José Alberto Frey Ramos, médico de família, doutorado em medicina e Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), figura notável da medicina geral e familiar, nasceu em Vila Nova de Gaia, em 1950, e teve ao longo da sua vida sete filhos e vinte netos. Para além do percurso curricular assinalável, da sua dedicação ao ensino médico pré e pós-graduado, a família que constituiu é talvez a sua obra mais relevante e o que o vai fazer perdurar de forma mais duradoura e profícua na memória coletiva. A sua família é um reflexo de si mesmo, espelhando de forma viva e fecunda o Homem generoso, o trabalhador incansável, o médico bem formado, discreto e abnegado que sempre foi.
Licenciou-se em Medicina na FMUP em 1976, onde também concluiu o curso de Climatologia e Hidrologia Médica em 1980 e de Medicina do Trabalho em 1995.
Especializou-se em Medicina Geral e Familiar (MGF) em 1992 e, posteriormente, em Medicina do Trabalho em 2000.
Concluiu o Doutoramento em Medicina em 2008, com a defesa da tese intitulada Abordagem da Angina de Peito em Medicina Geral e Familiar, altura em que ascendeu às funções de Professor Auxiliar Convidado na mesma instituição onde se formou. Tratou-se de um trajeto académico conduzido a par de intensa atividade clínica, com dedicação ao Serviço Nacional de Saúde a tempo inteiro, refletindo a sua maturidade técnico-científica e que foi fruto de grande persistência e coragem.
É notável assinalar que conciliava estas funções académicas e no Serviço Nacional de Saúde com as de médico do trabalho e ainda reservava tempo para acompanhar do ponto de vista clínico e em continuidade, durante décadas, os padres idosos da Casa Sacerdotal, em regime de voluntariado. Oferecia ainda o seu tempo, de forma generosa e tranquila, a outras causas, nomeadamente a visitar idosos.
Esteve sempre ao lado de Alexandre Sousa Pinto1 e de Pinto Hespanhol2 nas demandas e inovações em prol do ensino médico na FMUP e em Portugal, e foi também membro da equipa que fundou o Centro de Saúde São João, conhecido também como Projeto Tubo de Ensaio. Este projeto permitiu, para além de desenvolver um modelo organizativo de cuidados de saúde primários, possibilitar o ensino médico na prática clínica neste mesmo contexto. 3-5 Em 1999 transitou do Centro de Saúde Aníbal Cunha, no Porto, onde seguiu a mesma lista durante cerca de vinte anos, para o Centro de Saúde São João, levando consigo os seus doentes e a sua interna complementar de MGF, à altura, a quem possibilitou a honra e a sorte de ser a primeira interna a integrar esse novo e enriquecedor projeto.
Foi nesse ano que obteve a sua graduação como Chefe de Serviço da carreira médica de Clínica Geral/Medicina Geral e Familiar.
Ao longo deste percurso orientou estudantes de Medicina da FMUP e Internos do Internato Complementar de MGF, constituindo para estes uma escolha preferencial enquanto orientador ou tutor pelo exemplo de profissionalismo e dedicação que representava. Para além de possibilitar o acesso a um bom curriculum formal, por se encontrar dedicado a tempo inteiro à clínica, tendo uma lista de utentes numerosa, com muitos anos de seguimento, muito bem trabalhada e estudada, garantia o acesso a uma prática muito atualizada e baseada na melhor evidência científica. Paralelamente estimulava a produção científica, a intervenção no ensino médico e em projetos de educação para a saúde, já que se encontrava muito ligado à academia, facultando o acesso a boas escolhas formativas.
Como professor ou orientador não me lembro de o ter visto dar nenhuma lição. O seu exemplo de prática e de vida era a “Lição”. E assim desencadeou um círculo virtuoso ao nível do ensino médico. Formou uma série de discípulos, que inspirava com os seus valores humanistas, rigor e correção científica e que, por sua vez, se contagiavam na mesma escola de profissionalismo, competência e dedicação, atraindo novos colegas também seduzidos pelos mesmos valores e interesses. Potenciou, assim, a formação de várias gerações de jovens médicos que, alimentados por este bom ambiente formativo, inspiraram também com ele numerosos estudantes de medicina na escolha da especialidade de MGF.
