Introdução
Em março de 2020, o efeito pandémico, que conduziu em Portugal à declaração do Estado de Emergência e ao confinamento,2 incutiu graves transtornos no mercado de trabalho e muitos dos trabalhadores vulneráveis e desprotegidos viram-se colocados numa nova condição social de desempregados imediatos (Caleiras e Carmo, 2020).3 Foram as primeiras vítimas laborais de uma crise que começou por ser sanitária, mas logo teve efeitos nefastos na economia e no emprego. A sociedade e a economia estavam ainda muito marcadas pela pesada herança deixada pela crise de 2008, com origem financeira, bem como por problemas estruturais persistentes, como mostram os níveis salariais baixos,4 as elevadas desigualdades na distribuição de rendimento ou o grau de segmentação e desproteção social no mercado de trabalho - onde quase um quinto dos trabalhadores tinham contratos não permanentes ou temporários (Mamede et al., 2020) e os trabalhadores informais representavam cerca de um oitavo do emprego total (ILO, 2018).
A recuperação da economia portuguesa desde 2013, e até ao eclodir da pandemia, ocorreu em paralelo com uma melhoria nos números do emprego. A taxa de desemprego registou uma queda muito acentuada para valores que não se observavam desde 2003, enquanto o emprego voltou a registar níveis próximos dos observados antes da crise financeira.5 Mais recentemente, o mercado de trabalho parece ter resistido aos efeitos nefastos da COVID-19 na atividade económica,6 reflexo, em parte, das medidas de proteção dos postos de trabalho, especialmente o regime de lay-off simplificado,7 e da adoção do teletrabalho8 (Caleiras e Carmo, 2022).
Com estas melhorias quantitativas, porque não estavam segmentos significativos de trabalhadores suficientemente protegidos das ondas de choque socioeconómico da pandemia? Uma explicação é que quando o crescimento do emprego retomou com a conjuntura de recuperação económica (absorvendo, aliás, parte significativa do desemprego gerado no tempo da Troika), prevaleceram políticas formuladas com foco nos aspetos quantitativos do emprego e no lado da oferta. O emprego criado concentrou-se na quantidade, descuidando a qualidade dos empregos disponíveis e os graves efeitos estruturais da natureza temporária dos contratos bem como a precariedade das condições de trabalho, nomeadamente ao nível de lacunas na cobertura de proteção pelo sistema de segurança social. Muitos dos novos empregos criados eram, na realidade, maus empregos.9
Um breve olhar comparado entre as crises financeira e pandémica permite verificar particularidades na evolução de dois indicadores importantes: o peso relativo de contratos a termo certo e a taxa de desemprego. A evolução da percentagem de trabalhadores com contratos a termo certo foi bastante distinta, com uma queda expressiva em 2020, o que não aconteceu anteriormente. Por outro lado, a taxa de desemprego sofreu várias oscilações durante a crise pandémica, enquanto na anterior ocorreu um crescimento progressivo (Marques e Guimarães, 2021). Se na crise financeira o desemprego aumentou continuamente, sem variação significativa no peso dos contratos a termo, na crise pandémica este peso caiu de forma acentuada, deixando claro que o desemprego afetou de forma desproporcional os trabalhadores com vínculos precários, ou seja, os mais expostos e vulneráveis.10
Estes trabalhadores foram os que, em primeira linha, mais sofreram na pele as consequências devastadoras da pandemia; e nem mesmo o lay-off simplificado conseguiu evitá-las. Completamente expostos às quebras na procura (interna e externa) devido ao confinamento, muitos foram autenticamente “varridos” do mercado de trabalho, incluindo trabalhadores imigrantes. Alguns, ligados direta ou indiretamente ao turismo, restauração e alojamento, tinham sido precisamente aqueles puxados pela alavanca do crescimento económico no período pós-Troika. Reabsorvidos por vezes em condições ainda mais precárias, foram os primeiros que o mercado de trabalho dispensou. Duplamente desprotegidos, no emprego e no desemprego, muitos ficaram numa zona cinzenta ou em “terra de ninguém”, à margem das políticas públicas (Caleiras e Carmo, 2020).
O objetivo deste artigo é analisar as experiências por detrás dos números dos trabalhadores que transitam numa lógica de rotatividade entre empregos inseguros, desprotegidos, desregulados e mal remunerados, alternando entre situações de precariedade e desemprego, sem conhecerem o que é a segurança e a estabilidade. Quem são estes trabalhadores? Porque foram imediatamente atingidos pelo desemprego? Como atravessaram e vivenciaram a crise pandémica? As múltiplas dimensões inerentes a estas questões serão aqui analisadas através dos resultados de um estudo sociológico qualitativo, conduzido com recurso a entrevistas aprofundadas a 53 trabalhadores (aplicadas entre setembro de 2019 e dezembro de 2020) e a 14 entrevistas de follow-up realizadas entre março e agosto de 2020 (abrangendo, assim, o primeiro confinamento). Procurar-se-á, assim, compreender a difícil realidade destes trabalhadores (em alguns casos com empregos dificilmente categorizáveis) e que com a pandemia sofreram (mais) um revés nos seus (frágeis) percursos de participação no mercado de trabalho.
