Introdução
A língua portuguesa foi valorizada pelas lideranças da luta armada de libertação contra a dominação colonial que formavam a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), como um veículo para a construção da unidade nacional no contexto de diversidade linguística que caracteriza Moçambique (Firmino, s.d.; Ponso, 2016; Abdula, 2017). Gregório Firmino esclarece:
[…] para compreender a escolha do português em Moçambique é importante perceber que, ao mesmo tempo que o português era ideologicamente um instrumento colonial, surgia, no seio do movimento nacionalista, uma ideologia linguística oposta que conferia à mesma língua um novo significado simbólico. Por outras palavras, o português estava, de facto, a ser concebido como um instrumento da luta anticolonial. (Firmino, s.d.: 9)
Dentro deste espírito, Paula Medeiros (2005) explica que a língua portuguesa, por um lado, apresenta-se como a língua do colonizador, mas, por outro, é considerada um elemento de identidade nacional e política nas ex-colónias sendo, por exemplo, usada na escrita de ficção, ensaios e poesia para apresentar e representar as nuances culturais.
Desta forma, o presente estudo visa debater o uso da língua portuguesa no movimento hip-hop em Moçambique, com destaque para a música rap (rhythm and poetry) como elemento de unidade nacional e comunicação oficial por um lado e, por outro, como elemento de protesto contra os resíduos do colonialismo que persistem na sociedade moçambicana, bem como veículo de contestação e de denúncia das fragilidades existentes na consecução de um Estado de direito democrático em Moçambique. Como exemplo, invoca-se o “rapper moçambicano e MC, Azagaia que conseguiu trazer para o espaço público, através dos seus ritmos e letras, visões alternativas sobre o passado de Moçambique e sobre a política contemporânea. Azagaia é valorizado […] como um líder de opinião e intérprete de conceitos do povo” (Rantala, 2014), e por isso se inclui neste estudo uma análise dos moçambicanismos (Firmino, s.d.) incorporados na língua portuguesa como um elemento de apropriação e adaptação desta língua à cultura e sociedade moçambicanas - fator que fundamenta a existência do português de Moçambique (Timbane, 2017). Para o efeito, o estudo é guiado metodologicamente pela análise de conteúdo de quatro músicas de Azagaia.
Estas músicas versam os diferentes momentos políticos, sociais e económicos que Moçambique enfrenta desde a sua independência, mostrando as fragilidades por parte do Estado em proteger e garantir o exercício dos direitos humanos e políticos dos cidadãos. Esta realidade é observada por Boaventura de Sousa Santos (2019: 13) quando constata que “[o]s artistas do hip-hop são hoje, a vanguarda da denúncia […] [da] sociologia das ausências e, ao fazê-lo, dão testemunho da criatividade, da resistência e da inovação das práticas protagonizadas pelos excluídos, marginalizados e discriminados”. Neste sentido, a análise de conteúdo das letras das músicas selecionadas possibilitou gerar duas categorias: (1) o rap como um espaço de ação promotor de um projeto alternativo de governação em Moçambique, e (2) o rap como veículo de vocalização da memória coletiva sobre a injustiça social no mesmo país. Estas categorias de análise estão alicerçadas no debate teórico em torno do poder político, unificador e contestador do português de Moçambique, bem como no rap como lugar de construção e representação de memória coletiva.
1. A investigação
A metodologia deste estudo apoia-se em pesquisa documental e análise de conteúdo das letras das músicas “MIR Música de intervenção rápida” (single de 2013), “Declaração de paz” (single de 2014), “Só dever” (integrado no EP de 2019) e “Ai de nós” (single de 2021) da autoria de Azagaia. Segundo Silva et al. (2005: 70),
[…] a análise de conteúdo se refere a uma decomposição do discurso e identificação de unidades de análise ou grupos de representações para uma categorização dos fenômenos, a partir da qual se torna possível uma reconstrução de significados que apresentem uma compreensão mais aprofundada da interpretação de realidade do grupo estudado.
Laurence Bardin (2016: 26-27) esclarece que a análise de conteúdo qualitativa se refere à interpretação e à inferência de significados que a mensagem ou conteúdo pretende disseminar, focando-se nos sujeitos que usam essa língua e os discursos possíveis de serem produzidos a partir daí, dentro de um determinado contexto social e histórico (ibidem: 49).
