Introdução
A pneumonia é nos dias de hoje uma causa significativa de morbilidade e mortalidade, correspondendo à doença infeciosa com maior taxa de mortalidade em todo o mundo e ocupando o quarto lugar na lista das principais causas de morte à escala global.1 Em Portugal, de acordo com os dados disponibilizados pela Sociedade Portuguesa de Pneumologia, a pneumonia é responsável por dezasseis mortes por dia. 2
O diagnóstico de pneumonia adquirida na comunidade (PAC) é um dos mais frequentes na prática clínica. Nos Estados Unidos da América, a PAC é responsável por mais de 4,5 milhões de idas ao serviço de urgência ou a consultas não programadas nos cuidados de saúde primários (CSP) por ano. 3 Além disso, no Reino Unido, a incidência de PAC com subsequente necessidade de hospitalização aumentou 8,8% por ano entre 2009 e 2014. 4
A PAC é diagnosticada em contexto de ambulatório ou em doentes hospitalizados cujos sintomas tenham início durante as primeiras 48 horas de internamento. Em termos epidemiológicos existem vários fatores já identificados que contribuem para o aumento do risco de desenvolver pneumonia, nomeadamente a idade superior a 65 anos ou diagnóstico prévio de diabetes, ambos altamente prevalentes na população portuguesa. 5 Hábitos como o tabagismo e o alcoolismo também estão implicados no cálculo de risco. Em geral, a taxa de incidência da PAC é superior nos indivíduos do sexo masculino, aumenta progressivamente com a idade e é mais frequente durante os meses de Inverno. 6
Este relato de caso tem como objetivo principal sensibilizar para apresentações menos comuns de pneumonia nos CSP, relembrar o papel indispensável do exame objetivo na prática clínica e reforçar a importância do seguimento pós-hospitalar atento e cuidado nos CSP, mesmo quando o diagnóstico e plano terapêutico já estão estabelecidos e o doente parece recorrer à consulta apenas por uma questão burocrática de continuidade de cuidados.
Descrição do caso
Descreve-se o caso de um homem de 39 anos de idade, de raça caucasiana, autónomo nas atividades de vida diária.
Como antecedentes pessoais relevantes, a destacar diabetes mellitus tipo 2, diagnosticada em 2022, hipertensão arterial diagnosticada em 2022 e enfarte agudo do miocárdio no mesmo ano. Encontrava-se medicado com metformina 700 mg duas vezes por dia, carvedilol 6,25 mg duas vezes por dia, ácido acetilsalicílico 100 mg uma vez por dia, lisinopril 5 mg uma vez por dia, fenofibrato 267 mg uma vez por dia e atorvastatina 20 mg uma vez por dia. Tratava-se de um doente fumador, com carga tabágica de 12 unidades maço-ano. O plano nacional de vacinação estava atualizado e negava a existência de alergias medicamentosas ou alimentares.
O doente recorreu ao serviço de urgência por queixas de dor lombar à esquerda com dois dias de evolução, tipo facada, sem irradiação. Referiu ainda um pico febril isolado (temperatura axilar 38 °C) e um episódio de vómito de conteúdo alimentar no dia anterior. Ao exame objetivo apresentava-se vígil, colaborante e orientado no tempo e espaço. As suas mucosas estavam coradas e hidratadas e permanecia eupneico em ar ambiente, sem sinais de dificuldade respiratória. Apresentava saturação periférica de O2 98%, pressão arterial de 139/77 mmHg e temperatura timpânica 36,6 °C. À auscultação cardíaca foram descritos tons cardíacos rítmicos sem sopros e à auscultação pulmonar um murmúrio vesicular mantido e simétrico sem ruídos adventícios. Foi registado ainda sinal de Murphy renal positivo do lado esquerdo. A palpação abdominal revelou-se inocente.
