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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.40 no.4 Lisboa ago. 2024  Epub 31-Ago-2024

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v40i4.13549 

Relatos de caso

Sífilis secundária com VDRL não reativo: um caso clínico de fenómeno prozona?

Non-reactive VDRL in secondary syphilis: a clinical case of prozone phenomenon?

Rita Ribau1 
http://orcid.org/0000-0002-4805-664X

Inês Rua2 

Elsa Martins3 

1. Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Santa Joana. Aveiro, Portugal

2. Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar. USF Salinas. Cacia, Portugal

3. Médica Assistente Graduada de Medicina Geral e Familiar. USF Santa Joana. Aveiro, Portugal


Resumo

Introdução:

A sífilis é uma doença sexualmente transmissível provocada pela bactéria Treponema pallidum. É uma infeção prevenível e tratável. Pode apresentar várias manifestações, consoante o seu estadio - primário, secundário ou latente. O fenómeno de prozona é uma situação rara em que, pelo excesso de anticorpos na sífilis secundária, o VDRL apresenta um resultado qualitativo falso-negativo. Este caso clínico tem como objetivo sensibilizar para a existência deste fenómeno e da importância do senso clínico.

Descrição do caso:

Utente do sexo masculino de 44 anos, sem antecedentes relevantes, recorre a consulta de doença aguda por lesões cutâneas dispersas pela face, tórax, dorso e membros superiores com um mês de evolução, associadas a quadro sistémico de artralgias, mialgias, sensação de perda de peso, adenopatias axilares e inguinais, cefaleias frontais, lacrimejo bilateral e zumbido. Na anamnese, o utente refere episódio de ida ao serviço de urgência, cerca de cinco meses antes, por aparecimento de lesão peniana indolor, tendo sido medicado com antibioterapia com posterior resolução da mesma. Menciona ainda a prática de relações sexuais desprotegidas. Perante a suspeita de sífilis, em fase secundária, foram solicitadas análises sanguíneas que revelaram VDRL não reativo e, para além disso, alterações hepáticas significativas. Dada a evolução incongruente da marcha diagnóstica, o utente foi enviado ao serviço de urgência, onde se confirmou o diagnóstico de sífilis secundária por reatividade do VDRL, TPHA e anticorpo anti-Treponema pallidum.

Comentário:

Este caso demonstra a importância da priorização do senso clínico ao invés dos meios complementares de diagnóstico que, pelo seu resultado aparentemente contraditório, poderia ter alterado a conduta médica e, em última instância, a latência no diagnóstico e orientação terapêutica do utente, com potenciais complicações a longo prazo, nomeadamente o desenvolvimento de sífilis terciária.

Palavras-chave: Doença sexualmente transmissível; Sífilis secundária; VDRL não reativo; Fenómeno prozona

Abstract

Introduction:

Syphilis is a sexually transmitted infection caused by the bacterium Treponema pallidum. Syphilis is preventable and treatable and can present several manifestations, depending on its stage - primary, secondary, or latent. The prozone phenomenon is a rare situation in which, due to an excess of antibodies in secondary syphilis, the VDRL presents a false-negative qualitative result. This clinical case aims to raise awareness of the existence of this phenomenon and the importance of clinical sense.

Case description:

A 44-year-old male patient, with no relevant history, went to an acute illness appointment due to cutaneous lesions spread over the face, chest, back, and upper limbs with one month of evolution, associated with systemic arthralgias, myalgias, weight loss sensation, axillary adenopathy and frontal headaches, bilateral tearing and tinnitus. In the anamnesis, the patient refers to an episode in the emergency department, about five months ago, due to the appearance of a painless penile lesion, which has been medicated with antibiotic therapy with subsequent resolution. It also mentions the practice of unprotected sex. In front of the suspicion of syphilis, in the secondary phase, blood tests were requested, which surprisingly revealed non-reactive VDRL and, in addition, significant liver changes. Given the unpredictable evolution of the diagnostic procedure, the patient was sent to the emergency department, where the diagnosis of secondary syphilis was confirmed by VDRL, TPHA reactivity, and anti-Treponema pallidum antibodies.

Comment:

This case demonstrates the importance of prioritizing clinical sense over-diagnose examinations which, due to its contradictory result, could have altered the medical conduct and, ultimately, the latency in the diagnosis and orientation of the patient, with potentially long-term complications, namely the development of tertiary syphilis.

