Introdução
Intimamente associada à essência da vida e ao significado e propósito da mesma, a espiritualidade acaba por ser determinante no modo como vivenciamos a morte.
Com efeito, pela força interior que pode ser gerada e tendo como base a transcendência, a espiritualidade pode traduzir-se de uma forma positiva num processo de “boa morte”, cujo conceito adiante se definirá.
Propõe-se uma revisão bibliográfica em formato de artigo breve, através da pesquisa de artigos científicos na base de dados da PubMed (MEDLINE) e de outros trabalhos publicados, demonstrar o contributo da espiritualidade, nas suas diversas formas, para um melhor ajustamento intrínseco no desenrolar do processo da morte.
Há que assinalar o papel determinante que as Pessoas em fim de vida podem desempenhar na gestão social da sua morte, com a realização dos preparativos para o fim das suas vidas, sem descurar a ação dos cuidadores.1
Em última análise, começa a existir a convicção de que a experiência do morrer poderá servir como compensação das frustrações do viver, numa perspetiva de humanização da morte, já que não terá sido possível humanizar a vida.
A obsessão pela cura, com a prática da obstinação terapêutica, poderá dar lugar à implementação de métodos desproporcionados com efeito tranquilizador, levando o “doente despersonalizado” no hospital a transformar-se no “doente infantilizado” nos cuidados paliativos. 2 Esta infantilização poderá ajudar a Pessoa a lidar com a morte, numa espécie de retorno ao “conforto uterino”.
Há que realçar neste aspeto a essência dos cuidados paliativos, com reconhecimento da dimensão espiritual na fase final da vida. A espiritualidade dimensiona-se nesta fase como vertente do cuidar, com implicações inequívocas no bem-estar do doente, amplamente comprovadas em estudos científicos reveladores do seu impacto na saúde física e mental. 3
A doença precipita as necessidades espirituais, pelo desequilíbrio que provoca no bem-estar pessoal, conduzindo-nos a questionar o sentido da vida e gerando sentimentos fortes de medo, desesperança e raiva.
A espiritualidade, focando-se no significado e propósito da vida, na relação com a força interior, energias e crenças e, porque não dizê-lo, como forma de crescimento pessoal, poderá constituir um suporte insubstituível no aproximar da morte.
Enquadramento histórico e desenvolvimento
A morte ao longo do tempo
Na primeira Idade Média (antes do séc. XII), a tónica incidia na familiaridade com a morte, onde o temor e o desespero não tinham lugar, imperando a aceitação passiva e a confiança mística). 4 A morte era encarada como o reconhecimento individual de um destino, onde a personalidade própria não seria suprimida, mas simplesmente adormecida. Pressupunha-se uma sobrevida como que adormecida e centrada nas sombras do paganismo, dando lugar às almas do outro mundo do Cristianismo Arcaico. Esta perspetiva de encarar a morte configurava o abandono ao destino, sem lugar a qualquer afirmação da individualidade.
Na segunda Idade Média (séculos XII a XIV), a morte era valorizada e, ao invés do que sucedia anteriormente, as características individuais e a biografia eram registadas numa perspetiva de reversibilidade. Tratava-se da afirmação de um sentimento mais pessoal e mais intrínseco da morte (a morte de si mesmo), com um apego fortíssimo às vicissitudes da vida, mas tendo como contraponto o sentimento doloroso do fracasso com a mortalidade.
Na Época Moderna (princípios do séc. XIX), a morte como que se descentrou da sua dimensão marcadamente familiar. Persiste a crença numa sobrevida agora mais realista, como que uma transposição para a eternidade, traduzindo-se na separação não admitida da morte (a morte do outro). Assiste-se a partir daqui a uma imagem mais distante da morte, mas ao mesmo tempo mais dramática e mais controversa.
O séc. XIX mostra-nos, apesar do aparente investimento nos rituais religiosos e no luto, uma notória secundarização da dimensão familiar, ao ponto de em última análise (séc. XX) as Pessoas deixarem de ser mortais (a morte interdita). Do ponto de vista físico ou orgânico admitimos a possibilidade de morrer, mas intrinsecamente não nos sentimos mortais.
A vivência da morte, tão intensa nas comunidades e famílias até meados do séc. XIX, passa a ser encarada como algo interdito e incomodativo. Ao doente era escamoteada a verdade da sua situação com o intuito de o poupar a mais sofrimento.
