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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.40 no.5 Lisboa out. 2024  Epub 31-Out-2024

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v40i5.13943 

Estudos originais

Perceção dos médicos de família acerca da abordagem da saúde mental em consulta

Perception of family doctors on the approach to mental health in appointments

Ana Rita Pereira1 
http://orcid.org/0000-0003-4792-1627

Anabela Carvalho2 

Márcia Azevedo3 

José Brás4 

1. Médica Especialista em Medicina Geral e Familiar. UCSP Sátão, ULS Viseu Dão-Lafões. Sátão, Portugal.

2. Docente no Instituto Politécnico de Viseu. Viseu, Portugal.

3. Médica Interna em Medicina Geral e Familiar. USF Cândido Figueiredo, ULS Viseu Dão-Lafões. Canas de Santa Maria, Portugal.

4. Médico Especialista em Medicina Geral e Familiar. USF Cândido Figueiredo, ULS Viseu Dão-Lafões. Canas de Santa Maria, Portugal.


Resumo

Introdução:

As perturbações mentais são uma das principais causas de incapacidade para a atividade laboral em Portugal e de procura de consulta nos cuidados de saúde primários (CSP), encontrando-se muitos destes doentes acompanhados exclusivamente pelo seu médico de família (MF).

Objetivos:

Avaliar a formação em saúde mental nos CSP, o grau de importância dada à saúde mental pelos MF e a sua capacidade em abordar a mesma em consulta.

Método:

Estudo observacional, transversal e descritivo. Questionário original online dirigido aos MF, explorando dados socioprofissionais, formação dos MF em saúde mental e abordagem da saúde mental em consulta. O presente estudo teve parecer favorável da Comissão de Ética da ARS Centro. A análise estatística foi realizada com IBM-SPSS®, v. 28.

Resultados:

Participaram 449 médicos de família a exercer em distintas regiões do país, sendo 75,3% do sexo feminino e 76% especialistas. Apenas 45% do MF têm formação em saúde mental e a generalidade da amostra considera que há formações com qualidade, mas são escassas. Os inquiridos dão importância à abordagem da saúde mental. Porém, apenas os clínicos com mais experiência e mais formação apresentam maior confiança na sua abordagem.

Conclusão:

No presente estudo verifica-se uma taxa reduzida de MF com formação específica em saúde mental, sendo que, os que a têm, referem maior confiança e apresentam mais conhecimentos na patologia psiquiátrica. Assim, torna-se evidente a necessidade de aumentar a disponibilidade de formações para os MF tendo como meta melhorar a abordagem da saúde mental nos CSP.

Palavras-chave: Saúde mental; Médico de família; Cuidados de saúde primários

Abstract

Introduction:

Mental disorders are one of the main causes of inability to work in Portugal and of seeking appointments in primary health care, with a great majority of these patients being monitored exclusively by their family doctor.

Objectives:

Evaluate training in mental health, the degree of importance given to mental health, and family doctors’ ability to address it in appointment.

Method:

Observational, cross-sectional, and descriptive study. An original questionnaire, exploring socio-professional data, training in mental health, and approach to mental health in appointment. The present study had a favorable opinion from the ARS Centro Ethics Committee. The statistical analysis was performed with SPSS®.

Results:

Four hundred and forty-nine family physicians from different regions of the country, 75.3% female and 76% specialists. There was a reduced training rate (45%). Most of the sample considers that quality training exists but is scarce. Generally, physicians give importance to the mental health approach. However, those with more experience and training in mental health are more confident in their approach.

Conclusion:

In the present study, there is a reduced rate of family doctors with specific training in mental health, with those who do, reporting greater confidence and having more knowledge in psychiatric pathology. Therefore, the need to increase the availability of training for family doctors becomes evident to improve the approach to mental health in primary care.