Posto isto, o presente estudo faz a análise de conteúdo de excertos de quatro letras de músicas do rapper moçambicano Azagaia, para daí extrair e analisar as principais temáticas, os seus contextos sociais, políticos, económicos e históricos, a memória coletiva que se (re)cria, os elementos identitários do movimento hip-hop específicos da cultura moçambicana e as particularidades da língua portuguesa falada em Moçambique - moçambicanismos (Firmino, s.d.) ou do português de Moçambique (Timbane, 2017). Este exercício permitiu deduzir que o português de Moçambique é ao mesmo tempo a língua que unifica a nação moçambicana e a língua com a qual se invoca a descolonização do sistema de governação no país. A escolha destas músicas deve-se ao facto de representarem e abordarem elementos sociais, políticos e económicos marcantes da história recente de Moçambique e, portanto, servem de recurso exemplificativo para construir um sentido de memória coletiva. Para o efeito, são analisados excertos dos conteúdos das músicas em estudo para se proceder à inferência dos possíveis significados temáticos dos mesmos.
2. O lugar da língua portuguesa em Moçambique
De modo geral, o colonialismo português foi marcado pela necessidade de fixação de uma ideologia que legitimasse a superioridade da metrópole e da administração colonial em relação às suas colónias. Esse desiderato seria possível, nomeadamente, através da imposição da língua portuguesa, capaz de estabelecer uma hierarquia social fundamentada pelo domínio da língua do colono e, por via disso, permitir acesso a espaços de poder económico e político, no qual o nativo de Moçambique era colocado num patamar de assimilado, gerando uma burguesia negra.1 Para Medeiros (2005: 4), a língua europeia (colonial) representou e representa um lugar de expansão e legitimação ideológica que conduz à criação ou identificação de “relações de poder e a opções culturais”. Assim, o regime colonial expande a possibilidade de acesso à educação através do ensino da língua (e, por via disso, à imposição da cultura) portuguesa para um pequeno grupo de nativos africanos (Firmino, s.d.). Letícia Ponso (2016) acrescenta que o domínio da língua portuguesa representava a inserção do africano no mundo da civilização. Todavia, Maria Paula Meneses (2010) explica que o conceito de civilização estava ligado a uma perceção de que os povos nativos viviam num estado de barbárie, sem possuírem elementos socioculturais que lhes possibilitasse gerar uma ordem social que conduzisse ao seu progresso. Alexandre Timbane (2017) refere ainda que a língua portuguesa foi imposta como meio de domínio colonial, desvalorizando não apenas as línguas autóctones, mas igualmente a forma como os nativos falam a língua portuguesa. Para este autor,
Os colonizadores portugueses utilizavam a língua como meio de dominação, pois excluíam assim as línguas africanas em todas as esferas do poder [...]. As LB [línguas bantu] faladas em Moçambique e em Angola eram chamadas preconceituosamente por pretoguês, língua do cão, landim, dialeto, língua dos pretos, etc. (ibidem: 22).
Na década de 1960, momento de consolidação e intensificação do movimento de libertação em Moçambique representado pela FRELIMO, a língua portuguesa desempenhou um recurso de unificação do discurso e ideologia anti-imperialista. Em “A criatividade da língua portuguesa: estudo de moçambicanismos no português de Moçambique” (2017), Rajabo Abdula considera que a opção pela língua portuguesa como recurso de resistência ao colonialismo em Moçambique se deveu à complexidade de línguas destacada por vários apoiantes do movimento:
Vários são os argumentos dados para esta decisão, incluindo o de que esta seria uma língua “neutra” para servir aos objetivos da luta, sobretudo o de que banindo as outras línguas moçambicanas nas comunicações entre os guerrilheiros combater-se-ia e materializar-se-ia o espírito da unidade nacional quando todos os cidadãos falassem uma só língua. (Abdula, 2017: 81-82)
A opção pela língua portuguesa como um recurso político nesta fase afigura-se compreensível na ideologia de unidade nacional defendida por Eduardo Mondlane2, dado que a diversidade linguística de Moçambique constituiria um entrave à mútua compreensão e galvanização de um espírito nacionalista que estaria fragilizado pelo tribalismo (Ponso, 2016).3 Timbane (2017: 22) salienta que “[i]sso significa que a LP [língua portuguesa] passou a ser instrumento de comunicação entre os militares durante a luta contra o colonialismo, uma vez que os militares eram provenientes de várias etnias e falavam várias LB [línguas bantu]”. Firmino (s.d.: 9) confirma que
Esta decisão politicamente estratégica assinalou a primeira apropriação do português e a consequente expurgação das suas conotações coloniais, pois esta língua, que era antes vista pelos moçambicanos como língua colonial, estava agora a servir propósitos anticoloniais.