Keywords: Sexually transmitted disease; Secondary syphilis; Non-reactive VDRL; Prozone phenomenon

Introdução

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou, em 2020, uma incidência mundial de 374 milhões de doenças sexualmente transmissíveis (DST), incluindo a clamídia (129 milhões), a gonorreia (82 milhões), a sífilis (7,1 milhões) e a tricomoníase (156 milhões).1

Segundo o último relatório epidemiológico do ECDC (European Centre for Disease Prevention and Control), em 2018, foram confirmados 33.927 casos de sífilis na União Europeia, dos quais 228 em Portugal. 2

A sífilis é uma DST provocada pela bactéria Treponema pallidum.3 A inoculação inicial ocorre através de contacto com lesões cutâneas ou membranas mucosas, geralmente através de contacto sexual. O período de incubação (tempo até desenvolvimento de sífilis primária) é, em média, de três semanas; pode, no entanto, variar entre nove ou dez dias até três meses. 3

Na evolução natural da infeção são reconhecidas três fases de doença ativa: a sífilis primária, a secundária e a terciária. Entre os períodos de atividade, a doença permanece silenciosa, assintomática, analiticamente detetável, designando-se por sífilis latente, recente (até aos dois anos de infeção) ou tardia (dois ou mais anos de evolução). 4 Alguns autores definem a fase latente precoce se a duração da infeção for inferior ou igual a um ano e tardia se superior a um ano. 3,5-6

A sífilis primária caracteriza-se pela presença de uma lesão dermatológica, localizada na zona genital (em 90 a 95% dos casos), perineal, anal, bucal ou faríngea, que progride de mácula a pápula e posteriormente a úlcera, endurecida, indolor e de base não purulenta. 5 Em 40% dos casos, estas lesões são múltiplas. 3,5 Pode ser acompanhada por linfadenopatias regionais indolores. 5 O “cancro duro”, também designado de protossifiloma, desaparece espontaneamente, isto é, na ausência de tratamento, sem formação cicatricial, entre uma a seis semanas. 3,6

Com a disseminação hematogénea surge a fase de sífilis secundária, que resulta no aparecimento, três a seis semanas após a úlcera primária, 3 de lesões na pele (sifílides). Podem apresentar-se sob a forma de máculas eritematosas (roséola sifilítica), de duração efémera ou como um exantema maculopapular, difuso, que afeta em mais de 50% dos casos3 as palmas das mãos e as plantas dos pés, de superfície plana, cobertas por discretas escamas mais intensas na periferia (colarete de Biett), podendo ter um aspeto psorisiforme pela sua descamação intensa. Na face e na região perioral, as lesões tendem a agrupar-se simulando a dermatite seborreica. As lesões nas regiões intertriginosas, como na zona inguinocrural, podem adquirir aspeto de condiloma lata ou plano. 3,6

Adicionalmente pode surgir alopecia difusa, acentuada na região temporoparietal e occipital (em clareira), perda de cílios, incluindo na porção distal das sobrancelhas, linfadenopatia generalizada, mal-estar, anorexia, astenia, febre baixa, cefaleias, meningismo, artralgias, mialgias, faringite, rouquidão, hepatoesplenomegalia, síndroma nefrótico, glomerulonefrite, neurite do nervo auditivo, iridociclite e periostite. 5-6

Os sintomas desta fase duram semanas a meses e desaparecem espontaneamente, mesmo sem tratamento. 5 Durante o primeiro ano de infeção, esta pode evoluir por surtos, marcados progressivamente por maiores períodos de latência.3,6 Um terço obtém a cura clínica e serológica, um terço permanece assintomático, mantendo testes serológicos não-treponémicos positivos e, nos restantes, a doença volta a manifestar-se como sífilis terciária. 3,5-6