Keywords: Mental health; Family physician; Primary health care

Introdução

Com a integração da saúde mental no conceito de saúde, em 1946, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) deu-se um passo muito importante na valorização da saúde mental. Assim, a saúde passa a ser “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não consistindo apenas na ausência de doença” e a saúde mental como “um estado de bem-estar mental que permite às pessoas lidar com os momentos stressantes da vida, desenvolver todas as suas habilidades, aprender e trabalhar bem e contribuir para a melhoria de sua comunidade”.1-2

Durante várias décadas do século passado as pessoas com perturbações mentais eram vítimas de estigmatização, segregadas em manicómios, muitas vezes excluídas da sociedade e vivendo em asilos toda a sua vida. No entanto, foi também no século passado que se assistiu a um maior interesse pelas questões relacionadas com a saúde mental, tornando-se gradualmente evidente a sua importância para o bem-estar do indivíduo e para a sua saudável integração na sociedade. Porém, atualmente ainda há mitos e tabus sobre a patologia psiquiátrica, os seus tratamentos e a possibilidade de retoma a uma vida “normal”, tanto por parte da sociedade em geral como dos profissionais de saúde. De salientar ainda o insuficiente investimento público nos cuidados de saúde mental, resultando na incapacidade de implementar as reformas da lei de saúde mental necessárias para desmistificar a patologia psiquiátrica e intervir de forma atempada e adequada na população. 3-4

As perturbações mentais são transversais, pois não escolhem género, classe social ou grupo etário. Além disso, têm uma prevalência elevada, já que uma em cada quatro pessoas terá uma perturbação da saúde mental ao longo da sua vida. 3-4 A depressão é considerada a patologia mais frequente e uma das principais causas de incapacidade. O suicídio surge como a quarta causa mais comum de morte nos jovens adultos e os doentes com perturbação mental grave apresentam maior risco de morte prematura. 2 Em Portugal, as perturbações mentais são uma das principais causas de incapacidade temporária e permanente para a atividade laboral. 4-8

Na abordagem da saúde mental o diagnóstico apoia-se nos dados retirados na entrevista clínica e na observação do comportamento do doente. Ou seja, o diagnóstico correto depende das competências específicas do médico para conseguir criar uma relação médico-doente favorável à recolha dos dados. Aliás, uma boa relação médico-doente, baseada na capacidade de escuta do médico e no diálogo com o doente, pode ser um elemento terapêutico e incrementar a probabilidade de adesão à terapêutica farmacológica. 3,5-6

Tendo em conta o elevado impacto social das perturbações mentais e a diversidade das mesmas, é fundamental que o médico nos cuidados de saúde primários (CSP) esteja atento às questões da saúde mental e tenha a capacidade para prestar os melhores cuidados nesta área, atuando de forma atempada e assertiva. De facto, os problemas do foro mental e psicológico são um dos principais motivos de consulta nos CSP, embora possam não ser facilmente verbalizados pelo doente. Se se considerar que muitos destes doentes são acompanhados exclusivamente pelo seu médico de família (MF), sendo ainda este o responsável pela articulação com as especialidades hospitalares, é percetível a importância de sensibilizar os profissionais para a saúde mental e de a abordar corretamente. 3,6-7 Apesar da formação em saúde mental estar contemplada no Programa Curricular do Internato em Medicina Geral e Familiar, incluindo formação de dois meses num serviço de saúde mental e oito turnos de urgência nesta área, pode-se considerar insuficiente ou pouco adequada para uma abordagem em contexto de CSP, onde muitas vezes ainda não há um diagnóstico clínico e os sintomas surgem de forma difusa ou menos evidente.

A preocupação da comunidade científica com a saúde mental nos CSP é evidente no contexto internacional, mas também no nosso país, onde já há alguma investigação sobre o tema. Na preparação da presente investigação foram encontrados dois estudos originais relativos à realidade portuguesa, onde abordaram a avaliação dos obstáculos e das expectativas sentidas pelo MF. Não obstante, ficam muitas questões por analisar, sendo clara a pertinência de mais estudos que possam dar a conhecer a abordagem da saúde mental e contribuir para a sua melhoria nos profissionais dos CSP. 3-4

Com esta investigação pretende-se conhecer como a abordagem da saúde mental é percecionada e concretizada em consulta nos CSP e, de forma mais específica, averiguar a existência de formação em saúde mental nos MF, a importância dada à saúde mental pelos clínicos e ainda avaliar a capacidade e/ou constrangimentos à abordagem da saúde mental em consulta.

