Introdução
A ética médica dos tempos de hoje deve pautar-se por uma abertura e maleabilidade impensáveis há duas ou três décadas. Com efeito, a abertura para a discussão de opiniões e posturas divergentes terá que constituir uma imagem de marca, se bem que os alicerces consubstanciados nos princípios éticos fundamentais e a dignidade da Pessoa como referência não possam ser postos em causa.
A prática profissional do médico deverá ser norteada pelos princípios da Beneficência, na sua relação com a Medicina Baseada na Evidência, Não Maleficência, Autonomia e Justiça.
A nova matriz de atuação médica deverá assentar na liberdade ética da Pessoa (a Pessoa como centro da ética), com direito ao respeito e dignidade e à privacidade.
Os cuidados de conforto, procurando diminuir o sofrimento e reforçar a satisfação, bem-estar, segurança e qualidade de vida são prioritários, exigindo uma boa comunicação do médico com a pessoa.
Posições divergentes poderão ser mediadas com o estabelecimento de soluções consensuais, de acordo com a Ética do Consentimento Mútuo estabelecida no Código Deontológico que rege a profissão médica.
O consentimento livre, informado, esclarecido e atual constitui um requisito essencial na atuação do médico, onde a persuasão deverá ter lugar em detrimento da imposição (consentimento presumido de acordo com as Legis Artis).
Há que avaliar o enquadramento e capacitação do médico para agir adequadamente em interação com outros profissionais nos cuidados aos doentes paliativos e, em simultâneo, a projeção, numa perspetiva transdisciplinar, do papel do médico como motivador e dinamizador da integração dos cuidados familiares na equipa de apoio.
O apoio do médico aos doentes em cuidados paliativos
Atualmente, a European Association for Palliative Care (EAPC) define cuidados paliativos como cuidados ativos e globais do doente, cuja doença não responda ao tratamento curativo. O controlo da dor e outros sintomas, problemas sociais, psicológicos e espirituais constitui a task-force dos cuidados paliativos, através de uma abordagem interdisciplinar, que inclui o médico e engloba também o doente, a família e a comunidade. Esta noção abrangente do cuidar garante o provimento das necessidades do doente, onde quer que ele seja assistido, no hospital ou em casa.
Os cuidados paliativos afirmam a vida e encaram a morte como um processo normal, não a apressando ou adiando.
O Programa Nacional de Cuidados Paliativos (PNCP) salienta que os cuidados são executados tendo em vista as necessidades e não propriamente subordinados ao diagnóstico ou ao prognóstico. Deverão ser implementados de forma estruturada em fases mais precoces da doença, quiçá em simultâneo com outras terapêuticas que têm por objetivo prolongar a vida.
Para esta nova conceção do Cuidar o médico é obviamente determinante.
Os doentes em fim de vida exigem três necessidades básicas;1
Ser cuidados por profissionais que saibam reconhecer o seu sofrimento e lidar com ele, seja físico, emocional ou espiritual;
Seja assumida a sua autonomia e o respeito pela opção do local onde desejam ser tratados;
Saber que os familiares que lhes prestam cuidados vão ser apoiados, orientados e preparados para o que os espera.
Um estudo qualitativo da autoria de Norman e colaboradores, 2 que envolveu doentes com cancro seguidos em cuidados paliativos, descreveu três padrões de cuidados, com envolvimento crescente dos médicos e em particular dos médicos de família, sequencial, paralelo e partilhado:
Em cuidados sequenciais, os doentes receberam virtualmente todos os cuidados de especialistas após o diagnóstico; logo, a relação com o médico de família tende a escassear;
Em cuidados paralelos, os médicos de família continuam a seguir os doentes, mas apenas no apoio complementar do paciente: cuidados paliativos e seguimento do cancro são responsabilidade exclusiva dos outros especialistas;
Em cuidados partilhados, os doentes vêm os seus médicos de família com papel ativo na discussão das alternativas dos tratamentos, referenciando a novos especialistas e avaliando e tratando os sintomas relacionados com o cancro, assim como outros problemas médicos e emocionais.