Poderíamos tomar o exemplo de Frey Ramos para um estudo de caso acerca do modelo de ensino médico ombro a ombro. O respeito, paciência e consideração com que tratava todos, colegas, estudantes, internos e doentes, sempre foi a sua imagem de marca e tal facto é indissociável dos dotes científicos e de comunicação pelos quais regia a sua prática, sempre humanista e centrada no doente. É certo que ambientes de trabalho onde valores éticos e de boa conduta são desenvolvidos favorecem a aquisição dessas mesmas competências nos elementos que os integram. 6 Potenciava a autonomia, sem desamparar, mas nunca “levando ao colo”. Dava liberdade e responsabilidade na mesma medida e era sempre elegante e contido no momento de dar feedback.
Uma vez que seguiu a mesma lista de utentes durante décadas, a continuidade, a proximidade e a acessibilidade eram logo apreendidas e sentidas pelos seus estudantes, internos, mas sobretudo pelos seus doentes. Julgo que todos experienciavam e reconheciam o seu espírito de missão e elevados valores morais. De uma forma geral, tinha com os seus doentes relações próximas e empáticas. Oferecia cuidados médicos de qualidade, resolvendo os problemas das pessoas e nunca descurando as atitudes preventivas. Não receava atrasar-se na consulta quando alguém precisava de tempo para desabafar, para chorar ou para poder explorar um caso clínico complicado. Apesar de tantos afazeres profissionais diários que sempre tinha, encadeados uns nos outros de forma quase cronometrada, nunca mostrava impaciência ou pressa. Observando retrospetivamente, era como se disciplinasse continuamente o seu ego para não precisar de mostrar que estava no comando da situação, sacrificando sempre o seu tempo em prol do que era necessário a cada momento. Era como se acreditasse firmemente na boa vontade dos doentes, que ainda estavam por atender, para entenderem a necessidade dos atrasos devidos aos doentes anteriores. Como se tivesse fé no equilíbrio no Universo para contrabalançar a quantidade de tempo e atenção que tem de se distribuir e que nunca deve ser igual, mas deve ser equitativa, e que nunca parece caber rigorosamente nos espartilhados agendamentos de consulta do dia.
Para além desta vertente prática de ensino médico no terreno, onde tanto se destacou, colaborou também com a Associação dos Docentes e Orientadores de Medicina Geral e Familiar no debate acerca do rumo do ensino médico em Portugal, tendo presença ativa em alguns encontros promovidos por esta Associação.
Estabeleceu também diversos elos de ligação com a especialidade de Cardiologia, uma vez que esteve sempre presente nas Jornadas de Cardiologia do Norte, promovidas por Carlos Ramalhão e seu grupo que, ao longo de mais de três décadas, estiveram na vanguarda da formação e atualização contínua da MGF na área de Cardiologia, fomentando a participação dos seus internos através da apresentação de casos clínicos relevantes e estimulando o apreço pela formação médica, pelo rigor e pelas boas práticas clínicas.
Aproximou também a MGF à Urologia através da sua presença nas Jornadas de Urologia do Norte, promovidas por Mário Reis, outro motor de formação e atualização contínua nessa área. Em 2014 foi, inclusive, o médico homenageado nessas Jornadas.
Ao longo da sua carreira clínica, académica e científica foi membro de diversas sociedades científicas, revisor da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, vice-presidente da Comissão de Ética do Centro de Saúde São João (2003-2011) e membro da Comissão de Ética da ARS-Norte (2009-2014).
O seu humanismo, a postura ética, o compromisso deontológico, o espírito de missão e de dádiva são um legado que o imortaliza na nossa história coletiva, como descrito em nota de pesar publicada pela FMUP no momento do seu falecimento, em maio de 2024.
Mesmo durante parte do caminho em que se debateu com a sua doença prolongada manteve-se a trabalhar “porque não sabia fazer outra coisa”, como me confidenciou a dada altura, quando carinhosamente o admoestei para o necessário e merecido descanso. Mostrou mais uma vez, e como sempre, a paciência, a coragem, a dignidade e abnegação que os seus colegas, os seus internos e estudantes nunca esquecerão.
Frey Ramos é uma pessoa rara e preciosa, cujo legado e exemplo como médico e como pessoa não podem ser esquecidos, devendo continuar a inspirar as novas gerações de médicos de família.