Método

Desencadeou-se o presente estudo com o pedido de parecer à Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Centro, tendo-se obtido parecer favorável em 30 de junho de 2022 (Anexo 1). Recorrendo a um questionário digital, alojado na plataforma Google Forms, realizou-se um estudo observacional, transversal e descritivo, numa amostragem não probabilística, constituída exclusivamente por médicos internos e especialistas em medicina de família que exercem atividade em Portugal. O questionário foi divulgado por email e no espaço de três meses obtiveram-se 449 respostas. Na Tabela 1 encontra-se a caracterização sociodemográfica dos participantes.

Tabela 1 Caracterização dos participantes 

Questionário

O questionário foi construído para o efeito, com base na revisão da literatura. Foi solicitada a revisão técnica e científica a um especialista da área da saúde mental (psicólogo) e a um médico de medicina geral e familiar. A versão final era constituída por dez questões de resposta fechada, divididas em quatro secções (Anexo 2). Apenas numa questão a resposta era dicotómica (Sim/Não), sendo as restantes em escala tipo Likert de 5 pontos.

Procedeu-se a uma análise de consistência interna dos itens das três secções relativas aos dados sobre saúde mental, nomeadamente as características da formação, a valorização da abordagem do tema em consulta e a frequência do questionamento, tendo-se obtido valores acima de 0,8 em duas das três dimensões e muito perto desse valor na terceira (Tabela 2).

Tabela 2 Consistência interna dos dados 

Procedeu-se ainda à análise da correlação de cada item com o valor total da dimensão, tendo-se obtido valores que vão desde 0,317 no item «A avaliação da SM é muito importante na minha prática clínica» a um máximo de 0,704 no item «Os meus conhecimentos… são suficientes». Registam-se, assim, dois indicadores favoráveis acerca da consistência interna do instrumento, concluindo-se que o questionário é um instrumento fidedigno, sendo possível confiar nos dados obtidos.

Recolha de dados

A recolha de dados decorreu após o parecer favorável da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Centro nos meses de junho, julho e agosto de 2022 em plataforma digital.

Análise de dados

Os dados foram inicialmente inseridos no software Microsoft Office Excel® e posteriormente analisados no programa IBM Statistical Package for the Social Sciences (SPSS)®, v. 28. Realizaram-se análises de estatística descritiva das várias questões e análises de estatística inferencial para a avaliação de associações entre variáveis e comparação entre grupos independentes. Para todas as análises inferenciais (teste de qui quadrado para variáveis categoriais, t-teste e ANOVA para variáveis contínuas) considerou-se um nível de significância de p<0,05.

Resultados

Formação em saúde mental nos cuidados de saúde primários

Começando pela formação em saúde mental, excluindo congressos, 45% dos participantes referem ter formação nessa área e 55% não ter. Não há variações relacionadas com o género nem com a ARS onde trabalham, mas na categoria profissional há diferenças significativas, sendo os recém-especialistas quem apresenta a taxa mais elevada de formação nesta área (56%) e os internos a taxa mais baixa (26%) (Tabela 3).

Tabela 3 Distribuição da taxa de formação em saúde mental 

No conjunto de questões acerca da formação em saúde mental (diversidade, qualidade e adequabilidade da oferta formativa, facilidade em fazer formação e avaliação de mais necessidade de formação), as respostas são mais favoráveis relativamente à qualidade da oferta formativa (média de 3,44 numa escala de 1 a 5) e mais desfavoráveis no que se refere à facilidade com que os inquiridos conseguem fazer formação na área (média de 2,75) (Tabela 4).

Tabela 4 Respostas nas questões relativas à formação na área da saúde mental e comparações entre grupos com médias e níveis de significância 

Em todas as questões os participantes do sexo masculino têm opinião mais favorável, assumindo diferenças com significado estatístico em três das cinco questões: «Há bastante oferta formativa nesta área»; «A oferta formativa é de qualidade» e «Tenho a formação necessária nesta área». Na questão «Consigo facilmente fazer formação nesta área» obtiveram-se valores de significância marginais (0,05) no t-teste, podendo também considerar-se a existência de diferenças associadas ao sexo nesta questão.