À luz deste olhar, é possível identificar que as alterações ocorridas no contexto particular da pandemia refletem a preexistência de problemas acumulados, nomeadamente a multiplicação, diversificação e complexificação de trajetórias sociolaborais tendencialmente descendentes. Várias dimensões foram impactadas e merecem ser consideradas: das mais objetivas (contratos e rendimentos) às mais subjetivas e existenciais/relacionais (alterações no quotidiano), passando pelas estratégias individuais e institucionais acionadas, incluindo o papel das políticas. Interligadas no seu conjunto, estas permitem compreender experiências caracterizadas, em geral, por múltiplas desvantagens e perdas significativas nas diversas esferas da vida (e não apenas laborais).
O artigo estrutura-se da seguinte forma: na primeira secção faz-se o enquadramento teórico-metodológico do estudo; na segunda abordam-se as transições ocorridas nos percursos de participação no mercado de trabalho e apresenta-se uma tipologia de trajetórias laborais; posteriormente analisam-se os impactos e as experiências vividas no contexto da pandemia, ilustrando com casos concretos e identificando variações; a quarta secção foca-se nos modos de enfrentamento. Por fim, conclui-se com uma breve reflexão sobre o processo de precarização do trabalho, as dinâmicas institucionais em que ele se desenvolve e cristaliza, e os riscos que ele comporta caso nada seja feito.
1. Enquadramento teórico-metodológico
A pandemia tornou bem patentes as fragilidades da nossa sociedade e do sistema económico capitalista. No capítulo “A sul da quarentena”, Santos (2020) destacava vários grupos sociais11 que tinham em comum uma especial vulnerabilidade que, preexistindo à quarentena, se agravaria com ela: entre eles, os trabalhadores precários, informais, ditos autónomos. E questionava o que significaria a quarentena para estes trabalhadores, que tendem a ser os mais rapidamente despedidos sempre que ocorre uma crise económica. Após cinco décadas em que as políticas neoliberais produziram uma erosão nos direitos dos trabalhadores, desigualdades e segmentação à escala mundial, este grupo tornou-se globalmente dominante no Sul e em largas franjas no Norte. Durante a pandemia, foi dos que mais sofreu, além de ter sido determinante na destruição de emprego (ILO, 2021a, 2021b).
No ensaio “The Pandemic Will Split the United States in Two”, Pinsker (2020) referia-se a duas experiências laborais distintas. A primeira é a dos trabalhadores com altos níveis de educação e empregos estáveis, entre os quais o teletrabalho é exequível. As suas vidas são mais stressantes, as rotinas do trabalho alteram-se, os cuidados com os filhos são desafiantes e sair de casa é uma ameaça constante. A outra experiência é vivida pelos restantes trabalhadores, ou seja, aqueles que não podem trabalhar a partir de casa e que colocam a sua saúde em risco diariamente, cujos empregos são perdidos e rendimentos reduzidos. A pandemia veio denunciar e exacerbar esta disparidade, cuja diversidade de situações não se pode reduzir a uma mera perspetiva dicotómica.
Trata-se de um problema que não é novo. Possui na sua génese um conjunto de causas interligadas, mais remotas (economia global, processos de liberalização, deslocalização de atividades produtivas, agenda neoliberal baseada na ultracompetição) ou mais próximas (cadeias produtivas perigosamente longas - como a pandemia evidenciou -, financeirização da economia, aceleração tecnológica, fragilização do movimento sindical). Simultaneamente, as políticas macroeconómicas abandonaram a ideia do pleno emprego, substituindo-a por uma conceção liberal de empregabilidade que, ao relativizar o direito ao emprego, conduziu a uma tendência para a responsabilização individual (Lefresne, 2005).
É sabido que a globalização económica, a interpenetração dos mercados e a desregulamentação implicaram mudanças profundas no modo de operar das empresas. Nestes processos, os trabalhadores ficam mais vulneráveis às consequências da competição (interna e externa) e, por isso, particularmente sujeitos a ajustamentos contínuos e “flexibilidades” (Wright, 1997; Standing, 2011; Carmo e Cantante, 2015). A duração dos contratos, por exemplo, reduziu a tal ponto que a noção de “emprego para toda a vida” se diluiu (Sennett, 1998). Relatórios internacionais têm apontado para mudanças no modelo de emprego standard e com direitos laborais, para o aumento do trabalho precário e sem direitos garantidos, bem como para a elevada heterogeneidade no mercado de trabalho e mesmo situações contraditórias (coexistência de segmentos profissionais qualificados com outros menos qualificados) (ILO, 2015; OECD, 2016).