Nesta fase terciária, a doença pode afetar qualquer órgão, nomeadamente os sistemas cardiovascular e neurológico. As lesões cutâneas terciárias caracterizam-se pela formação de granulomas destrutivos (gomas). 6 Cerca de dez a trinta anos após a infeção inicial, a sífilis pode acometer o sistema cardiovascular, em 70% dos casos sob a forma de aorterite (mais comum na aorta ascendente), com as suas complicações inerentes, como a formação de aneurisma, insuficiência aórtica e estenose do óstio da coronária. 6 Entre doze a dezoito meses após a infeção inicial, o microorganismo pode invadir as meninges, desaparecendo em 70% dos casos sem tratamento. 6 O quadro de neurossífilis estabelece-se quando a infeção persiste. A presença de alterações do líquido cefalorraquidiano, na ausência de sinais e sintomas neurológicos, define-se como neurossífilis assintomática. Pode manifestar-se como meningite aguda, simular um quadro de acidente vascular cerebral ou tumoral. Tardiamente pode progredir para tabes dorsalis, caracterizada por paralisia geral progressiva. 3,5

Diagnóstico laboratorial

A pesquisa do T. pallidum por microscopia direta em campo escuro, através da marcação de anticorpos por imunofluorescência direta ou por técnicas de amplificação de ácidos nucleicos (NAAT), pode ser realizada em lesões primárias e secundárias, mediante a recolha de uma amostra biológica, como exsudados provenientes de lesões. 3-7

Os testes serológicos podem ser realizados a partir da segunda ou terceira semana após o aparecimento da lesão primária, devido à produção de anticorpos. 4,6 Subdividem-se em testes não-treponémicos e testes treponémicos.

Os testes não-treponémicos são geralmente utilizados para rastreio (screening) pela sua elevada sensibilidade - VDRL (Venereal Disease Research Laboratory) e RPR (Rapid Plasma Reagin).7

Ambos podem ser qualitativos ou quantitativos, detetados por método de aglutinação. 4,8 O teste qualitativo fornece apenas a informação se foram encontrados anticorpos na amostra (reativo/ não reativo). 9 Já o teste quantitativo, realizado nas amostras que forem reagentes ao teste qualitativo, permite estimar a quantidade desses anticorpos através da titulação. 8 Esta é obtida por meio de diluições seriadas, sendo o resultado o valor da última diluição a apresentar reatividade. 6,8 Por isso, quanto maior o denominador do resultado maior a carga de anticorpos detetados (1:1=reação mínima e 1:512=título alto).

O VDRL positiva entre cinco a seis semanas após o contacto com a infeção e duas a três semanas após a lesão primária, podendo estar negativo na sífilis primária. 4,6 Assim, perante uma lesão suspeita de sífilis primária aconselha-se a repetição do teste não-treponémico duas semanas após o resultado não-reativo inicial. 3-4 Na fase de sífilis secundária apresenta elevada sensibilidade, diminuindo a mesma nas formas mais tardias da doença, mesmo sem tratamento. 3,6,10 Em cerca de 30% dos casos de sífilis tardia, o VDRL/RPR é negativo. 9

O VDRL utiliza um antigénio constituído por lecitina, colesterol e cardiolipina purificada. A cardiolipina é um componente quer da parede do T. pallidum quer da membrana plasmática celular dos mamíferos, libertada após dano celular. 5 Daí que entre 1-2% possam surgir falsos-positivos, como no processo fisiológico de envelhecimento, gravidez, neoplasias, toxicodependência, mononucleose infeciosa e doenças autoimunes como lúpus eritematoso sistémico, artrite reumatoide ou síndroma dos anticorpos antifosfolípidos. 5,9 Nestas situações, a reatividade ocorre frequentemente com baixas diluições (<1:8); no entanto, também foram reportados casos de falsos-positivos reativos com títulos altos (>1:256), pelo que os títulos quantitativos não podem ser utilizados como diferenciadores entre uma reação de um falso-positivo e a sífilis, particularmente em utilizadores de drogas endovenosas, onde em mais de 10% ocorre um falso-positivo com títulos >8. 9

Entre 1 e 2% (até 10%) o VDRL pode representar um resultado falso-negativo, explicado pelo excesso de anticorpos na sífilis secundária - processo que se designa de fenómeno prozona. 3-4,6-8 Estes casos podem ser evitados utilizando-se maiores diluições do soro. 6 Este fenómeno ocorre mais comummente em pessoas com infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH), sendo a sua incidência muito baixa (0-0,4%) em indivíduos sem esta infeção. 9