Após a independência, o governo moçambicano, liderado por Samora Machel, expandiu o acesso à educação em língua portuguesa, preservando assim o uso do português como língua oficial (Firmino, s.d.; Ponso, 2016; Abdula, 2017). Nesta fase, a FRELIMO, guiada pelo princípio de partido único, esforçou-se por impedir que o regionalismo e o tribalismo ressurgissem ao investir na massificação da língua portuguesa, ao mesmo tempo que subvalorizou o uso das línguas nativas, percebidas como potencial veículo de segregação entre o povo moçambicano. Francisco Mendonça Júnior (2021a) explica:
Isso significava novamente apagar os traços culturais locais e a nova nação moçambicana teria que adotar o português como única língua oficial, com o intuito de manter a unidade do país. Por um lado, a política do “homem novo” representou uma vergonha sentida pelos jovens moçambicanos em relação às línguas locais, em uma continuidade ao que já acontecera com a política assimilacionista.
Paralelamente, a língua portuguesa servia de instrumento de participação de Moçambique em espaços políticos, económicos, científicos, sociais e culturais a nível regional, continental e global. Esta realidade foi explicitada pelo antigo Diretor-executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Domingos Pereira4, na comunicação intitulada “O conceito de lusofonia e a cooperação na promoção e difusão da língua portuguesa”, onde afirma que a lusofonia se estabelece como uma plataforma que liga diversas culturas através de, entre outros, uma língua comum que se quer ao mesmo tempo global e local (Pereira, 2008).
Cármen Maciel (2010) defende que o que se pretende é que a lusofonia seja um espaço de construção de uma identidade coletiva, considerando a pluralidade de identidades políticas, económicas, sociais e culturais que compõem a CPLP, e fazendo do português uma língua de ninguém. No âmbito deste desiderato pela construção de uma identidade coletiva, Lurdes Macedo (2015) aborda o projeto da lusofonia como um espaço de construção de narrativas identitárias que, usando a língua portuguesa, formaliza a memória coletiva assente na história colonial dos países membros. No processo de desconstrução do discurso pós-colonial também se edificam possibilidades de construção de identidades que versam sobre as façanhas dos movimentos de libertação, constituindo-se uma memória coletiva cujo denominador comum é o colonialismo e a vitória sobre o mesmo, o que levou à afirmação dos países africanos subjugados por Portugal.
Consequentemente, de acordo com Firmino (s.d.), a língua portuguesa passou a ser valorizada como um bem comum que se configura na memória coletiva dos moçambicanos, uma das conquistas alcançadas através da luta a que se entregaram para obter a sua soberania. Diante disto, a língua portuguesa possibilitou, e continua a possibilitar, a partilha dessa memória que se quer coletiva, unificadora e que se tornou herança do povo moçambicano. Abdula (2017) refere que a língua portuguesa em Moçambique foi apropriada e transformada pela incorporação de elementos culturais e linguísticos que tornam o português falado em Moçambique diferente e único, uma realidade que Firmino designa por “nativização do português” (s.d.: 12). A língua portuguesa constitui-se assim num veículo de transmissão de cultura bem como de produção de símbolos e sentidos culturais exclusivamente moçambicanos.
Teresa Alves (2018) reforça o debate sobre o papel da língua portuguesa como sendo o de unificar mas também de protestar face à tendência desta para dominar, elitizar e excluir aquelas narrativas assentes nas línguas autóctones. Isto mostra, uma vez mais, a dicotomia entre a língua do imperialismo colonial português, que ora se quer nativizada, apropriada e herdada - e através da qual o orgulho nacional moçambicano se configura na memória coletiva -, ora se é deixada “contaminar” pelas línguas autóctones.