Por sua vez, os doentes identificam alguns aspetos importantes na sua relação com o médico: 2
Estar acessível, para eventual consulta e/ou contacto telefónico;
Prestar apoio aos doentes e familiares, com manifestações de afeto, encorajamento e estímulo;
Avaliar novos sintomas e referenciar se necessário, bem como prestar cuidados médicos para problemas não relacionados com o cancro, isto no caso de se tratar do médico de família.
Os participantes consideram a acessibilidade telefónica muito importante, 3 como contributo para a diminuição da ansiedade e facilitação dos cuidados antecipados.
O apoio do médico aos cuidadores familiares e não familiares
Num estudo qualitativo de Grande e colaboradores, realizado no Reino Unido, os familiares de doentes falecidos referiram a acessibilidade aos médicos e enfermeiros como o aspeto mais importante do apoio estabelecido.4 Vários comentários registados no estudo referiam-se à disponibilidade fora do habitual dos médicos e enfermeiros, através da cedência do contacto pessoal e, se necessário, para além do horário de trabalho.
Outro aspeto mencionado favoravelmente refere-se à mobilização de outros recursos e a provisão de equipamentos. A atitude e a disponibilidade do médico para comunicar com o doente foram muito valorizados. Por outro lado, o suporte ao cuidador, a informação e o controlo sintomático foram mencionados menos vezes. Um aspeto que se destacou foi a importância crucial do acesso a serviços de suporte para repouso de familiares. 4
Em resumo, o principal foco de atenção dos cuidadores foi o suporte básico que lhes permitiu manter os cuidados no domicílio.
Os médicos e a prestação de cuidados em fim de vida
A prestação de cuidados médicos em fim de vida leva-nos a equacionar as áreas ditas centrais dos cuidados paliativos e que englobam o controlo de sintomas, a comunicação adequada, o apoio à família e o trabalho em equipa. Como fases de intervenção em cuidados paliativos podemos considerar sequencialmente as fases de reabilitação, pré-terminal, terminal e final.
Os benefícios dos cuidados paliativos aumentam caso surjam mais precocemente na vida das pessoas, em complementaridade com os outros cuidados. É um facto indesmentível o défice comprovado no apoio às necessidades psicológicas/realização pessoal aos doentes seguidos em cuidados paliativos.
Os médicos e os profissionais que cuidam destes doentes deverão interrogar-se permanentemente: Estamos a escutar? Estamos a olhar?
A maioria dos doentes terminais, se pudessem optar, preferiam que a morte ocorresse em casa. Nas últimas décadas as mortes em casa estão a diminuir, inclusive onde existem equipas domiciliárias de cuidados paliativos e apoio 24 horas por dia. 3 Os fatores que determinam o local da morte parecem revestir de igual modo aspetos sociais e médicos. Num estudo retrospetivo realizado por MacWhiney e colaboradores, 5 os fatores associados com a morte em casa foram a preferência do doente aquando da avaliação inicial, a existência de mais que um elemento da família envolvido na prestação de cuidados e o apoio de enfermeiros no domicílio durante parte do dia nos últimos dias de vida.