Os testes não-treponémicos são importantes no controlo da cura. 4,7 A persistência de baixos títulos em doentes tratados corretamente designa-se de cicatriz serológica e pode permanecer vários anos. 6

Os testes treponémicos são utilizados para confirmação do diagnóstico pela sua elevada especificidade - TPHA (Treponema pallidum Haemagglutination Assay), FTA-ABS (Fluorescent treponemal Antibody Absorption Test) ou EIA (Enzyme Immunoassay Test).7

Estes detetam anticorpos específicos (IgM e IgG) contra componentes celulares dos treponemas. São os primeiros a positivar após a infeção; por isso, podem ser reativos na sífilis primária. 6,8 São reportados de modo qualitativo (reativo/não reativo). 3

Todos os testes não-treponémicos reativos devem ser confirmados por um teste treponémico, no sentido de excluir a presença de um teste falso-positivo. 3,7

Em 85% dos casos, os testes treponémicos permanecem reativos durante toda a vida nos indivíduos que contraem sífilis, independentemente do tratamento. 3,6 Assim, estes não são utilizados para monitorização da resposta terapêutica. 8

Mudança de paradigma

Para o diagnóstico de sífilis está enraizado o algoritmo de rastreio tradicional, que consiste no uso inicial de um teste de rastreio não-treponémico seguido de confirmação com os resultados do teste treponémico. Atualmente, por diversos motivos, defende-se a adoção de outros algoritmos, como: 7-8,11

• Algoritmo de sequência reverso (reverse sequence syphilis screening): primeiro solicita-se um teste treponémico e, se este der reativo, pede-se um teste não-treponémico.

• Algoritmo de sequência reverso atualizado (updated reverse algorithm): um teste treponémico é usado inicialmente, seguido de um segundo teste treponémico e, posteriormente, um teste não-treponémico.

• Algoritmo híbrido (hybrid algorithm for syphilis diagnosis): o teste treponémico e o teste não-treponémico são solicitados simultaneamente, em caso de elevada suspeição; em caso de incongruência entre os dois é solicitado um segundo teste treponémico.

Este relato de caso tem como objetivo apresentar a existência do fenómeno raro de prozona, que pode justificar um falso negativo no teste não-treponémico VDRL em doentes com sífilis secundária.

Descrição do caso

O caso reporta-se a um utente, do sexo masculino, de 44 anos, caucasiano, sem antecedentes pessoais relevantes, que recorreu a consulta de doença aguda na Unidade de Saúde Familiar (USF) em 10/janeiro/2022 por lesões cutâneas no tórax, dorso, membros superiores e face, inicialmente pruriginosas, com um mês de evolução. Apresentava também quadro de artralgias e mialgias generalizadas, sensação de perda de peso, adenopatias axilares e cefaleias frontais com lacrimejo bilateral e zumbido. Figura 1

Linha temporal 

O utente negou alterações gastrointestinais e urinárias, suores noturnos e febre. Negou também consumo de drogas, suplementos, álcool e toma de medicação habitual.

Admitiu ter relações sexuais desprotegidas cinco meses antes, tendo recorrido ao serviço de urgência por aparecimento de lesão peniana indolor. No registo do episódio de urgência, em 07/agosto/2021, havia referência a sinais inflamatórios penianos, corrimento uretral e disúria com 10 dias de evolução. Não foram realizados testes para exclusão de sífilis nem exsudados uretrais para confirmação diagnóstica. Assumindo tratar-se de uma DST cumpriu ciclo de azitromicina 1 g toma única e cefuroxima 500 mg 12h/12h durante oito dias, por recusa de medicação injetável proposta - ceftriaxone intramuscular. Referiu resolução das queixas em duas semanas. Por lhe ter sido transmitida a probabilidade de se tratar de uma DST, o utente realizou, por sua iniciativa, testes rápidos serológicos, incluindo VIH e sífilis que, segundo o próprio, não tinham alterações.

Na consulta de doença aguda na USF apresentava, ao exame objetivo, rash maculopapular, não-pruriginoso, disperso pelos membros superiores, tronco e dorso, poupando as palmas das mãos, os membros inferiores e as plantas dos pés (Figura 2). Na região perioral apresentava lesões crostosas amareladas (Figura 3). À palpação evidenciava fígado palpável, cerca de 4-5 cm abaixo do rebordo costal, e adenopatias axilares e inguinais bilaterais, indolores, pericentimétricas e não supurativas. Não apresentava adenopatias nas cadeias cervicais e claviculares.

