Introdução
As vasculites são um grupo heterogéneo de doenças imunomediadas raras definidas pela inflamação dos vasos sanguíneos. Consequentemente à sua inflamação pode ocorrer redução ou bloqueio da circulação sanguínea e, assim, surgirem manifestações de isquemia, dilatação aneurismática e/ou rotura com hemorragia, resultando numa ampla variedade de sinais e sintomas, dificultando o seu diagnóstico.
Em relação à etiologia, as vasculites podem ser primárias, se aparecem subitamente numa pessoa previamente saudável, ou secundárias, se surgem numa pessoa com doença já conhecida.1
Dentro das vasculites primárias, a classificação mais utilizada é a de Chapel Hill, do American College of Rheumatology, que as classifica em várias categorias, nomeadamente as vasculites de hipersensibilidade ou induzidas por fármacos. 1
As vasculites de hipersensibilidade ou induzidas por fármacos caracterizam-se por casos de vasculite associados definitivamente à toma de fármacos, após a exclusão de restantes etiologias, cuja apresentação clínica se traduz num quadro sindromático caracterizado pela ocorrência de lesões dermatológicas associadas a manifestações sistémicas em cerca de 50% dos casos, podendo, contudo, surgir também lesões de órgão semelhantes às ocorridas nas vasculites associadas aos anticorpos anticitoplasma de neutrófilos (ANCA), apesar de até 15% destes casos poderem apresentar ANCA negativos. 2
As vasculites, no geral, representam um desafio para o médico, incluindo classificação, diagnóstico, exames laboratoriais pertinentes, tratamento e seguimento adequado. O caso clínico apresentado mostra a importância de uma anamnese e exame objetivo cuidados, atentando em potenciais fatores desencadeadores, seja uma infeção ou a toma de medicação prévias.
Descrição do caso
Homem, 71 anos, reformado de motorista, em situação de insuficiência económica. Divorciado, tem duas filhas e reside com a companheira. Antecedentes pessoais de hipertensão arterial, hipertrigliceridemia e hiperplasia benigna da próstata, medicado com losartan + amlodipina e dutasterida + tansulosina. Sem alergias medicamentosas conhecidas.
Recorreu à consulta de intersubstituição na USF, no final de dezembro/2022, por quadro com oito dias de evolução de cansaço e sensação de mal-estar geral, febre, rinorreia, tosse com expetoração e pieira. Apresentava como sinais vitais relevantes uma taquicardia de 101 bpm, uma taquipneia de 26 cpm e uma saturação de O2 periférica de 94%. À auscultação pulmonar apresentava uma diminuição do murmúrio vesicular, egofonia, fervores bilaterais e broncoespasmo ligeiro difuso. Foi feito o diagnóstico presuntivo de pneumonia adquirida na comunidade e medicado com amoxicilina 500 mg 8/8 h durante sete dias com indicação para voltar para reavaliação ao sétimo dia de antibioterapia. Na consulta de reavaliação apresentava uma melhoria do quadro, já sem evidência de alterações à auscultação, tendo sido dada indicação para completar o esquema antibiótico prescrito.
Dez dias depois da consulta de reavaliação regressa por novo agravamento clínico, com sete dias de evolução, desta vez apresentando um quadro de prostração, hemorragia subconjuntival bilateral assintomática e surgimento de lesões maculares em alvo dolorosas ao toque e dispersas nas palmas das mão e face ventral dos punhos, com um dia de evolução, e mantendo-se sem sintomas ou sinais sugestivos de recorrência de infeção respiratória.
O doente negava quaisquer fatores desencadeantes ou alergias conhecidas, aplicação de novos produtos cosméticos ou alteração de hábitos diários.
Pelo caráter inflamatório e multissistémico das lesões foi presumido um diagnóstico de vasculite de etiologia a esclarecer, tendo sido feito prova terapêutica com administração parentérica na USF de 1g de metilprednisolona por via intramuscular, pedida avaliação analítica complementar, feito referenciação ao serviço de urgência de oftalmologia do hospital de referência para confirmação de inflamação ocular e agendada consulta para reavaliação do quadro clínico no dia útil seguinte, ou seja, três dias depois.
Na consulta de reavaliação, o doente refere ter ficado praticamente assintomático três a quatro horas após a administração do corticoide, referindo, contudo, recorrência sintomática progressiva nas últimas horas. Informa ainda que da avaliação feita no serviço de urgência de oftalmologia foi-lhe confirmado o diagnóstico de episclerite bilateral, tendo sido medicado com os colírios fluormetolona, flurbiprofeno e visuXL®.