Contudo, a precariedade nas sociedades contemporâneas não é uma questão fácil de apreender, quer do ponto de vista concetual, quer estatístico (Kretsos, 2010; Standing, 2011). As dificuldades decorrem da própria natureza heterogénea do problema do trabalho precário. Este está relacionado com a instabilidade e insegurança contratual, com contratos temporários ou a tempo parcial involuntários, e ainda com profissões pouco qualificadas e baixos níveis salariais. Por outro lado, relaciona-se também com a falta de controlo (fiscalização) sobre as condições de trabalho, dificuldades de ação por parte das organizações sindicais (Costa et al., 2014; Estanque, 2014) e debilidades nos sistemas de proteção social (direitos e regimes de enquadramento). São recorrentes as descontinuidades (intermitências) nos percursos de participação no mercado de trabalho, entrelaçadas com períodos de desemprego/inatividade, por vezes de longa duração e desprotegidos. Além disso, enquanto condição vulnerável, a precariedade contamina outras esferas da vida, como os rendimentos (incapacidade de fazer face às despesas), o quotidiano (alterações de rotinas, sobreviver no presente) ou a projeção do futuro (dificuldade de formular planos, de desenhar projetos de vida), convergindo, cumulativamente, para dimensões subjetivas e existenciais (Carmo e Matias, 2019; Carmo et al., 2021).
No contexto europeu, a crise no emprego (especialmente entre os jovens) teve maior expressão nos países do sul da Europa que passaram por duros ajustamentos financeiros e medidas de austeridade na sequência da Grande Recessão (Gialis e Leontidou, 2016). No caso português, as medidas tomadas não contribuíram para gerar mais emprego, nem foram capazes de promover maior estabilidade profissional. Pelo contrário, ao não melhorarem os níveis de segurança contratual, o que fizeram foi aumentar a insegurança e a fragmentação do mercado de trabalho, aprofundando assimetrias sociais e territoriais (Caleiras, 2021; Caleiras e Carmo, 2021; Ferrão et al., no prelo).
Assim, quando nos referimos a trabalhadores precários temos como pano de fundo estas transformações, que implicaram o esboroar do modelo de pleno emprego com o trabalho a tempo inteiro, permanente, seguro e com proteção social associada, bem como a emergência de novas formas de trabalho, que alteraram profundamente trajetórias de vida e que se repercutem nas desigualdades sociais. Contudo, os trabalhadores precários constituem um segmento alargado, dependente de especificidades nacionais e do modo como as diversas arquiteturas normativas concebem a distinção entre emprego precário e não precário. Além disso é, em si mesmo, um universo bastante heterogéneo.12
Em Portugal estão identificadas várias modalidades de precarização que apontam para uma diversidade de situações contratuais instáveis, como contratos a termo, trabalho temporário em agências, contratos a tempo parcial involuntário, “falsos recibos verdes”, “falsos estagiários”, trabalhadores em regime de período experimental, entre outras situações (Soeiro, 2015). Neste artigo apontamos também o endurecimento das condições em que o trabalho é exercido, incluindo salário baixos, jornadas “flexíveis” e intensas, contra as quais escasseiam mecanismos institucionais de fiscalização e defesa dos trabalhadores, as dificuldades no acesso a uma proteção social, cada vez mais limitada contra despedimentos, doença ou desemprego, e ainda situações-limite de trabalho informal, completamente desprotegido.
Em suma, o trabalho precário está associado à desinserção de lógicas coletivas (Reis, 2018) e a experiências subjetivas, desfiliação social (Castel, 2000; Cingolani, 2005), “nova pobreza” laboral, desqualificação social (Paugam, 2013), ausência de proteção social ou perda de uma relação de emprego padrão (Hewison, 2016). Os próprios elementos de estruturação da experiência social são afetados na medida em que as consequências extravasam a esfera do trabalho, mergulhando os trabalhadores numa realidade totalizante, incrustada de privações, inseguranças, indefinições, instabilidades, ameaça constante de desemprego e empobrecimento (Caleiras, 2015; Carmo e Matias, 2019; Carmo e d’Avelar, 2020; Carmo et al., 2021).
1.1. Experiências e procedimentos metodológicos
Neste artigo, os trabalhadores são colocados no centro da discussão, remetendo para uma abordagem experiencial de proximidade ao objeto, no sentido de compreender o problema “a partir de dentro”: as dinâmicas produzidas pelos resultados conjugados de diferentes causas, distintos efeitos e diversos padrões de resposta. Uma abordagem deste tipo requer procedimentos metodológicos de natureza intensiva, que respeitem e captem a complexidade do problema. Os vínculos contratuais frágeis, baixas remunerações e fracos níveis de proteção social foram os critérios principais que presidiram à seleção da amostra, composta por 53 trabalhadores repartidos por diversos setores de atividade, segundo variáveis como território, idade, género, nível de escolaridade, nacionalidade, estado civil ou contexto de origem. Sem pretensões de representatividade ou exaustividade, a amostra foi intencionalmente contrastada e o perfil dos trabalhadores diversificado, por forma a dar conta da pluralidade de situações. Enquanto técnica de recolha de informação, através de entrevistas aprofundadas foi possível obter conhecimento experiencial junto de cada trabalhador e captar as suas subjetividades (Bourdieu, 2009; Bertaux 2020).
As entrevistas foram realizadas entre setembro de 2019 e dezembro de 2020, seguindo uma amostragem bola de neve. O trabalho de campo foi atravessado pelo eclodir imprevisto da pandemia e, consequentemente, a informação recolhida em dois contextos bastante distintos: antes e durante a pandemia. O cenário alterou-se radicalmente devido aos impactos imediatos da COVID-19 em termos de restrições à mobilidade e contactos sociais. Contudo, as entrevistas continuaram a ser realizadas online, recorrendo a aplicações e plataformas como Zoom, WhatsApp, Skype, e ainda por telefone, no que se pode designar como trabalho de campo à distância. As entrevistas, gravadas e transcritas, foram objeto de uma codificação sistemática com recurso ao MAXQDA, um software específico para a análise de dados qualitativos.