A modernidade mais recente (séc. XX) acentua a rejeição da morte no decurso de uma existência em que a busca da felicidade/saúde era a palavra de ordem. A partir dos anos trinta do século passado, a morte em casa junto dos familiares mais próximos transfere-se para a solidão do hospital. O objetivo da cura e o combate contra a morte passam a ser determinantes. A morte no hospital prevalece e é interpretada como um fracasso na luta contra a doença, transformando-se num acontecimento técnico declarado por decisão médica. 4
As necessidades espirituais em Pessoas com doenças de mau prognóstico
A satisfação das necessidades espirituais em doenças complexas e de prognóstico reservado é uma condição essencial para a valorização da autonomia, 2 com o self convidado a exercer autoridade sobre como morrer, com ênfase no psiquismo e no espírito.
Refletindo sobre o doente terminal, 5 demonstra as necessidades não satisfeitas das Pessoas em fim de vida, assim como das respetivas famílias. Considera, numa perspetiva inovadora para a época, que as Pessoas próximas da morte realizam um trajeto de estádios identificáveis à medida que se aproximam do momento final, com cada um desses estádios observáveis através de comportamentos e emoções. O estádio final caracteriza-se por um estado de aceitação da Pessoa em fim de vida. A morte com aceitação não é uma morte feliz, mas uma condição para que ocorra com tranquilidade, representando também um objetivo bem-sucedido para os profissionais que lidam com estas situações.
Ao destacar os constrangimentos burocráticos que não permitem a prestação de cuidados às Pessoas institucionalizadas em fim de vida5 denuncia-se um modo de morrer desesperante, em solidão, mecanizado e desumanizado. O percurso até à morte pode e deve ser encarado como uma oportunidade de crescimento e realização pessoal, através do desenvolvimento do self, num ato de encontro e reparação. Os meios a utilizar são o discurso e a expressão de sentimentos, rumo à dignidade no morrer e - o mesmo é dizer - ao concretizar da ideia de “boa morte”.
Destacar-se-iam como necessidades espirituais, em fim de vida, as seguintes:6
Ser reconhecido como Pessoa;
Encontrar sentido de vida;
Libertar-se da culpa e perdoar-se;
Depositar a vida em algo mais do que apenas em si mesmo (transcendência);
Esperança autêntica sem falsas ilusões;
Expressar sentimentos e vivências religiosas;
Preparação do corpo para a morte/conclusão de assuntos pendentes;
Amor/relacionamento;
Conforto e segurança.
Numa palavra, encontrar sentido relendo a própria história e encontrando metas realistas, vivendo um dia de cada vez.
Definição e clarificação conceptual
O conceito de “boa morte” foi sempre controverso, muito embora fatores como a permanência da consciência, uma boa preparação e aceitação para a sua ocorrência, com a dignidade e tranquilidade subjacentes, sejam muito consensuais.
Foram valorizados quatro fatores principais para a existência da “boa morte”: 1
Consciência da morte;
Preparação para morrer;
Desistência dos deveres e das responsabilidades;
Realização das despedidas desejadas.
A espiritualidade, muito presente desde há muito em abordagens filosóficas, teológicas e religiosas, não é fácil de definir pela diversidade e complexidade dos aspetos de que se reveste.
A espiritualidade foi entendida, do ponto de vista etimológico, como “o significado do sopro de vida, ao encontro do transcendente”. 7 No entanto, parece haver algum consenso em considerar a espiritualidade como algo intimamente associado à essência da vida, em busca do seu propósito e significado. Assenta no transcendente e relaciona-se com a força interior. Comporta uma perspetiva fenomenológica ao aprender com a própria experiência de vida e também uma perspetiva mística na sua relação com as energias, crenças e reencontros.
A doença, ao gerar preocupações, incertezas e insegurança, constitui uma ameaça da integridade, precipitando as necessidades espirituais.
Ter saúde torna a vida garantida. A doença desequilibra o nosso bem-estar e leva-nos a questionar o sentido de vida, dando oportunidade ao crescimento pessoal com respeito pelos valores, enquanto Pessoa doente e enquanto ser único.
A procura do sentido de vida compreende-se num clima onde a angústia e o sofrimento imperam. A Pessoa que sofre poderá transcender-se de modo a encontrar o seu equilíbrio.