3. O hip-hop como um espaço de (re)construção de identidade e de uma narrativa coletiva
O movimento hip-hop é entendido como um veículo artístico de manifestação cultural, social e político dos grupos juvenis racial e socialmente marginalizados na sociedade. Este movimento nasceu nos finais da década de 1960 na periferia de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América (EUA), onde se aglomeravam jovens negros e latinos. A pobreza, a falta de oportunidades para ascensão social, a discriminação racial e social, o uso de drogas, a criminalidade e a violência urbana caracterizam o ambiente que circundava estes jovens da periferia urbana norte-americana. O hip-hop insere-se no contexto de lutas pelos direitos civis nos EUA e surge como um espaço de produção e expressão artística que, usando a dança (breakdance), a poesia rítmica (rhythm and poetry - rap), os graffiti, o disc jockey (DJ) e o mestre de cerimónias (MC), promove um movimento de resistência, de crítica social e um discurso alternativo sobre as vivências dos jovens socialmente marginalizados nas periferias urbanas dos EUA (Santos, 2017).
Clotildes Cazé e Adriana Oliveira (2008) entendem que o hip-hop representa um espaço reconhecido pelos jovens - que, por várias razões, se encontram à margem da sociedade - para reivindicarem e colocarem as suas agendas na esfera pública, dando-lhes “visibilidade”, tornando o hip-hop “uma ação política que acontece a partir do corpo que dança, desenha, pensa, fala, reflete, sobre os problemas que reverberam nas estruturas sociais em que estes corpos co-habitam” (Cazé e Oliveira, 2008: 1). Por sua vez, Cristina Fernandes (2010) aborda o hip-hop como um movimento que assenta na liberdade de expressão e materializa, por essa via, uma filosofia de vida na qual os seus integrantes protestam contra a exclusão e injustiça sociais e propõem alternativas ao statu quo: “Assim, pintar comboios [graffiti] tornou-se um ritual através do qual mais do que deixar uma assinatura, demarcar um estilo próprio, se contesta a ordem social, se contrariam leis num gesto de afirmação que reivindica liberdade” (ibidem: 38).
Para além de ser um movimento social e político, o hip-hop é também um movimento cultural na medida em que agrega manifestações artísticas em que gravitam valores e filosofias de vida comuns que, como descrito, visam dar visibilidade a grupos de jovens socialmente marginalizados. Núbia Santos (2012) e Geysa Vidon (2014) estudam o papel do hip-hop no processo pedagógico, ao analisarem de que forma a cultura hip-hop pode contribuir para a educação e construção de um espírito crítico nos jovens. Enquanto Vidon (2014: 20) insere o hip-hop como movimento cultural numa função de “pedagogia social”, Santos (2012: 16) descreve as possibilidades que o hip-hop cria para os jovens e adolescentes como “autores-cidadãos” capazes de usar da criatividade artística para gerar um sentimento de participação social, “auto-realização” e “‘solidariedade’ coletiva”. Em resumo, e concordando com Maria Santos (2017: 134), o rap é um “processo educativo alternativo”, que desenvolve o sentimento de integração e de pertença.
De forma particular, a música rap “é a Poesia moderna, adaptada às grandes metrópoles, aos subúrbios e [às] doenças urbano-depressivas. […] [É] uma poesia mais próxima das pessoas e do real” (Valete apudFernandes, 2010: 41-42). Como estilo musical de expressão individualizada mas multicultural, visto que é parte do movimento hip-hop, o rap admite “mestiçagem cultural”, com a integração de várias possibilidades culturais, tornando-o “a expressão musical-verbal da cultura hip-hop” (Cazé e Oliveira, 2008). O rap nasce do uso de recursos tecnológicos como o disco e os aparelhos de mistura de som. Neste contexto, conseguiu conquistar espaço em várias e diversas realidades urbanas e periféricas do mundo.