O guião inicial das entrevistas abrangia as seguintes dimensões de análise: 1) atividade profissional; 2) rendimento; 3) vida quotidiana e relacional; 4) posicionamento face à COVID-19; 5) enfrentamento e resposta; 6) proteção social; 7) representação das instituições, participação social e ação coletiva; 8) perceção do passado, presente e projeção do futuro. Com a emergência da pandemia, elaborou-se um guião adicional de maneira a contemplar os impactos da nova crise. No sentido de adaptar os instrumentos de pesquisa à dinâmica evolutiva da pandemia, foram selecionados 14 casos (entre os 53 entrevistados) para a constituição de um painel de follow-up, composto por oito homens e seis mulheres, com idades entre os 22 e os 47 anos, dos quais cinco imigrantes, ligados a setores tão diversos como o turismo e a construção civil, passando pela hotelaria, limpezas, indústria e plataformas digitais (Roque et al., 2022). A seleção considerou a diversidade de situações complexas e a disponibilidade dos entrevistados.
Todos foram acompanhados sistematicamente nos primeiros seis meses da pandemia, entre março e agosto de 2020, recorrendo a meios virtuais ou telefónicos para a realização de novas entrevistas e levantamento de informações sobre como estavam a ser afetados pelas diversas restrições associadas à crise. O acompanhamento permitiu conhecer a evolução dos quotidianos e experiências do confinamento, bem como as consequências sociais e económicas mais imediatas decorrentes da pandemia.
2. Nas margens do emprego: percursos fragmentados normalizados?
Os percursos de participação no mercado de trabalho são um campo de análise privilegiado para compreender as tensões que os trabalhadores enfrentam na sua relação com o emprego (Santelli, 2019). Uma análise de conteúdo transversal a 53 percursos, reconstituídos a partir das entrevistas realizadas, permitiu observar a diversidade de situações e identificar padrões com lógicas e sentidos próprios (Carmo et al., 2021).13
Partiu-se de um entendimento de percurso enquanto sequência diacrónica de atividades profissionais desenvolvidas pelos trabalhadores ao longo do tempo, relacionando-se dois eixos: rotatividade entre empregos e modalidades de contratação. O primeiro distribui os percursos de acordo com a frequência de mudanças de emprego (da menor à maior rotação); o segundo dispõe as modalidades contratuais segundo níveis de formalização (da maior formalidade contratual à informalidade). A partir deles construiu-se uma tipologia que identifica e caracteriza quatro perfis (cf. Quadro 1).14
Eixo da rotatividade | |||
Menor rotatividade | Maior rotatividade | ||
eixo contratual | Com enquadramento formal | Continuidade enquadrada | Rotatividade enquadrada |
Sem enquadramento formal (ou, existindo, é muito frágil) | Continuidade não enquadrada | Rotatividade não enquadrada |
Fonte: elaboração dos autores.
No primeiro perfil, a continuidade enquadrada, verifica-se uma certa estabilidade, condições contratuais relativamente seguras e com proteção social associada, correspondendo, em geral, a atividades relativamente especializadas, apesar de insuficientemente remuneradas. A integração e a progressão no mercado de trabalho permitem alguma capacidade de planeamento e confiança no futuro. Os trabalhadores conseguem desenvolver projetos de vida e revelam alguma confiança no futuro profissional e pessoal.
O segundo perfil, a rotatividade enquadrada, caracteriza-se pela instabilidade contratual, rotação frequente entre empregos, incluindo alterações na condição ou estatuto perante o trabalho, como sejam episódios de desemprego/inatividade ou mudanças no regime em que é exercida a profissão (trabalho dependente, trabalho autónomo). Corresponde, em geral, a empregos de baixa qualidade, trabalhos temporários, ocupações pouco qualificadas e mal remuneradas. A segurança no emprego é temporária, permitindo aceder a direitos sociais durante os períodos contratuais (patamares mínimos no montante e duração). A tendência para a rotatividade entre empregos surge com maior frequência em alguns setores ligados ao turismo (alojamento ou restauração), bem como nas limpezas, construção civil e call centers. Existem situações de carência material, algumas acentuadas, e as condições para planear o futuro são escassas ou nulas.
O terceiro perfil, a continuidade não enquadrada, caracteriza-se pela recorrência de trabalho por conta própria ou prestação de serviços, correspondente ao exercício de atividades sem vínculo de trabalho assalariado/subordinado com empregador. É patente a inconsistência entre estatuto profissional e realidade factual vivida nos casos de “falso” trabalho dependente (através de recibos verdes), uma vez que muitos desses trabalhadores estão por conta de outrem, mas sem usufruir desse estatuto, o que eleva o risco de “despedimento”, sempre presente, e limita o grau de proteção social a jusante. Em certo sentido, a ideia de continuidade é fictícia, visto que os laços laborais fracos tornam a insegurança permanente, a integração no mercado de trabalho incerta e a falta de alternativas restringe as perspetivas de um futuro melhor. Noutros casos de “verdadeiro” trabalho autónomo, mesmo quando o estatuto profissional é elevado, isso nem sempre garante estabilidade e/ou autonomia financeira, frustrando expectativas.