Colocou-se então a hipótese diagnóstica de cólica renal esquerda, pelo que foi requisitada avaliação analítica, avaliação sumária da urina (UII) e urocultura. Nas análises foi detetado um aumento discreto dos parâmetros inflamatórios, com leucocitose de 14620/uL, neutrofilia de 10910/uL e PCR de 39,7 mg/L. O sedimento urinário revelou-se inocente, com ausência de eritrócitos na urina. Assim, foi assumido o diagnóstico de cólica renal não complicada. O doente teve alta, medicado com tansulosina 0,4 mg 1 id e naproxeno 500 mg 2 id em SOS durante três dias, com a indicação de se deslocar ao seu médico de família para que fosse requisitada uma ecografia renal e vesical de forma a completar o estudo em ambulatório.
Três dias depois, o doente dirigiu-se à Unidade de Saúde Familiar onde está inscrito para uma consulta não programada com o objetivo de obter a requisição da ecografia. Durante a exploração do motivo que o levara a deslocar-se ao hospital referiu manter a lombalgia e mencionou cansaço progressivo, apresentando por vezes dificuldade em respirar. O médico consultou então os registos hospitalares, confirmando que a avaliação sumária de urina não apresentava alterações, assim como o resultado da urocultura, já disponível, que se revelou estéril.
Durante o exame objetivo, o doente apresentava saturação periférica de O2 92-95% em ar ambiente. A auscultação pulmonar revelou a presença de fervores na base do campo pulmonar esquerdo, assim como diminuição global do murmúrio vesicular do lado esquerdo e redução das transmissões vocais na mesma área.
Enquadrando as queixas persistentes nos achados descritos foi colocada a hipótese diagnóstica alternativa de uma pneumonia do lobo inferior esquerdo. Neste contexto, obteve-se o resultado de zero pontos no score CRB-65, pelo que se decidiu pelo tratamento em ambulatório. Dados os antecedentes pessoais do doente e a sua carga tabágica optou-se por iniciar terapêutica empírica com amoxicilina 1000 mg de 8 em 8 horas por sete dias, juntamente com azitromicina 500 mg 1 id durante cinco dias. Foi pedida uma radiografia torácica e abdominal e agendada consulta de reavaliação para três dias depois.
Nesta consulta, o doente referiu melhoria significativa das queixas, relatando diminuição franca do cansaço e dispneia. A auscultação pulmonar revelou ainda alguns fervores no campo pulmonar inferior esquerdo menos marcados relativamente à observação anterior e uma menor diminuição do murmúrio vesicular, sendo mais evidente na base do campo pulmonar esquerdo. A radiografia de tórax realizada evidenciou uma clara zona de hipotransparência do lobo inferior esquerdo, assim como concomitante discreto apagamento do seio costo-frénico esquerdo, sugerindo condensação do parênquima com derrame pleural associado. Por outro lado, a radiografia abdominal não revelou alterações, não tendo sido detetadas zonas de opacidade que poderiam ser compatíveis com litíase renal.
Assim, a hipótese diagnóstica de PAC foi confirmada pela clínica e avaliação complementar. Como plano, foi proposto que o doente cumprisse o esquema de antibioterapia prescrito e foi programada consulta de seguimento com o seu médico de família na Unidade de Saúde Familiar.
Comentário
A apresentação clássica da pneumonia é geralmente pautada por um quadro de febre e tosse produtiva, associada a dor torácica de características pleuríticas e dispneia. Ao exame objetivo, a taquipneia, frémito vocal e macicez à percussão são também achados frequentes, bem como a auscultação pulmonar que habitualmente revela fervores ou roncos na zona correspondente ao parênquima afetado. No entanto, a apresentação acima descrita nem sempre corresponde à observada. Perante a presença de fatores de risco, como o aumento da idade ou a imunossupressão, o quadro clínico pode tornar-se progressivamente mais subtil, com ausência de febre ou leucopenia e maior prevalência de sintomas inespecíficos, como a alteração do estado mental. 7 Para além disso, uma vez que a localização da dor torácica varia segundo a área parenquimatosa afetada, a apresentação inicial pode resumir-se apenas a dor lombar ou nos flancos nos indivíduos em que exista envolvimento dos lobos pulmonares inferiores. 8
No caso descrito, a lombalgia marcada e febre pareciam sugerir patologia do foro urinário ou renal - o diagnóstico proposto inicialmente no serviço de urgência. No entanto, o facto de se tratar de um doente fumador, com comorbilidades significativas (nomeadamente o diagnóstico de diabetes), poderia servir como sinal de alerta para uma apresentação menos comum de um quadro respiratório. De facto, o que foi interpretado como positividade do sinal de Murphy renal à esquerda corresponderia provavelmente a dor proveniente do envolvimento da pleura no lobo inferior esquerdo.
