso de medicina, e dos doentes para que melhore a literacia sobre este tema. Será igualmente importante a criação de sistemas que facilitem a comunicação entre profissionais de saúde para uma melhor gestão do plano terapêutico do doente. A elaboração de guidelines para a desprescrição de alguns medicamentos ou normas de abordagem e tratamento de diversas patologias que mencionem quando e como deve ser reduzida a intensidade terapêutica parecem ser também uma estratégia adequada.

Contributo dos autores

Conceptualização, MGA, IR e LM; metodologia, MGA, IR e LM; análise formal, MGA; investigação, MGA, IR, LM e PS; redação do draft original, MGA; revisão, validação e edição do texto final, MGA, IR, LM e PS; supervisão, IR, LM e PS. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento do estudo

Os autores declaram não ter recebido qualquer fonte de financiamento para a elaboração do artigo científico.

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Recebido: 20 de Março de 2023; Aceito: 20 de Janeiro de 2024

Endereço para correspondência Margarida Gonçalinho Almeida E-mail: margaridaigalmeida@gmail.com

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