Ao considerar a ARS onde trabalham verifica-se que as respostas assumem variações com significado estatístico apenas nas questões «Há bastante oferta formativa na área» e «A oferta formativa é adequada ao trabalho em cuidados de saúde primários», sendo os profissionais das ARS do Alentejo, Algarve e Açores a destacarem-se pela menor concordância com estas afirmações, sobretudo quando comparados com os participantes das ARS Norte e Centro.

Relativamente à categoria profissional, os resultados da ANOVA indicam que há diferenças na facilidade com que os participantes referem fazer formação na área, sendo os internos quem concorda mais com a afirmação. Há também diferenças na necessidade de mais formação, sendo, mais uma vez, o grupo de internos que se destaca por concordar menos com a frase, comparativamente com os restantes grupos de profissionais.

Em suma, no que se refere à diversidade e qualidade da oferta formativa, a opinião dos participantes do sexo masculino destaca-se por ser mais favorável, sendo também estes que mais referem ter a formação necessária. No entanto, surgem outras assimetrias de opinião que podemos considerar relevantes, pois indicam variações regionais e associadas à categoria profissional. De facto, os inquiridos das ARS do Sul do país indicam uma menor disponibilização de ofertas formativas nesta área e a que existe parece não estar tão ajustada ao trabalho nos CSP. No que se refere à categoria profissional são os médicos internos que referem conseguir mais facilmente fazer formação na área, sendo também o grupo que mais sente necessidade de formação.

Importância dada ao tema da saúde mental na prática clínica

Em geral os inquiridos mostram dar importância à abordagem do tema da saúde mental, como o comprovam as médias de resposta (todas acima de 3,49), destacando-se as respostas dadas à questão «A avaliação da saúde mental é muito importante na minha prática clínica» com valor médio de 4,74 (Tabela 5).

Tabela 5 Respostas nas questões relativas à importância do tema da saúde mental na prática clínica e comparações entre grupos com médias e níveis de significância 

As variações estatisticamente significativas são evidentes em várias dimensões, exceto na ARS onde trabalham, mostrando a centralidade do tema em todas as regiões do nosso país. No que se refere ao sexo há diferenças na avaliação das suas técnicas de comunicação para abordagem do tema, onde os participantes do sexo masculino se sentem mais confiantes. A categoria profissional influencia a facilidade de abordagem do tema, mas não a perceção da sua importância, ou seja, todos os médicos inquiridos atribuem importância ao tema da saúde mental, embora os internos se sintam menos à vontade em abordar o tema junto dos seus pacientes. Estes médicos referem ainda menos confiança nas suas técnicas de comunicação e menos conhecimentos na área.

Ao analisar as respostas a estas questões, considerando a formação específica na área, obtêm-se diferenças significativas em três das quatro questões (exceção na que se refere à importância dada à avaliação da saúde mental), mostrando mais facilidade e melhores competências na abordagem do tema por parte dos inquiridos que têm formação específica (Figura 1).

Figura 1 Grau de importância dada ao tema da saúde mental na prática clínica de acordo com a detenção de formação em saúde mental. 

Frequência de questionamento acerca de saúde mental na prática clínica

De acordo com os resultados expostos na Tabela 6, a utilização de algumas questões específicas da saúde mental é uma prática relativamente frequente dos inquiridos, sobretudo no que se refere à atribuição que o utente faz das causas do seu problema (M=3,87), bem como às estratégias adotadas até ao momento da consulta (M=3,71). Também questionam sobre as consequências do problema na vida do utente (M=3,66) e qual o tratamento que o mesmo pensa necessitar (M=3,65). Com menor frequência são colocadas questões relativas aos resultados esperados com o tratamento (M=3,34), ao apoio e compreensão que recebe das pessoas que o rodeiam (M=3,38) e ao que mais o/a assusta no problema que evidencia (M=3,48).