Porém, é importante relembrar que nenhum sintoma ou conjunto de sintomas é específico do diagnóstico de pneumonia. Neste caso, no contexto de suspeita de cólica renal, a avaliação analítica confirmou a presença de leucocitose e discreto aumento dos parâmetros inflamatórios, o que poderia ser compatível com a hipótese colocada. Porém, o exame sumário de urina revelou ausência de hematúria, que está presente na maioria dos doentes com cólica renal. 9
De entre os doentes com diagnóstico final de pneumonia, aqueles cuja apresentação inicial é mais subtil são provavelmente os que têm maior probabilidade de serem encaminhados para os CSP. Assim, em situações de dúvida diagnóstica, a investigação complementar básica como avaliação analítica, com recurso ao hemograma e bioquímica, permitirá avaliar a presença de biomarcadores de inflamação como a proteína C reativa (PCR) e reagentes de fase aguda, assim como a existência de leucocitose, que é a alteração mais provável. 10 Para além disso, perante casos em que haja qualquer suspeita clínica de pneumonia é recomendada a realização de exames imagiológicos, sobretudo a radiografia torácica, de forma a confirmar ou excluir o diagnóstico com maior confiança. 11 No entanto, apesar de em contexto hospitalar a realização de exames de imagem ser facilitada, o ambiente dos CSP nem sempre é favorável. Neste sentido, a British Thoracic Society dita que a requisição de uma radiografia torácica em doentes ambulatórios seja feita apenas em três situações: se existe dúvida em relação ao diagnóstico após anamnese e exame objetivo minucioso, se a evolução clínica não é favorável sob tratamento adequado ou se existe a possibilidade de o doente avaliado apresentar patologia pulmonar subjacente, nomeadamente neoplasia pulmonar. 12 Por outro lado, as recomendações da Sociedade Portuguesa de Pneumologia reforçam a importância da radiografia de tórax nos doentes com PAC tratados em ambulatório para confirmação diagnóstica, sem prejudicar a instituição precoce da terapêutica. 13
Neste caso, a apresentação clínica peculiar do doente, referindo como principal queixa a lombalgia e negando inicialmente sintomatologia respiratória, conduziu ao diagnóstico de cólica renal proposto no serviço de urgência. Porém, durante a consulta subsequente nos CSP, os achados ao exame objetivo, como fervores na base do campo pulmonar esquerdo, diminuição global do murmúrio vesicular, redução da transmissão vocal do mesmo lado e a diminuição da saturação periférica de oxigénio no sangue, foram indicativos do diagnóstico de pneumonia, cumprindo então o primeiro critério supracitado para realização de radiografia torácica, que foi requisitada.
Tendo por base o desenrolar da investigação complementar no caso descrito, é importante considerar o eventual papel que a existência de meios auxiliares de diagnóstico de acesso imediato em ambulatório (Point of Care Testing) poderá ter. Ainda que em Portugal a disponibilidade deste tipo de serviços seja limitada existe evidência de que a determinação de parâmetros analíticos, como a PCR e a procalcitonina, é clinicamente valiosa e possibilita uma abordagem diagnóstica mais custo-eficiente. 14 Acresce ainda que a natureza simples e pouco invasiva da sua colheita, aliada à rapidez de obtenção de resultado, tornam esta análise uma mais-valia interessante e com enorme potencial no contexto dos CSP, já que poderá ser determinante da necessidade de tratamento antibiótico e reduzir simultaneamente a prescrição indiferenciada que tanto contribui para o aumento do espectro da resistência microbiana.