O último perfil, a rotatividade não enquadrada, é o mais problemático, pois caracteriza-se por situações em que a precariedade e a instabilidade tornam-se uma constante. A rotatividade acelerada entre atividades, muitas vezes desenvolvidas sem qualquer enquadramento contratual ou vínculo ao regime de segurança social, corresponde, em geral, a trabalhos ocasionais e voláteis, pouco qualificados, mas exigentes do ponto de vista físico. Este tipo de atividades, por necessidade ou estratégia, exercida na informalidade, é frequentemente acumulado e intercalado com períodos de desemprego/inatividade. Sem laço laboral, a insegurança é total no emprego, no desemprego e noutras eventualidades (doença, maternidade, reforma). A integração no mercado de trabalho é muito frágil, inviabiliza expectativas e pode gerar riscos sociais elevados em trabalhadores bastante vulnerabilizados, que juntam sucessivas desvantagens. As possibilidades de melhoria tendem a dissipar-se à medida que as condições precárias persistem e as consequências se tornam mais agudizadas (desqualificação, desfiliação, exclusão, empobrecimento, pobreza).
Os perfis, e suas variantes, assinalam as principais fragilidades e desigualdades entre diversos segmentos de trabalhadores, fazendo ressaltar aspetos relevantes. Desde logo, sobressaem ligações entre eles. As fronteiras não são claras e evidentes, emergindo frequentes sobreposições, interseções e interdependências. Os trabalhadores passam, assim, por várias fases ao longo do seu percurso, pelo que cada um pode ser categorizado em vários perfis.15
A pluriatividade, enquanto prática de diversas atividades remuneradas, desenvolvidas em simultâneo e ligadas a setores económicos, diferentes ou não, é uma realidade transversal.16 Implica trabalhar para vários empregadores numa situação de pluriemprego, obrigando os trabalhadores a serem “multifuncionais” e a “desdobrarem-se” por várias atividades ou empregos para complementar os seus rendimentos. Apesar do plurirrendimento, entendido como acumulação de (baixos) rendimentos provenientes das várias atividades desenvolvidas, a verdade é que as dificuldades financeiras permanecem.
A abordagem aos percursos coloca em relevo dinâmicas de instabilidade profissional e fragmentações, que se foram cristalizando sobretudo desde a crise financeira, e aponta para uma característica do mercado de trabalho à chegada da pandemia: a multiplicação, diversificação e singularização de percursos de precariedade, que tornam mais complexa não só a análise, como a implementação de políticas eficazes. As causas são estruturais e bastante palpáveis nos três últimos perfis. No perfil da rotatividade não enquadrada são ainda mais evidentes, pois destacam a multiplicidade de problemas de desregulação do mercado de trabalho e práticas empresariais abusivas, deixando pouca margem aos trabalhadores, que em alguns casos nem se reconhecem como sujeitos ativos do seu trabalho ou da sua própria existência.
3. Impactos e vulnerabilidades
No contexto da pandemia foram acompanhados os casos de 14 trabalhadores entre março e agosto de 2020, no sentido de verificar os efeitos e variações ocorridas nas suas vidas, com o foco em quatro dimensões principais: contratual, financeira, relacional e existencial. Pretendeu-se compreender i) como é que estes trabalhadores experienciaram a pandemia, ii) que impactos teve a situação pandémica nas práticas quotidianas, relacionais e profissionais, e iii) que estratégias de (sobre)vivência desenvolveram.
3.1. Dimensão contratual: exclusão laboral
As primeiras vítimas laborais da COVID-19 foram os “desempregados imediatos” (Caleiras e Carmo, 2020), que compreendem aqueles inseridos nos perfis da rotatividade enquadrada, continuidade não enquadrada e, sobretudo, da rotatividade não enquadrada. Situados em posições mais vulneráveis em função das condições contratuais débeis, instáveis ou simplesmente inexistentes, como os informais, foram dispensados logo na primeira vaga da pandemia, encontrando-se vários deles completamente desprotegidos, assim como outros que não tiveram os seus contratos renovados ou encerraram o seu pequeno negócio.
Júlio,17 motorista TVDE,18 é um exemplo. Exercia a sua atividade laboral através da figura do falso trabalhador independente, ou seja, por conta de outrem, limitando-se “a passar recibos pelos ganhos à comissão”. Com o confinamento, o exercício da atividade foi temporariamente suspenso e deixou de “poder trabalhar”. Ficou “desempregado, desamparado e sem subsídio de desemprego”. Mais tarde, contactado no âmbito do follow-up, Júlio permanecia profissionalmente “estagnado e confinado em casa da [sua] mãe”, com quem reside. Esta situação já tinha sucedido na sua vida, quando a crise da Troika o lançou no desemprego.