Figura 2 Rash maculopapular e lesão crostosa na região do dorso. 

Figura 3 Lesão crostosa na região frontal semelhante às lesões periorais. 

Analiticamente, em 11/janeiro/2022, apresentava elevação dos parâmetros inflamatórios (VS 49 mm/h e PCR 14,8 mg/L), colestase e citólise hepáticas (TGP 256 U/L, TGO 95 U/L, FA 485 U/L e GGT 239 U/L), VIH I-II negativo, ac. HBs e ac. anti-HCV não-reativos e VDRL não reativo (qualitativo por método de aglutinação).

Perante a elevada suspeita clínica, a inconsistência das alterações e a morosidade atual da realização de exames ecográficos em ambulatório, o utente foi enviado ao serviço de urgência do hospital de referência em 13/janeiro/2022, onde repetiu o estudo analítico e realizou estudo imagiológico. A ecografia abdominal confirmou a hepatomegalia (“fígado globoso, com contornos regulares e dimensões ligeiramente aumentadas, apresentando o lobo direito um diâmetro longitudinal próximo dos 16-16,5 cm”) e, analiticamente, verificou-se VDRL reativo 256 diluições (quantitativo por método de aglutinação), TPHA reativo com 5120 diluições e ac. anti-Treponema pallidum reativo (índice 13,02), confirmando o diagnóstico de sífilis em fase secundária. Adicionalmente realizou pesquisa urinária de DST (Chlamydia trachomatis, Neisseria gonorrhoeae, Mycoplasma genitalium e Trichomonas vaginalis) e estudo analítico serológico (citomegalovírus, vírus Epstein-Barr, VIH, hepatite B e hepatite C) sem alterações de relevo.

Realizou uma toma de penicilina benzatínica 2,4 milhões UI, via intramuscular, por semana, durante três semanas (13, 20 e 27/janeiro/2022). Foi elucidado sobre a forma de prevenção de DST e aconselhado o tratamento dos contactos sexuais.

Por ser tratar de uma doença de declaração obrigatória foi realizado registo SINAVE. O utente manteve seguimento na consulta hospitalar de infeciologia.

Compareceu a consulta hospitalar em 24/janeiro/2022 com melhoria franca da sintomatologia e ligeira melhoria da citocolestase.

Em consulta a 25/julho/2022 apresentava-se completamente assintomático, com resolução analítica completa da citocolestase. O VDRL reativo com 4 diluições (por método de aglutinação) e o ac. anti-Treponema pallidum apresentava-se reativo com um índice superior ao detetado em 13/janeiro/2022 (índice >45).

Comentário

Este caso clínico revela particular interesse pela incongruência entre a clínica e os exames complementares de diagnóstico, nomeadamente no que se refere à reatividade do VDRL. Constitui um caso representativo de um fenómeno prozona, decorrente da presença de um resultado falso-negativo do VDRL, explicado pelo excesso de anticorpos na sífilis secundária, sendo muito baixa (0-0,4%) a incidência em indivíduos sem VIH. 9

O episódio de urgência, em agosto/2021, pode ser interpretado de duas formas. Por um lado, pelo corrimento uretral, sinais inflamatórios penianos, disúria e, dado o tratamento instituído, foi considerado o diagnóstico de uma DST, eventualmente gonorreia ou clamídia. Por outro lado, o utente referia a presença de uma lesão peniana indolor, que resolveu após duas semanas, podendo tratar-se do quadro inicial de sífilis primária, dada a proximidade temporal com a relação sexual desprotegida, tendo em conta que o período de incubação é, em média, de três semanas (podendo variar entre nove ou dez dias até três meses). 3 Após a ida ao serviço de urgência, o utente realizou o teste rápido serológico da sífilis, por sua iniciativa, cujo resultado terá sido negativo. Esta situação pode ser explicada pelo facto de nesse momento ainda não existirem anticorpos suficientes para serem detetados analiticamente, referente ao período de duas a três semanas após a lesão primária, podendo apresentar-se o VDRL negativo na sífilis primária. 4,6