4. O rap como meio de (re)construção da memória coletiva
A citação de Santos (2017: 87) - “Em outras palavras, sem Hip-Hop não há rap, assim como sem rap não há Hip-Hop” - resume o contexto do movimento hip-hop moçambicano: o rap como uma das artes mais significativas desse movimento. Este cenário torna-se evidente, por exemplo, pela tendência da produção científica (Rantala, 2014, 2019; Araldi, 2016; Miambo e Cossa, 2019; Sitoe, 2019; Bussotti e Chinguai, 2020; Mendonça Júnior, 2021a, 2021b, 2022) valorizar substancialmente o rap, em comparação com outros elementos artísticos do movimento hip-hop, como os graffiti, o breakdance e os MC. O trabalho de Tirso Sitoe (2012) é aqui destacado porque analisa a importância dos graffiti entre membros de gangues juvenis em Maputo como ferramenta de autoexpressão, demarcação de território e afirmação de identidade. Igualmente, os projetos Maputo Street Art e Beira Street Art - que atuam nos bairros periféricos das cidades de Maputo e da Beira - e a iniciativa do Museu Mafalala5, em Maputo - que usa os graffiti para homenagear personalidades que viveram no bairro, como José Craveirinha, Noémia de Sousa, Eusébio, entre outros -, exemplificam a forma como a pintura de rua se tem expandido em Moçambique.
O rap foi trazido pelos moçambicanos regressados da Alemanha e também pelo estabelecimento e expansão dos média televisivos e radiofónicos em meados da década de 1980 e inícios da de 1990, que difundiam a música rap produzida nos EUA. O rap em Moçambique começou nos grandes centros urbanos das cidades de Maputo e da Beira envolvendo jovens com acesso à educação e detentores de algum poder económico. O rap nasce assim neste país dentro de um contexto elitista, de jovens não socialmente excluídos e com acesso a pequenos meios de produção e divulgação musical, ainda que precários (Araldi, 2016; Sitoe, 2018; Mendonça Júnior, 2020). À semelhança do contexto norte-americano, o rap em Moçambique é divulgado em programas radiofónicos juvenis, o que contribuiu para a divulgação do movimento e para o debate sobre os objetivos do mesmo. Mendonça Júnior (2020: 535) clarifica que “essa dimensão foi ampliada com a criação do programa Hip Hop Time, que começou a ser transmitido em 1995, na Rádio Cidade, uma emissora de rádio pública de Maputo, ligada à Rádio Moçambique”. Na altura da gravação dos primeiros álbuns de música rap no país, em 1997, existia a tendência para ser uma mera imitação do estilo norte-americano, sendo utilizada a língua inglesa, mas já com uma tímida introdução da língua portuguesa. Assim se iniciam, em finais da década de 1990, os primeiros projetos que incluíam elementos da cultura moçambicana no movimento hip-hop. Um desses projetos é o Dinastia Bantu, grupo fundado por dois músicos: Azagaia (que em português significa “lança”) e Escudo. Como explica Jéssica Araldi (2016), este projeto era uma resposta ao cenário de imitação do rap norte-americano que se vivia em Moçambique. Os nomes tanto do grupo, Dinastia Bantu, como os dos seus integrantes simbolizavam essa rutura e o início de um processo de adaptação do rap à cultura, significações e realidade moçambicanas. Mendonça Júnior (2020: 543) indica que o primeiro e único álbum do grupo, lançado em 2005, intitula-se Siavuma (em língua changana) significando “assim seja” em português. Araldi explica a estratégia dos elementos do grupo:
Assim, segundo o próprio rapper [Azagaia], ao adotarem o nome Dinastia Bantu para seu grupo, com nomes de armas de guerra desse povo, o objetivo da dupla era deixar clara a ideia de que o rap que faziam não era uma simples importação do modelo norte-americano, mas a apropriação desse gênero, dessa forma de fazer música, voltado para a sua localização geoistórica, sua cultura, através da produção de um discurso situado, voltado para a comunidade a qual pertencem. (2016: 18)
Os estudos do movimento hip-hop em Moçambique têm feito menção ao papel de Azagaia na promoção do rap de intervenção social. Depois de iniciar a carreira a solo em 2007 com o lançamento do seu álbum Babalaze, seguido de Cubaliwa em 2013 e do EP Só dever em 2019, tornou-se referência no rap e no movimento hip-hop por veicular nos textos das suas músicas críticas severas ao governo moçambicano, o que lhe valeu o título de “rapper do povo”.6 A título de exemplo, Sitoe (2018) toma Azagaia como estudo de caso para abordar o papel do rap na construção de espaços alternativos de participação política e exercício da cidadania em Moçambique. O autor explica que os jovens tendem a recorrer ao rap como um espaço de (re)construção de identidades através do qual, usando os elementos “tempo” e “discurso”, criam e recriam a memória coletiva das vivências sociais, culturais e políticas desse momento histórico que os marca como juventude para “melhor compreender a forma como as identidades político-partidárias são forjadas pelos músicos e seu público, como espaço de referência para pensarmos a pluralidade de representações em torno das distribuições desiguais de poder em Moçambique” (ibidem: 139). Ao debruçar-se sobre “tempo” e “discurso” como elementos fundamentais para a construção da memória coletiva, Sitoe abre espaço para o debate sobre o conceito de memória coletiva e a sua relação com o grupo social que representa.