No final de 2014, a empresa [de publicidade] entrou em insolvência e acabou por falir. Vim para a rua em 2015. A empresa não aguentou a crise, a Troika acabou com ela. Estive no desemprego e depois, sem alternativa, tornei-me motorista da Uber em 2019. A seguir veio a pandemia, a atividade parou e fiquei sem rendimentos. (Júlio, 48 anos, motorista TVDE)
No contacto de maio de 2020, passara “a receber o apoio extraordinário aos trabalhadores independentes, 360 euros por mês, com efeitos desde março”, um apoio que o governo implementou na tentativa de cobrir situações de “desproteção social”.
3.2. Dimensão financeira: quebra de rendimentos
O impacto mais imediato da pandemia foi a perda do rendimento do trabalho, ainda que baixo e incerto. Jonas é um jovem de 22 anos, pluriativo, cujos rendimentos eram diversificados para fazer face às despesas. Era condutor de tuk-tuk em Lisboa, atividade principal, mas também realizava biscates como artista de rua (malabares) e apanhador sazonal de fruta, incluindo no estrangeiro, tendo já trabalhado no setor da construção e em feiras. Tratava-se de um trabalhador informal, “à jorna” que recebe “ao dia, em dinheiro”. A pandemia vulnerabilizou-o, privando-o deste modo de vida, de trabalhos essenciais para compor os seus rendimentos que, embora de baixo valor, eram suficientes para manter o seu “equilíbrio precário”. Com as restrições à mobilidade, e o impacto no turismo, Jonas ficou sem trabalho e a sua situação financeira agravou-se. Foi “forçado” a regressar e confinar “em casa dos pais”, o seu “porto de abrigo”, onde regressa sempre que passa por dificuldades.
É uma situação muito complicada mesmo! Recebia mais ou menos 20 euros, 30 euros por dia. Recebia diariamente em dinheiro e não um cheque ao final do mês. Agora não posso trabalhar em nada e tenho uma conta bancária que está a zeros. (Jonas, 22 anos, condutor de tuk-tuk)
Jonas não foi elegível para o apoio extraordinário aos trabalhadores independentes, nem teve qualquer outro apoio institucional. Viu-se confrontado com dificuldades financeiras que incidiram na sua qualidade de vida. Em agosto de 2020, o seu futuro permanecia incerto, colocando a hipótese de emigrar “mal isto acabe e as fronteiras reabram”. Os sentimentos de mal-estar agravaram-se face à incapacidade financeira para cumprir compromissos assumidos e à consequente dependência económica dos pais, o que remete para outro conjunto de impactos.
3.3. Dimensões relacional e existencial: impactos subjetivos
Os impactos de natureza subjetiva não podem ser compreendidos sem ter em conta as atitudes face ao trabalho, marcadas (ainda) por uma forte ética do trabalho. Os percursos analisados revelam que o trabalho, nas dimensões instrumental e expressiva, mantém uma centralidade subjetiva, independentemente da avaliação negativa das condições objetivas em que é exercido e remunerado, como no caso dos estafetas. A pandemia contribuiu para reforçar esse lugar central do trabalho, a sua importância, individual e coletiva, bem como a proteção social associada.
Estou sempre a falar de recibos verdes. Só tive um contrato [na vida]. Gostava de ter tido outras condições de trabalho. Estive muito tempo a trabalhar com uma companhia de teatro e achava que deveria ter um contrato de trabalho, que deveria ter direito agora a subsídio de desemprego. Pois, faço confinamento e quem é que me paga? Eu sou recibo verde! Se não vou trabalhar, não vou receber. (Gilberto, 49 anos, ator/encenador)
Gostaria de vir a receber reforma. Por isso é que estou a batalhar tanto para ter um contrato de trabalho! Por isso é que não quero trabalhar sem descontar! Depois do confinamento, o meu futuro ideal seria encontrar um trabalho que goste. Até pode ser nos tuk-tuk, ou outra coisa, mas onde me contratem e valorizem. (Catarina, 47 anos, condutora de tuk-tuk)
A rutura com a normalidade não pode deixar de ser vivida de forma intensa, agudizando-se com o “anormal” prolongamento da situação pandémica. Numa relação estreita com os impactos mais objetivos e materiais, o primeiro confinamento produziu elevados níveis de incerteza económica e as condições de insegurança quanto ao futuro geraram o adiamento ou inviabilização de projetos, frustrando expetativas. Alguns trabalhadores viram-se numa teia de vulnerabilidades: socioeconómicas (sem rendimento, com problemas habitacionais, de saúde mental, desinteresse pela participação social e cívica); políticas (individualismo, perda de poder sindical que os defenda); institucionais (falta ou atraso nas respostas das instituições que regulam o mundo do trabalho e permitem o acesso a um conjunto de direitos sociolaborais); e identitárias (sentimentos de rutura, fracasso e sofrimento). Quando cruzadas, estas vulnerabilidades colocam em risco a própria existência social.
Sinto que a vida passa muito rápido e que não consigo viver. Estou sempre à procura de mecanismos para sobreviver nesta selva. Não tenho estabilidade, não tenho segurança, não me deixam viver, não domino todos os momentos da minha vida, todo o meu tempo. Não me dá esperança de futuro. (Elvira, 44 anos, advogada)
À luz deste testemunho, entre outros, as consequências da crise não podem deixar de estar fortemente associadas ao agravamento de situações de risco social que, no limite, se tornam verdadeiros dramas pessoais e familiares (Caleiras, 2015; Carmo e Matias, 2019; Carmo e d’Avelar, 2020; Carmo et al., 2021).