No final da vida, o doente carece de necessidades que podem ser concretizáveis, nomeadamente “a necessidade de ser reconhecido como Pessoa, a reconciliação com a própria vida e a procura do sentido… à transcendência e à esperança”. 6
São os cuidados espirituais que poderão satisfazer essas necessidades ao permitirem o estabelecimento de uma relação de ajuda e confiança. 8
Os profissionais de saúde poderão desempenhar um papel relevante no apoio, também espiritual, aos doentes e seus familiares, num momento de angústia, inquietação e grande fragilidade. Ainda que o pleno sucesso não seja possível, constitui um imperativo ético dos profissionais melhorar o conforto e amenizar o sofrimento do doente, colocando-se, se possível, no seu espaço de vulnerabilidade. O cuidado espiritual exige do profissional inserido numa equipa multidisciplinar, para além da sua competência, o reconhecimento dos próprios limites. Tem que saber ouvir o doente ativamente, demonstrar empatia, reconhecer e responder à sua angústia e preocupações, incluindo as necessidades espirituais/religiosas não satisfeitas.
Nos cuidados em fim de vida, a prioridade do profissional centra-se no saber ser e não no saber fazer. A espiritualidade e a religiosidade, ainda que relacionadas, não têm o mesmo significado.
A espiritualidade ultrapassa os dogmas das religiões tradicionais. Por sua vez, a religiosidade envolve os dogmas, o culto e a doutrina partilhada. A espiritualidade atinge aspetos da vida humana que transcendem os comportamentos habituais, com enfoque no significado e propósito da vida e na busca de um sentido. Uma boa parte das pessoas expressa a sua espiritualidade através da prática religiosa, outras através das suas relações com a natureza, as artes, a música, ou através de um conjunto filosófico de crenças ou ainda nos relacionamentos com amigos e familiares. 7 Hoje em dia, a religião configura uma escolha pessoal, com a opção por parte da maioria das pessoas e afim de desenvolver a sua espiritualidade, por diversos aspetos das várias religiões que como que “se misturam e encaixam”. 2
A consciência exterior simbólica e a antecipação da morte permitem-nos captar o valor único da Pessoa, a sua singularidade, a sua irrepetibilidade, a sua irredutibilidade e a sua marca como valor único da dignidade da pessoa humana, que supera todas as coisas. Com a morte de cada Homem termina um universo cultural específico, mais ou menos rico, mas sempre original e irrepetível. (9 “O que o Homem deixa quando morre os seus escritos, os objetos culturais que criou, a memória da sua palavra, dos seus gestos ou do seu sorriso naqueles que com ele viveram, os filhos que gerou, tudo exprime uma realidade que está para além do corpo físico que esse Homem usou para viver o seu limitado tempo pessoal de ser Homem”. 9
A esperança de vida global da espécie humana tem vindo a aumentar significativamente ao longo dos últimos séculos. A evolução tecnológica poderia vir a tornar a doença e a morte meros problemas técnicos e, como tal, potencialmente passíveis de solução. 10
O ser humano é constituído por um conjunto de algoritmos interconectados, posição essa que foi contestada por alguém, que acrescentou mesmo considerar “a visão algorítmica da biologia humana, não apenas cientificamente incorreta, como pobre do ponto de vista humano”. 11
Conclusão
A espiritualidade é um conceito multidimensional, fazendo parte integrante do corpo e da mente. As convicções espirituais podem não refletir a existência de uma religião interiorizada, mas uma filosofia pessoal de vida. Todas as pessoas, e nomeadamente as portadoras de doença, têm por acréscimo necessidades espirituais que os cuidados de saúde não devem ignorar.
O apoio espiritual aos doentes em cuidados paliativos é essencial, indo ao encontro da dignidade, autonomia, aceitação da doença e do processo de morte de cada uma das Pessoas doentes.
A introdução precoce dos cuidados paliativos, com o apoio familiar bem presente, a promoção de relações de grande proximidade geradora de sensação e paz e de sentido de vida, podem vir a traduzir-se no reforço do bem-estar espiritual.
A espiritualidade e também a religiosidade poderão representar um acréscimo de força interior e conforto para os doentes pelo “sentido do significado e propósito associado à diminuição da angústia”. Um sistema de cuidados despersonalizados e não humanizados pode provocar angústia no confronto com a doença em todas as suas dimensões.