O papel do rap como meio de (re)construção da memória coletiva em Moçambique e a forma como as/os rappers constroem o sentido de pertença e identidade coletiva através do resgate e valorização das línguas bantu nas suas músicas - e das personalidades nacionais percebidas dentro do movimento hip-hop como tendo deixado um legado revolucionário -, mereceram já a atenção de vários investigadores. Por exemplo, Elísio Miambo e Emílio Cossa (2019) refletem sobre a forma como o legado do poeta moçambicano José Craveirinha (1922-2003) inspirou as produções musicais do rapper Azagaia. De acordo com os mesmos, o trabalho de Craveirinha gravita em torno do seu sentido de pertença “através do recurso da nomeação dos significantes africanos e dos mecanismos de inserção das línguas orais na escrita, estabelecendo, assim, diálogos entre a escrita e os referentes culturais” (Miambo e Cossa, 2019: 29). De acordo com estes autores, Azagaia inspirou-se em Craveirinha para expressar o seu sentido de pertença recorrendo, também, ao uso das línguas nativas para, por exemplo, dar títulos aos seus três álbuns - o primeiro dos quais enquanto integrante do grupo Dinastia Bantu, designado Siavuma (2005) “cujo significado remete-nos para uma reza típica da religião tradicional bantu em que após uma afirmação/sentença do ‘líder’ religioso, aos restantes participantes cabe dizer ‘sia vuma’ em jeito de consentimento cuja expressão correspondente em português seria ‘assim seja’” (Miambo e Cossa, 2019: 30). O primeiro álbum a solo de Azagaia intitula-se Babalaze (2007), vocábulo que vem “do Xironga, língua falada em Maputo […] [e] cujo significado remete à ressaca e uma clara alusão ao livro Babalaze das Hienas (1997), de José Craveirinha” (ibidem). Por fim, os autores mencionam o último álbum do artista, intitulado Cubaliwa (2013), “do Xisena, língua falada em algumas províncias do centro de Moçambique e que significa ‘nascimento’” (ibidem).
Ainda nesta abordagem que considera as línguas bantu como um recurso importante na (re)construção, resgate e afirmação identitária moçambicana, destaca-se o trabalho de Mendonça Júnior (2021b), que reflete sobre o papel do rap como uma forma de ativismo cultural que visa, entre outros, combater o “apagamento cultural” das línguas nativas moçambicanas. O autor explica que este “apagamento cultural” se iniciou, como já foi referido, com a imposição do português como língua civilizadora nas antigas colónias portuguesas, nas quais todas as manifestações culturais, incluindo a língua nativa, eram consideradas inferiores, o que sustentou a construção de uma narrativa através da qual as próprias populações nativas deveriam considerar estas manifestações culturais como vergonhosas. Mendonça Júnior explica que no período pós-independência, sob a orientação de um regime socialista em Moçambique, a língua portuguesa não foi apenas mantida e massificada, mas também sobrevalorizada em comparação com as línguas nativas com o objetivo de garantir a unidade nacional e combater o tribalismo. Tendo sido inspirado no percurso artístico de uma das mais renomadas rappers moçambicanas, Iveth Mafundza, Mendonça Júnior veicula reflexões importantes trazidas pela artista sobre a sua visão do rap enquanto espaço de recuperação dos valores culturais sistematicamente marginalizados ao longo dos períodos colonial e pós-independência. O autor conclui:
Iveth salienta que a manutenção e o resgate de bens culturais locais significam resistência a um histórico de apagamento desses traços culturais, tidos recorrentemente como sinais de atraso, mas que, para ela, mostram uma riqueza de conhecimento de si e de toda a população moçambicana. (2021b)
Janne Rantala (2014) defende que Azagaia teve um papel fundamental ao refletir sobre e propor alternativas para a “política contemporânea” de Moçambique, contribuindo para o repensar do legado histórico moçambicano. O autor entende que o rap de Azagaia foi crucial para difundir mensagens que promovessem um debate crítico sobre o ambiente sociopolítico que marcara as décadas anteriores em Moçambique, as quais também possibilitavam um sentido de horizontalidade no acesso ao pensamento crítico entre as camadas sociais menos letradas no país. Rantala (ibidem) coloca a sua perspetiva da seguinte maneira:
As letras de Azagaia retractam os momentos difíceis e o passado recente de Moçambique e, desta forma, elas reflectem a política contemporânea. A posição de Azagaia neste contexto é clara e militante. Ele apoiou abertamente as manifestações populares de 2008 e 2010, e nos meios de comunicação a sua música era tida como um símbolo da revolta […]. Num contexto em que apenas cerca de 47,8% da população é alfabetizada […], [faz sentido] que a música tenha tido maior amplitude junto do público.