4. Formas de enfrentamento
O follow-up e as entrevistas revelaram não só o modo como a pandemia afetou meios de subsistência ou alterou quotidianos relacionais e existenciais, mas também ilustram a forma como os trabalhadores precários fizeram face à situação. Nas diferentes formas de adaptação, a mobilização de saberes, as experiências múltiplas anteriores e as redes sociais foram essenciais na definição dos cursos de ação e enfrentamento de situações críticas.
As estratégias acionadas foram diversas. Restringir as despesas ao estritamente necessário foi a mais imediata das reações, numa lógica de reaproveitamento ou consumo racionado, levado a cabo sobretudo entre os mais velhos, que já vivenciaram contextos de privação. Às restrições associaram-se pequenas atividades, bastante voláteis, desenvolvidas, por exemplo, nos mercados virtuais da internet19 e que geraram algum dinheiro para a sobrevivência. Foi o caso de Jonas que, no segundo contacto de acompanhamento, nos disse ter começado a dar “aulas online de inglês”. Os apoios institucionais representaram outro recurso possível. Porém, nem todos os trabalhadores foram elegíveis, devido ao percurso profissional intermitente, irregular ou informal, que não garante proteção social, ou porque não reuniam um ou outro critério seletivo. Algumas pessoas lançaram mão a poupanças próprias, quando existiam; os mais jovens tenderam a recorrer à família, sobretudo aos pais, em busca de ajuda financeira. Júlio, por exemplo, apesar de mais velho, recorreu “ao habitual apoio da mãe, reformada e viúva”. Jonas também procurou o suporte dos pais. Outros buscaram nos amigos apoio material e emocional, ou mesmo com a intenção latente de “procurar qualquer biscate que eventualmente possa surgir”.
Estar preso em casa é psicologicamente bastante afetante para a família. Gosto muito dos meus pais. Estava tudo a funcionar muito bem enquanto eu estava a trabalhar o dia todo e nos víamos algumas vezes ao dia. De repente, a gente estar na mesma casa o tempo todo é bastante difícil. Mas tenho comida. Tenho dependido quase a 100% dos meus pais e até a comida da minha cadela tem dependido deles. (Jonas, 22 anos, condutor de tuk-tuk)
É uma grande indefinição sobre o futuro. Tinha contrato a tempo parcial e isso foi uma das razões que agora me complicou a vida, porque não tenho dias suficientes para o subsídio de desemprego. Neste momento estou mesmo dependente da minha mãe, aposentada. Ela tem uma reforma razoável e tem-me apoiado. (Herculano, 41 anos, condutor de tuk-tuk e freelancer cinematográfico)
As práticas de adaptação e enfrentamento não se manifestam apenas através dos esforços individuais ou familiares; também com esforços conjuntos, sob a forma de solidariedades mais alargadas ou ações coletivas. Isso foi verificado entre moradores do mesmo bairro e entre trabalhadores/colegas do mesmo setor de atividade.
Tive muitos amigos que foram dispensados. Eu continuei trabalhando nas obras para a empresa e, no fim de semana, numa obra que faço por conta própria. Chamei alguns amigos que foram dispensados para trabalhar comigo, porque estavam sem dinheiro. A um amigo mais próximo fiz compras no supermercado. Não foi muito, depois ele paga quando puder. (Adalberto, 33 anos, trabalhador da construção civil)
Elvira também referiu que uma parte dos seus colegas de profissão ficou sem rendimentos e teve mesmo de lidar com situações de “fome”.
Lancei um movimento e fiz uma comunicação nas redes sociais aos colegas: “Meus senhores, há colegas a passar fome. Eu quero que comecem a doar bens, quem pode. Bens alimentares, não queremos dinheiro. Temos colegas a passar fome, somos advogados, somos agentes de execução, somos solicitadores, ninguém nos ajuda, mas não vamos deixar os nossos pares ficarem mal”. Fiquei agradavelmente surpreendida, houve uma adesão grande. (Elvira, 44 anos, advogada)
A suspensão da vida social e económica habitual provocou um aumento da instabilidade e da vulnerabilidade social. Vários trabalhadores incluídos sobretudo no perfil de rotatividade não enquadrada não se sentiram apenas mais desprotegidos, ficaram efetivamente mais desprotegidos, o que desencadeou entre eles a proliferação de sentimentos de insegurança e medo de vária ordem. Alguns poderão ser propiciadores de anomia social ou de processos de desligamento e desfiliação social (Castel, 2000). Desligamento no sentido em que os quadros de interação social cessaram de se desenvolver nos contextos habituais de sociabilidade. Os laços físicos com o outro próximo foram-se perdendo e isso funcionou, por si só, como fator desestruturador. A desfiliação pode acontecer quando se aliam ao isolamento outras fragilidades sociais e económicas vindas de trás.