Quem morre no hospital tende a ser pobre, idoso e mulher, viver isolado, ter doença prolongada, elevado nível de stress nos cuidadores e menos apoio de serviços de cuidados paliativos. 6 Os principais motivos de internamento reportados foram a perceção de sofrimento do doente, a exaustão dos cuidadores e a dificuldade de viabilizar cuidados médicos em casa durante a noite. 3 Doyle relata que muitos dos internamentos em unidades de cuidados paliativos não são para controlo de sintomas, mas pela necessidade de cuidados de enfermagem em situações de dependência. 3
Muitos dos internamentos imprevistos nos últimos dias de vida poderão ser evitados se os médicos e enfermeiros prepararem os familiares, visitarem o doente com frequência em casa e se disponibilizarem para as chamadas urgentes. 5
Há que reconhecer que o local da morte pode ser determinado por outros fatores, para além da preferência do doente. Na fase final da doença o estado clínico pode deteriorar-se, a ponto de justificar o internamento no hospital ou numa unidade especializada em cuidados paliativos. Um inquérito de MacWhinney e Stewart revelou que 65% dos médicos de família consideram ser preferível cuidar de doentes em fim de vida em casa, muito embora considerem o local mais apropriado dependente das necessidades e desejos do doente e família. 7
Os doentes em cuidados paliativos desafiam as capacidades dos médicos de muitas formas, incluindo o tratamento da dor e outros sintomas, a comunicação com as famílias em condições emocionais difíceis, a tomada de decisões éticas delicadas e o cuidar de pessoas muito debilitadas e moribundos no domicílio, mutas vezes com recursos limitados. 8
Parece-nos essencial a garantia de acompanhamento em consultas programadas e não programadas no domicílio, tendo em vista o estado geral do doente, a evolução da doença e o controlo sintomático.
É também relevante a disponibilização do contacto telefónico com a equipa do centro de saúde em situações de descontrolo de sintomas ou apoio psico-emocional. De igual modo, o médico hospitalar deverá disponibilizar um horário para contacto telefónico e garantir a nota de alta e enviá-la por email ao interlocutor dos cuidados de saúde primários e ainda garantir a dispensa de fármacos ou material necessário até existir uma alternativa.
De realçar ainda a importância da existência de informação escrita no domicílio do doente, esclarecedora da medicação, doses de resgate em caso de descontrolo sintomático e forma de contactar com os profissionais de referência ou serviço de urgência, se justificável.
A intervenção do médico de família deverá depender da complexidade da situação. A articulação com especialistas em cuidados paliativos, tendo em vista um eventual internamento, deverá estar sempre em aberto. A consultoria ou referenciação do doente nunca deverá supor a separação definitiva nem a renúncia da responsabilidade continuada do caso. 1
Considerações finais
O Corpo não se queixa! Apenas a Pessoa se queixa! - Esta frase, alicerçada no conceito de dor total, consubstancia o grande princípio orientador da atuação do médico em geral e muito em particular nos doentes portadores de doenças complexas de mau prognóstico. Entronca em si o conceito de dignidade como valor absoluto.
Também os cuidados de conforto, tendo em vista a diminuição do sofrimento e ansiedade e o reforço da satisfação, bem-estar, sentimento de segurança e qualidade de vida, deverão ser prioritários, exigindo uma boa comunicação/interação do profissional de saúde com o doente.
Intimamente associada ao significado e essência da vida, a espiritualidade deverá ser valorizada, nos seus aspetos de relação com a força interior da Pessoa e transcendência.
Ao Modelo Biopsicossocial do Cuidar acrescentamos hoje a dimensão espiritual, traduzindo-se então no novo Modelo Biopsicossocioespiritual.
O crescimento pessoal na doença, atingível desde que o respeito pelo valor da Pessoa e o amor reafirmado pela família/cuidadores sejam uma realidade.
As Diretivas Antecipadas de Vontade/Testamento Vital, configuradas em “ordens para não ressuscitação, entre outras”, podem também ser parte integrante dos cuidados de conforto, já que são geradoras de uma maior tranquilidade do doente.
O Testamento Vital, consignado em Lei, e do qual consta como figura determinante o Procurador dos Cuidados de Saúde, constitui um direito inalienável do doente, que só em circunstâncias excecionais que violem a Legis Artis poderá não ser respeitado pelo médico. 9
Também as preocupações antecipadas com o luto deverão ser devidamente ponderadas pelo médico e profissionais da equipa, tendo em atenção o suporte e a preparação dos familiares/cuidadores, de modo a evitar a “conspiração do silêncio”.