Rantala (2019) reflete também sobre o resgate identitário, a (re)construção da memória coletiva e a participação política dos jovens através do rap. Assim, à semelhança da proposta de debate trazida por Miambo e Cossa (2019), o autor inspira-se nos conteúdos das músicas rap de diferentes artistas moçambicanos para evidenciar a forma como o rap tem procurado inspiração nos legados revolucionários de figuras políticas e de líderes de opinião já desaparecidos para resgatar ou propor novos ideais para as políticas contemporâneas de governação, de forma a que se aproximem de um sentido democrático assente na justiça e no bem-estar social. Rantala (2019) desenvolve a sua pesquisa examinando a forma como a memória pública pode e está a ser (re)construída em Moçambique com recurso ao reposicionamento (no sentido de que recordar é viver) e à exaltação dos feitos e ideais de líderes políticos e de opinião falecidos em circunstâncias pouco claras - como Eduardo Mondlane (1920-1969) e o jornalista Carlos Cardoso (1951-2000) -, e de outras figuras pertencentes aos três partidos com assento no parlamento moçambicano, designadamente: Uria Simango (1926-1977?)7 e Samora Machel (1933-1986), da FRELIMO; André Matsaingaissa (1950-1979), da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO); e Mahamudo Amurane (1973-2017), do Movimento Democrático de Moçambique (MDM).
O rap surge assim como um espaço de desenvolvimento de possibilidades de (re)construção da história na qual a heroicidade se baseia mais no ideal e no pensamento alternativos face à realidade política contemporânea do que na forma como a história destacou ou apagou o legado de políticos e líderes de opinião que foram fiéis aos ideais dos seus partidos políticos (ou do regime de governação ainda hoje em vigor) ou que deles divergiram. Por isso, Rantala considera que:
As músicas e outras fontes também revelam a necessidade das pessoas, particularmente jovens, de narrar e ouvir histórias alternativas ou, pelo menos, de completar as já existentes. Essas novas ou renovadas histórias podem ajudar a imaginar futuros alternativos para o passado, lembrando e imaginando o que figuras falecidas como Machel, Simango, Matsaingaissa, tanto como Amurane, parecem oferecer. (2019: 77)
Também Luca Bussotti e Júlio Chinguai se focam em Azagaia para defender que, de forma artística, o rap pode representar um lugar alternativo de exercício da cidadania, permitindo aos jovens participarem ativamente no desenvolvimento de espírito crítico e de criação de memórias coletivas sobre a realidade que os circunda. Os autores explicam:
O Estado moçambicano, sobretudo depois do “grande risco” representado pelas contestadas eleições de 1999 […] fechou os poucos canais efetivos de liberdade de expressão, pelo que o rap se tornou, sobretudo mediante alguns artistas comprometidos […], uma das poucas formas de contestação direta contra o regime e suas práticas de corrupção e empobrecimento da maioria da população. (Bussoti e Chinguai, 2020: 84)
Por seu turno, Araldi (2016) estuda o rap de Azagaia para refletir sobre o potencial desta expressão artística para resgatar o valor da oralidade africana perdido e negligenciado por imposição da vontade do colonizador. Para a autora, o rap constitui uma forma de literatura oral que se enquadra no contexto moçambicano marcado pelo alto índice de analfabetismo, possibilitando assim o acesso ao conhecimento crítico e a uma visão do mundo alternativa que inclui e respeita as camadas menos instruídas da população:
A força do sentido de comunidade e de irmandade estabelecidos na cultura hip hop é uma das características que permite ver no movimento uma postura favorável à descolonialidade: seus membros não esperam a legitimação do seu discurso nas formas colonialmente associadas à produção de saber. (ibidem: 16).