Quanto ao tratamento da PAC, os diferentes regimes de antibioterapia empírica têm como objetivo cobrir a maioria dos agentes bacterianos causadores da infeção, incluindo Streptococcus pneumoniae e Haemophilus influenzae, assim como agentes atípicos, nomeadamente Mycoplasma pneumoniae, Legionella pneumophila e Chlamydia pneumoniae.
A seleção da antibioterapia varia consoante vários fatores: a idade do doente e os seus hábitos, a existência de comorbilidades e a toma de antibióticos nos três meses anteriores. 15
Assim, tratando-se de um doente fumador, com diagnóstico prévio de diabetes mellitus e antecedentes de enfarte agudo do miocárdio, optou-se por um esquema terapêutico com amoxicilina e azitromicina. Na consulta seguinte, agendada para seguimento, a suspeita diagnóstica foi confirmada e verificou-se evolução clínica favorável, o que permitiu aferir o sucesso do tratamento.
Analisando a evolução do caso descrito, um ponto importante a destacar é o papel da intervenção dos CSP. O percurso singular deste doente, desde a sua apresentação no serviço de urgência até ao diagnóstico e tratamento adequado, promove a reflexão acerca do papel do médico de família no acompanhamento de situações agudas e respetivo seguimento pós-hospitalar. Ainda que as estruturas dos CSP sejam geralmente desprovidas de meios complementares de diagnóstico, é neste contexto que são estabelecidos um número muito significativo de diagnósticos inaugurais. De facto, as ferramentas diagnósticas fundamentais de um médico de família continuam a ser a entrevista clínica e o exame objetivo. A capacidade de comunicação e avaliação clínica adquirida pelo ambiente de consulta, bem como a experiência na tomada de decisão sem recurso a exames complementares imediatos colocam o médico de família numa posição particular. 16 Acresce ainda como papel desempenhado pelo médico assistente o aspeto da prevenção, cujo impacto não deve ser desconsiderado. A implementação de programas a nível populacional, nomeadamente, neste caso, a vacinação antipneumocócica de grupos vulneráveis, tem o potencial de reduzir a incidência de doença invasiva e limitar o número de hospitalizações, com um impacto significativo na morbilidade e mortalidade. 17 Efetivamente, o acompanhamento regular oferecido pelos CSP está associado a uma diminuição das taxas de internamento, menor interposição de tratamentos e, em última instância, acesso à saúde com melhor qualidade. 18
Tudo isto é ilustrado através do caso exposto, em que apesar do motivo apresentado no início da consulta ser apenas a requisição de um exame imagiológico, a anamnese completa e valorização devida das queixas do doente conduziram a uma reformulação diagnóstica com significativo impacto no prognóstico.
Em suma, perante a suspeita de pneumonia no contexto dos CSP, a exploração da sintomatologia e a realização de um exame objetivo pormenorizado são etapas fulcrais do diagnóstico e não devem ser dispensadas ou subvalorizadas. No caso dos doentes com patologia crónica, o índice de suspeição deve ser ainda mais elevado, já que a forma de apresentação é muitas vezes diferente da clássica. A própria existência de seguimento clínico pós-hospitalar permite a criação de uma verdadeira “rede de segurança”, na medida em que a avaliação médica independente da equipa que fez o diagnóstico permite confirmá-lo e assegurar a evolução clínica favorável, detetando precocemente eventuais complicações. O caso clínico exposto realça, assim, o impacto que a ação do médico de família, alavancada na experiência e conhecimento aprofundado do doente, pode ter no diagnóstico e prognóstico, evitando desfechos indesejáveis e promovendo a qualidade dos cuidados prestados.