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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.40 no.5 Lisboa out. 2024  Epub 31-Out-2024

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v40i5.14123 

Carta ao editor

Aborto espontâneo e luto gestacional - valorizar e gerir: um relato de caso

Miscarriage and gestational grief - valorizing and managing: a case report

Renata Barbosa Soares1 
http://orcid.org/0009-0001-7186-2201

Ana Teresa Melo1 

Joana Pimentel Cavaco1 

Marina Faria1 

1. Médicas Internas de Medicina Geral e Familiar. USF Lusa, ULS Lisboa Ocidental. Carnaxide, Portugal.


Caro editor,

Foi com grande interesse que lemos o artigo publicado na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar intitulado Aborto espontâneo e luto gestacional - Valorizar e gerir: um relato de caso.1

A perda gestacional pode ser uma das experiências mais traumáticas e dolorosas para o casal e a intervenção junto deste, no início do seu luto, é uma temática pouco abordada nos cuidados de saúde. Este artigo mereceu a nossa melhor atenção para fazermos um paralelismo com a realidade na nossa Unidade de Saúde Familiar (USF) e assim refletir sobre a melhor maneira de prestar um acompanhamento adequado durante o processo de gestão de perdas gestacionais.

Neste contexto analisamos os casos de abortos espontâneos (AE) na nossa USF de janeiro de 2023 a junho de 2024. Foram registados nove casos de AE, sendo que apenas 56% ficou com consulta agendada para o seu médico de família após a comunicação do aborto. No primeiro contacto não ficou claro nos registos médicos se as utentes pretendiam uma nova tentativa de gravidez ou iniciar um método contracetivo. Relativamente às utentes que foram reagendadas, na reavaliação a maioria manifestou o desejo de continuar a tentativa de gravidez e apenas uma utente optou por iniciar um método contracetivo.

Nos casos em que houve um acompanhamento desde a pré-conceção pelo médico de família verificou-se que as utentes mantiveram o seguimento após este desfecho. Contudo, nos restantes casos em que o médico só teve conhecimento da perda gestacional, pelo pedido de emissão do certificado de incapacidade temporária (CIT), não houve reagendamento das mesmas.

Em relação à avaliação da saúde mental, em nenhum dos registos médicos houve referência ao impacto do episódio de aborto na saúde mental destas mulheres, sendo que duas utentes já tinham acompanhamento psicológico por estarem associadas a casos de infertilidade. Salientamos também que 45% dos casos de AE foram abordados em contexto de consulta de doença aguda, efetuada por um profissional que não o seu médico de família. Neste contexto consideramos que o tempo destas consultas pode ter sido uma limitação para a abordagem adequada deste tema.

É importante referir que o luto gestacional pode ser vivenciado de forma diferente, mediante vários fatores, como as circunstâncias da perda, a fase da vida em que o casal/mulher se encontra, fatores culturais, sociais e pessoais.

O clínico tem a oportunidade de contactar com a utente numa fase muito precoce, sendo que a tristeza e a revolta podem ser reações expectáveis nesta situação. No entanto, se o médico perder o seguimento destas mulheres não haverá oportunidade de reavaliar o seu estado emocional e psicológico, podendo a médio e longo prazo desenvolver-se uma perturbação depressiva, ansiedade ou stress pós-traumático.

Assim, consideramos que deveria haver uma reavaliação médica após o episódio. Acresce ainda que é uma oportunidade, conforme a intenção da utente, de fazer uma consulta pré-concecional ou abordar um método contracetivo adequado.

Em relação à emissão de CIT, em 44% dos casos esta foi emitida pela USF, sendo esse o motivo da consulta e o meio pelo qual o médico teve conhecimento do AE.

É possível que o número reduzido de pedidos de CIT por este motivo se deva ao desconhecimento das mulheres face a este direito ou por receio de discriminação pela entidade laboral, uma vez que é especificado como motivo de CIT o artigo 38.º do Código do Trabalho,2 referente à licença por interrupção da gravidez.

É ainda expectável que com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 2/2024, de 5 de janeiro,3 em que o CIT pode ser emitido por outras entidades para além dos cuidados de saúde primários, estes venham a ter ainda menos conhecimento das utentes que sofreram AE e, assim, ter menos oportunidades para intervir nestes casos.

Em mensagem final, reforçamos que seria importante uma avaliação pelo médico de família após um episódio de AE. Acreditamos que os mesmos são profissionais com capacidades e competências para abordar da melhor forma um tema tão sensível como o luto gestacional. Através de ferramentas como a escuta ativa ou perguntas abertas sobre os sentimentos que o casal/mulher poderá estar a percecionar, os médicos demonstram empatia pelo sucedido e fortalecem a relação médico-doente. Com isto, temos a oportunidade de abordar o impacto do aborto na saúde mental e garantir que mencionamos os sinais e sintomas subjacentes à psicopatologia de modo a empoderar os utentes a procurar ajuda especializada antecipadamente.