Rita, imigrante, trabalhava em regime de recibos verdes na limpeza de apartamentos de alojamento local Airbnb.20 O confinamento levou ao cancelamento das reservas, colocando-a numa situação de vulnerabilidade extrema.
Não imaginava que tudo iria desmoronar-se. No final de fevereiro [de 2020] já tínhamos cancelamentos de reservas com a justificativa da COVID-19. O governo decretou o Estado de Emergência, então parou tudo. Não surgiu mais trabalho. Era recibo verde, aí não tem subsídio de desemprego. E solicitei esse apoio [Apoio Extraordinário ao Rendimento dos Trabalhadores]. Não tenho expetativa de receber e não sei como será. (Rita, 47 anos, empregada de limpeza)
No entanto, a maioria dos trabalhadores acompanhados recusa assumir-se como pobre, apesar das grandes dificuldades financeiras. O que prevalece é uma visão de pobreza confinada à pobreza extrema: não ter “como pagar as contas”, “um teto para morar”, “uma sopa para comer”, “saúde para trabalhar”.
Repare uma coisa, eu não sou pobre no sentido em que acabei de pagar as minhas contas todas, mas não faço ideia do que é que me vai acontecer para a frente. (Catarina, 47 anos, condutora de tuk-tuk)
Conclusão
Ao longo do artigo mostrámos como vários trabalhadores experienciaram os primeiros meses da pandemia. A análise focou-se nas categorias mais vulneráveis, ou seja, nos trabalhadores precários e desprotegidos. A vulnerabilidade, vinda de trás, explica-se quer pela natureza frágil dos percursos de participação no mercado de trabalho, quer pela falta de oportunidades de empregos de qualidade, justamente remunerados e com proteção social. Os mais frágeis foram os que mais sofreram; a pandemia revelou-o, reforçando as desigualdades, mas também realçando a importância do papel e funções do Estado social.
O confinamento teve impactos profundos na vida destes trabalhadores. Muitos, sem vínculos contratuais fortes, perderam o emprego, ou semiemprego, de imediato, apesar das medidas significativas de apoio à manutenção dos postos de trabalho. Experimentaram uma quebra quase total e repentina nos rendimentos habituais, por vezes provenientes da pluriatividade, crucial na recomposição dos baixos rendimentos. Além de se encontrarem desprotegidos nas margens do emprego, ficaram, nos meses iniciais da pandemia, também completamente desprotegidos no desemprego e sem acesso a apoios institucionais, que viriam a surgir posteriormente, como o Apoio Extraordinário ao Rendimento dos Trabalhadores. Mas os impactos não podem ser reduzidos a dimensões materiais, como a perda do emprego, de rendimento e de redução do padrão de consumo, pois outras esferas da vida, menos visíveis, foram igualmente “contaminadas”. Uma abordagem compreensiva e dinâmica bem como o acompanhamento de situações concretas permitiram trazê-las à luz do dia: o isolamento, um certo deslaçamento social (não inteiramente compensado pelos meios virtuais e digitais), o sofrimento, as alterações no quotidiano, que afetaram dimensões subjetivas, relacionais e existenciais.
Apesar das dificuldades, estes trabalhadores, por vezes esquecidos e invisibilizados (Caleiras et al., 2022), tiveram de encontrar formas de enfrentar todo um conjunto de problemas. Apelando a saberes e experiências, alguns procuraram alternativas de rendimento nos mercados virtuais da internet, outros continuaram a trabalhar em contextos de risco de contaminação; alguns foram elegíveis para apoios institucionais, outros não; poucos recorreram a poupanças próprias, porque a maioria não as possuía. Em geral, todos puderam contar com familiares e amigos, ainda que à distância. As práticas de enfrentamento manifestaram-se ainda através de esforços coletivos e solidariedades mais alargadas, como a entreajuda de vizinhos ou colegas de trabalho.
Este artigo remete para uma reflexão mais ampla sobre o processo de precarização do trabalho, as dinâmicas institucionais em que ele se desenvolve e cristaliza, e os riscos que comporta, caso não se adotem políticas adequadas. Uma sociedade decente não pode ser tolerante com a extensão da instabilidade dos vínculos laborais, baixos salários, processos de vulnerabilização e desqualificação, empregos ou semiempregos sem perspetiva de crescimento profissional e pessoal, baixos níveis de proteção social e de qualidade de vida.
Todavia, ao contrário da crise financeira anterior, esta crise destacou o papel positivo que as políticas públicas podem e devem desempenhar, bem como o reconhecimento do papel necessário do Estado face à verdadeira extensão da pandemia, ainda por descortinar inteiramente, e ao seu impacto desigual. É ainda cedo para concluir como poderão algumas medidas emergenciais had hoc ser transformadas em medidas estruturais e mais adaptadas a todas as categorias de trabalhadores. Mas um caminho possível, entre vários, poderá passar por colocar estas experiências no centro da conceção e implementação das políticas e programas específicos, em conjunto com outras estratégias económicas, reconhecendo desvantagens, desigualdades e variações. Se as políticas não forem adaptadas à diversidade de situações - tal como aquelas demonstradas neste artigo -, as medidas tipo “tamanho único” continuarão a deixar para trás os mais desfavorecidos.