Em janeiro/2022, cerca de cinco meses após o episódio descrito, o utente apresentou uma clínica exuberante compatível com sífilis secundária. Nesta altura obteve-se um VDRL com um resultado qualitativo “não reativo” em estudo analítico solicitado pelo médico assistente, apesar da forte suspeita clínica, e realizado em laboratório convencionado. Nesta fase da doença, o VDRL apresenta elevada sensibilidade, pelo que a sua paradoxal não-reatividade suscitou dúvidas e aguçou a curiosidade científica. 3,6

Pela clínica e pelas alterações presentes nos resultados analíticos, com aumento dos parâmetros inflamatórios, citólise, colestase e VDRL não reativo, a hipótese de sífilis seria à partida subestimada. Não obstante, o senso clínico prevaleceu, uma vez que existiam sinais, para além dos sintomas causadores de grande dolência no utente, que evidenciavam patologia que merecia atenção a curto/médio prazo. Surpreendentemente, o estudo analítico realizado em 13/janeiro/2022 no serviço de urgência demonstrou não apenas um resultado qualitativo reativo do VDRL, como também um resultado quantitativo - titulação de 256 diluições, para além da reatividade confirmatória do teste treponémico TPHA e no ac. anti-Treponema pallidum.

Racionalmente, o laboratório convencionado não realizou a análise quantitativa do VDRL, uma vez que esta só é realizada quando existe reatividade numa análise qualitativa.

Adicionalmente afigura-se impreterível a necessidade de exclusão de VIH, devido à relação que existe entre esta patologia e o fenómeno descrito. 9 A pesquisa desta infeção foi realizada através de testes serológicos rápidos, em agosto/2021, assim como na fase de sífilis secundária, em janeiro/2022, o que permitiu cobrir o período de janela e eventual seroconversão (três a seis meses).

O tratamento preconizado para a sífilis em fase secundária é a penicilina benzatínica 2,4 milhões UI, via intramuscular, em duas doses semanais, 6 o que não coincide com o tratamento preconizado para o utente em causa - penicilina benzatínica 2,4 milhões UI, via intramuscular, em três doses semanais. Este é o tratamento estipulado para casos de sífilis tardia, terciária, latente tardia (com mais de um ano) e sífilis latente de tempo desconhecido, 6 que não são compatíveis com a clínica demonstrada neste caso clínico. Apesar disso, o esquema terapêutico ficou completo.

Seis meses após o diagnóstico de sífilis, o utente demonstrou uma resolução clínica completa e apresentou uma resposta serológica expectável após o tratamento, nomeadamente a queda do VDRL pelo menos quatro vezes, equivalente à descida de duas titulações (neste caso de 256 para quatro diluições em seis meses) e permanência da reatividade do teste treponémico - em 85% dos casos estes últimos permanecem reativos durante toda a vida. 3,8

Perante a elevada suspeita clínica inicial poder-se-ia ter adotado o algoritmo híbrido (hybrid algorithm for syphilis diagnosis), em que o teste treponémico (TPHA) e o teste não-treponémico (VDRL) são solicitados simultaneamente. Na possibilidade de discrepância entre os dois é solicitado um segundo teste treponémico. 7-8

Assim, ressalva-se a importância da priorização do senso clínico em detrimento dos exames complementares de diagnóstico que, apesar de extremamente úteis na sua orientação, nem sempre vão ao encontro da hipótese ponderada. Neste caso, a presença de um VDRL falso-negativo protelou o diagnóstico e a abordagem terapêutica.

Por fim, destaca-se a posição vantajosa do médico de família na deteção precoce de patologias deste foro, apoiado pelo conhecimento do contexto biopsicossocial inerente a cada utente.

Além disso, o médico assistente também adquire um papel fulcral não só no seu seguimento a médio prazo, em colaboração com a especialidade médica hospitalar de infeciologia, como também a longo prazo na continuidade da prestação de cuidados.

Contributo dos autores

Conceptualização, RR; redação do draft original, RR, IR e EM; revisão, validação e edição do texto final, RR, IR e EM.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Referências bibliográficas

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Recebido: 07 de Julho de 2022; Aceito: 28 de Agosto de 2023

Endereço para correspondência Rita Ribau E-mail: anaritaribau@hotmail.com

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