Resposta do editor

Caros autores,

O texto que nos enviam merece três reflexões.

Em primeiro lugar chama a atenção para a carga burocrática do exercício em MGF. Nos termos da Lei n.º 4/84 com as sucessivas alterações, incluindo as que ficaram inscritas no Código do Trabalho pela Lei n.º 7/2009, a mulher tem direito a licença com duração entre 14 e 30 dias em caso de interrupção de gravidez. O abortamento terá de ser atestado pelo médico, garantindo a veracidade das declarações prestadas, e a consumação deste direito por comunicação ao empregador, seja pela emissão de CIT ou pelo preenchimento do formulário modelo RP5051-DGSS, da Segurança Social. Decorre que o processo é independente do médico assistente, pois quem tem o dever de atestar é quem verifica o diagnóstico, o que não será na maioria das situações o especialista em medicina geral e familiar. O gozo deste direito não depende, nem pode, da efetivação de uma outra consulta específica nos serviços de saúde, pelo que não poderá ser esta a via para garantir a comunicação efetiva entre níveis de cuidados. No tempo da transformação digital, informação relevante tem de ser vertida no processo clínico eletrónico e, respeitando a vontade expressa do cidadão, estar disponível operacionalmente em cada contacto com os serviços de saúde, independentemente do nível de cuidados, do local ou do tipo de financiamento (público, cooperativo ou privado).

Para a mulher, um abortamento é uma perda que terá de processar no seu contexto individual, familiar e comunitário. A forma como o fará depende de fatores intrínsecos e extrínsecos, onde o apoio médico pode ou não ser relevante. Enquanto profissionais de saúde temos naturalmente a tendência a valorizar o nosso papel, enquadrando a relevância de atuar a bem do doente, seja no problema de saúde concreto ou na sua antecipação preventiva ou diagnóstica. No entanto, o benefício não existe por si, mas pela oportunidade do seu enquadramento na situação concreta da pessoa. Diz-nos a experiência que nem sempre mais é melhor - e este é um bom exemplo disso mesmo. Viver a perda e fazer o luto é um processo fisiológico e não tem de ser obrigatoriamente objeto de diagnóstico e intervenção por profissional qualificado. Neste sentido, mais do que o agendamento protocolizado, interessará a disponibilidade para abordar o abortamento e ajudar, se for necessário, fazer o luto, permitindo adaptar à realidade atual e viver para lá da perda.

Por fim, e neste sentido, a continuidade da saúde é registada pelos médicos na descontinuidade dos episódios que justificam o recurso aos serviços de saúde, alguns programáveis na gestão que fazemos do nosso tempo enquanto médicos e enquanto potenciais utilizadores dos serviços, outros perfeitamente extraordinários que justificam a nossa necessidade de criar oportunidades de contacto não programadas dentro do nosso horário. O equilíbrio é complexo e depende de múltiplos fatores: se tivermos muita consulta aberta vamos deixar a descoberto o seguimento de saúde, dos fatores de risco e da doença crónica, mas se reduzirmos o espaço para a consulta do dia perderemos uma parte significativa das verdadeiras preocupações de saúde das pessoas nas suas necessidades, expectativas e receios, e com isso oportunidades de intervenção que nas características da nossa especialidade são sempre holísticas, abrangentes e em continuidade. Por isso, colocamos a acessibilidade como um pilar da nossa atuação nos cuidados de saúde primários. Tem de ser uma prática e não apenas um conceito, onde teremos de reequacionar aspetos fundamentais do nosso exercício, como a sobrecarga de trabalho, o burnout, os recursos insuficientes, o tempo limitado para atendimento, a falta de coordenação e integração de cuidados, o papel na liderança dos serviços, o sistema de contratualização, a falta de financiamento e a iliteracia de saúde, generalizada tanto na população como nos cargos de direção e governança.

Paulo Santos

Editor-chefe da RPMGF.

Referência bibliográfica

1. Borelli A, Machado I, Piedade F. Aborto espontâneo e luto gestacional - Valorizar e gerir: um relato de caso. Rev Port Med Geral Fam. 2024;40(3):300-5. [ Links ]

2. Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro. 2009. Diário da República. I Série;(30). [ Links ]

3. Decreto-Lei n.º 2/2024, de 5 de janeiro. 2024. Diário da República. I Série;(4). [ Links ]

Recebido: 21 de Agosto de 2024; Aceito: 29 de Outubro de 2024

Endereço para correspondência Renata Barbosa Soares E-mail: mdr.renata@gmail.com

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