Tabela 6 Respostas nas questões relativas à importância do tema da saúde mental na prática clínica e comparações entre grupos com médias e níveis de significância 

A frequência de utilização destas questões não varia com o sexo nem com a ARS onde exercem funções. O mesmo não acontece no que se refere à categoria profissional, havendo pontuações menores em todas as questões por parte dos internos, com diferenças estatisticamente significativas em quatro das sete questões. Ou seja, os médicos recém-especialistas e especialistas mostram uma maior frequência de questionamento do utente relativamente à saúde mental em todas as dimensões inquiridas, com maior destaque para a génese do problema, o que mais o assusta, a perceção das pessoas que o rodeiam e os resultados esperados com o tratamento.

A análise de frequência de utilização destas questões nos inquiridos detentores de formação em saúde mental, em comparação com os que não têm esta formação, mostra que em geral quem tem formação indica uma maior frequência das mesmas, com especial incidência para a questão relativa ao que mais assusta o utente acerca do seu problema, onde há uma diferença com significado estatístico (Figura 2). Mais uma vez se nota a importância da formação específica em saúde mental na frequência de questionamento em contexto de consulta.

Figura 2 Frequência média de questionamento de acordo com a formação em saúde mental. 

Discussão

Com o objetivo principal de contribuir para o conhecimento de como é percecionada a abordagem da saúde mental nos CSP em Portugal, nomeadamente na consulta realizada pelo MF, desenvolveu-se uma investigação com recurso a um questionário dirigido aos mesmos. Dos 449 participantes, de Norte a Sul do país, apenas 45% referem ter formação em saúde mental, valor que atinge os 26% nos internos de especialidade. Apenas no grupo de médicos recém-especialistas a taxa sobe para 56%. No que se refere à formação em saúde mental, em geral, os inquiridos do sexo masculino têm uma atitude mais favorável, considerando estes que há bastante formação disponível, que é de qualidade e que sentem ter a formação necessária. Ainda assim há outras variações que podem ser consideradas mais relevantes, sobretudo as relativas às assimetrias geográficas. De facto, as respostas dos MF do Alentejo, Algarve e Açores mostram que têm menos oferta formativa e que a existente não é adequada ao trabalho em CSP. Registam-se ainda discrepâncias de opinião associadas à categoria profissional, nomeadamente no que se refere à facilidade em fazer formação em saúde mental (com os internos a terem opinião mais favorável) e à perceção de adequação da formação que têm (onde mais uma vez se destacam os internos, mas por terem uma perceção menos favorável).

No que se refere à importância do tema da saúde mental em consulta nos CSP, as respostas mostram um grau de concordância moderado e generalizado. As variações mais acentuadas registam-se na avaliação que os inquiridos fazem das suas técnicas de comunicação (com os participantes do sexo masculino a avaliarem-se mais positivamente) e na facilidade de abordagem do tema, onde os médicos internos se sentem menos confiantes e com menos conhecimentos. Verificou-se ainda uma diferença no grau de concordância nas questões acerca da facilidade na abordagem do tema, na melhoria de conhecimentos e das técnicas de comunicação associadas à formação em saúde mental, reforçando o impacto positivo que a formação em saúde mental pode ter na prática clínica dos MF.

No que se refere à frequência de questionamento acerca da saúde mental, os dados mostram que nos internos o uso destas questões é menos frequente e que quem tem formação em saúde mental recorre mais vezes a questões sobre saúde mental. O presente estudo corrobora as conclusões de estudos internacionais, confirmando que a formação na área de saúde mental pelos MF permite aumentar a sua confiança e competência na gestão e tratamento da patologia psiquiátrica. 11-12 De salientar que os MF com formação recorrem mais frequentemente a perguntas específicas na abordagem da saúde mental quando comparados com os que não têm formação.