Das análises efetuadas destacava-se a ausência de alterações do hemograma, velocidade de sedimentação de 80, proteína C reativa positiva, fator reumatoide positivo (20) e anticorpos antinucleares positivos numa diluição de 1/160, com padrão fino, granular, sem mitoses, nucléolos e citoplasma. Destaca-se ainda a ausência de anticorpos para antígenos nucleares extraíveis (anti-ENA), anticorpos antipeptídeo citrulinado (anti-CCP) e anti-ANCA.
Decide-se então continuar a corticoterapia, desta vez por via entérica, com prednisolona 20 mg diária, de manhã, em esquema de desmame e a referenciação para a consulta de medicina interna do hospital de referência para esclarecimento da etiologia do quadro, com o diagnóstico presuntivo de reação autoimune à antibioterapia usada no contexto da pneumonia.
Comentário
As manifestações multissistémicas, com sinais e sintomas variados e com resposta à corticoterapia apontam para um diagnóstico de vasculite. Contudo, o diagnóstico mais específico pode ser difícil, motivo pelo qual é importante a referenciação para uma consulta hospitalar.
Os sintomas sistémicos não específicos, como a astenia verificada neste doente, são comuns nesta patologia. O perfil analítico observado também é expectável.
A relação temporal das manifestações clínicas com o início da toma de amoxicilina, terminada dias antes do início dos sintomas, parece sugerir uma vasculite de hipersensibilidade ou induzida por fármacos. A toma de medicação pode induzir reações compatíveis com vasculites de pequenos vasos. A vasculite é um possível efeito secundário da amoxicilina, ainda que muito raro (1/10.000 casos), descrita como “erupção cutânea que pode formar bolhas semelhantes a pequenos alvos”. 7
As lesões cutâneas maculares dolorosas ao toque dispersas nas palmas das mãos e face ventral dos punhos podem ser compatíveis com máculas eritematosas que se apresentam frequentemente nas vasculites de pequenos vasos. Contudo, teria sido necessário efetuar biópsia e histologia das lesões para confirmação diagnóstica. No caso das vasculites de hipersensibilidade é mais comum um padrão histológico de vasculite leucocitoclástica por fragmentação neutrofílica nas paredes dos pequenos vasos. 5
A manifestação de olho vermelho, sem dor, prurido ou alterações da visão associados é sugestivo de episclerite, confirmada na observação por oftalmologia.
Nas vasculites associadas a ANCA, a episclerite surge em 21% dos pacientes com envolvimento ocular. 3 Estas manifestações são mais comuns em associação com vasculite de pequenos vasos associadas a ANCA, mas podem também ocorrer na vasculite de hipersensibilidade. 4
Embora as vasculites de hipersensibilidade estejam maioritariamente associadas à presença de ANCA positivos, estas podem ocorrer com resultado negativo.4 Deste modo, é relevante ressalvar que neste paciente, com manifestações clínicas sugestivas de vasculite, apesar de resultado analítico negativo para a presença de ANCA, tal não impede o diagnóstico.
O diagnóstico de vasculite de hipersensibilidade é difícil por ser um diagnóstico de exclusão e exigir a identificação do agente desencadeador. A sua confirmação diagnóstica depende obrigatoriamente da realização de uma biópsia de pele lesada.
O tratamento passa pela descontinuação da medicação, 4 neste caso da amoxicilina que já tinha sido terminada. Quando se apresenta com lesão de órgãos específicos, como se verifica no presente caso, é necessária medicação com corticoterapia sistémica, que foi iniciada na USF e continuada em ambulatório após a remissão inicial, assim como terapêutica específica dirigida às lesões do órgão alvo, instituída pela oftalmologia.
Este caso clínico demonstra que a história clínica cuidada, com atenção à identificação de potenciais fatores desencadeantes de vasculite secundária, nomeadamente a toma de nova medicação, e um exame físico cuidado, atentando nos sintomas multissistémicos, é essencial para o correto diagnóstico desta patologia.
O médico de família, pela natureza do seu trabalho, acompanhando de perto e longitudinalmente o doente, está capacitado para identificar casos como este, baseando-se na análise da evolução temporal e da relação de patologias e medicações passadas com nova sintomatologia. O seu papel é ainda essencial para a determinação da necessidade de referenciação atempada a consultas hospitalares e planificação de seguimento posterior.