Assim, depreende-se que a formação é fundamental para promover a abordagem de saúde mental nos CSP, permitindo desenvolver competências de comunicação, melhorar os conhecimentos e facilitar o questionamento clínico sobre o tema. A existência de mais formação específica na área, sobretudo direcionada para os internos, poderá incrementar, junto dos MF mais novos, a preocupação com o tema, melhorando a sensibilidade para sinais e sintomas que possam ser menos evidentes, bem como as técnicas essenciais para facilitar a sua abordagem junto do utente. De referir que um treino adequado dos MF permite melhorar a abordagem em quatro áreas da saúde mental (depressão, psicose, epilepsia e perturbação e abuso de álcool). 13

Conclusão

O presente estudo permite confirmar que profissionais com formação em saúde mental apresentam melhor abordagem da mesma. Considerando a reduzida taxa de formação dos médicos de família em saúde mental, juntamente com a baixa oferta formativa, é evidente a necessidade de aumentar a quantidade da formação específica em saúde mental nas mais variadas regiões. Além disso, esta investigação permitiu confirmar a importância da experiência profissional para a maior confiança na abordagem e nos conhecimentos da patologia psiquiátrica.

Os autores acreditam que o presente artigo permite aumentar o conhecimento sobre a perceção dos médicos de família portugueses acerca da formação e da sua capacidade de abordagem da saúde mental nos CSP, evidenciando alguns pontos positivos e aspetos a melhorar. Analisando os resultados do presente estudo, os autores consideram haver um caminho a percorrer no aumento do número de MF que têm formação em saúde mental ajustada para os CSP, na acessibilidade às formações em regiões mais distantes das grandes cidades e na formação pré-graduada, permitindo capacitar os recém-formados para abordar mais confortavelmente a saúde mental. Por outro lado, verificam-se pontos positivos e promissores nos profissionais que participaram no estudo, como uma elevada preocupação dos mesmos em avaliar a saúde mental em consulta e o facto de considerarem que a oferta formativa existente em Portugal é de qualidade. Em suma, este estudo permite uma reflexão sobre a perceção que os MF têm acerca de algumas dimensões associadas à abordagem da saúde mental nos CSP. Além disso, permite levantar questões sobre a adequabilidade da formação de saúde mental no Internato Médico, visando uma prática clínica que se quer cada vez mais preventiva e proativa, bem como sobre as opções de formação disponíveis para os profissionais dos CSP.

Apesar do presente estudo ter uma amostra de conveniência e de ter sido usado um questionário não validado (risco de viés de medição), constituído por perguntas fechadas (risco de viés de informação), tem a mais-valia da dimensão da amostra, que pode ser considerada suficiente para ser representativa da população em estudo, sobretudo por se tratar do primeiro estudo realizado a nível nacional sobre a abordagem da saúde mental nos CSP. No entanto, em futuras investigações sugere-se a inclusão de questões que avaliem a opinião dos internos e recém-especialistas acerca da formação incluída no internato e possíveis variações associadas ao local de formação. Seria também importante incluir questões que permitam conhecer o impacto da abordagem em saúde mental nos utentes e a articulação que é feita com outros serviços, nomeadamente com a consulta de psicologia e de psiquiatria.

Em conclusão, refira-se um artigo da Ordem dos Psicólogos Portugueses, que aponta para um aumento do risco em 30% de doença física com a presença de doença do foro mental, indicando que para o desenvolvimento sustentável de um país é fundamental o acesso à saúde de qualidade. 14 Além disso, são apresentados dados da World Mental Health Survey Initiative e da OCDE, que mostram que em Portugal mais de 80% dos utentes recorre ao MF para consultas de saúde mental, reforçando a importância da atuação destes profissionais na identificação de fatores de risco e de sintomas clínicos, levando a uma atuação atempada e preventiva de doença psiquiátrica ou do seu agravamento associado à falta de intervenção. Ou seja, é cada vez mais importante a existência de estudos como este em Portugal, que mostrem a importância da abordagem da saúde mental nos CSP e salientem a necessidade de aumentar a formação especificamente direcionada para a atuação dos médicos de família.

Contributo dos autores

Conceptualização, ARP; metodologia, ARP e AC; validação, AC, MA e JB; análise formal, ARP, AC e MA; investigação, ARP; recursos, ARP, AC, MA e JB; curadoria de dados, ARP e AC; redação do draft original, ARP; revisão, validação e edição do texto final, ARP, AC, MA e JB; supervisão, JB. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

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Recebido: 20 de Dezembro de 2023; Aceito: 01 de Abril de 2024

Endereço para correspondência Ana Rita Pereira E-mail: ardaspereira@gmail.com

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