À semelhança de Sitoe (2018), Araldi (2016: 20) defende que o rap possibilita a preservação da memória dos saberes que os jovens experienciam e através dos quais se tornam “comentador[es] político[s]” dos desafios que Moçambique enfrenta na consolidação da sua democracia.
5. O rap como um espaço de ação promotor de um projeto alternativo de governação em Moçambique
Por meio do rap os jovens moçambicanos fazedores e militantes do movimento hip-hop conseguem exercer a sua cidadania e participam ativamente num Moçambique melhor. É o que Santos (2012: 16) chama “autores-cidadãos” e “auto-realização”. Veja-se uma das letras de Azagaia: “Eu falo em nome da declaração universal dos direitos humanos / Falo em nome da constituição que rege os moçambicanos / Eu nem sequer sou formado em direito / Mas sei que me manifestar neste país é meu direito”. Nestes versos da “MIR Música de intervenção rápida”, o rapper autorrealiza-se enquanto jovem cidadão de Moçambique que, de forma simbólica, evoca os princípios fundamentais que regem a democracia no país para, por um lado, se manifestar e, por outro, promover uma atitude cívica de repúdio aos ataques que os antigos combatentes sofreram ao se manifestarem pelo pagamento das suas pensões.
O rap como um espaço de ação promove a visibilidade de um pensamento político alternativo e crítico dos jovens que os coloca como agentes de um “processo educativo alternativo” (Santos, 2017: 134), cuja missão é, por um lado, legitimar a existência de alternativas de pensamento, de um espírito vigilante face aos poderes instituídos e, por outro, desempenhar a função de literatura de transmissão oral, que possibilita o acesso ao pensamento crítico, materializando assim a ideia defendida por Vidon (2014: 20) que atribui ao hip-hop a função de “pedagogia social”, e bem exemplificado por Azagaia no single “Declaração de paz”:
Tu pensas o quê? / Que as armas vão garantir a paz? / Quando as balas são disparadas já não voltam para trás / É o país que vai para trás / Enquanto os VIPs vão para frente / Pergunta se nesta guerra estão os filhos do presidente / Aos filhos do general, aos filhos de um dirigente/ Quem morre nesta guerra / São os filhos dos sem patente […].
Nestes versos é evidente a intenção do rapper em promover uma reflexão social e uma ação/solução concreta para o conflito militar entre o governo e a RENAMO no centro do país, despoletado em 2013 e no qual, entre outras reivindicações, a RENAMO exigia a distribuição equitativa e transparente dos dividendos oriundos da exploração dos recursos naturais. Tal como indica Azagaia uns versos depois: “O que custa a maçaroca dar uns grãos a perdiz? / Até o galo está com fome tem razão quando exige / Um país para todos, de todos ou de ninguém? / É tudo para todos ou nada pra ninguém”. O símbolo da FRELIMO (no governo) é a maçaroca; o símbolo da RENAMO (oposição) é a perdiz e o símbolo da terceira maior força política de Moçambique, o MDM, é o galo. Azagaia usa estes símbolos para demonstrar que o caminho para a paz é a distribuição de recursos pelos partidos políticos e o acesso aos mesmos por toda a população. Estes versos materializam a ideia de que o rap representa um espaço de ação através de “uma poesia mais próxima das pessoas e do real” (Valete apudFernandes, 2010: 41-42). Leia-se os seguintes versos:
Que quer fazer de nós seus escravos / Aceita lá! / Porque nem sequer tens dúvidas / As escolas são privadas / As barracas[8] são públicas […]. (música “Só dever” de Azagaia ft. Gina Pepa)
Ai de nós, patrão / Ai de nós, que vedamos os olhos, a boca, os ouvidos, até o coração / Ai de nós, que fingimos que nada se passa / Enquanto o nosso consciente está bem ciente / Que na outra margem algo se passa […]. (música “Ai de nós”, de Azagaia ft. Amen Hill, Amélia Charlton e Dalton Simão Clemente)
Nos versos acima, fica patente a ideia desenvolvida por Bussotti e Chinguai (2020) que considera o rap de Azagaia como um lugar alternativo de exercício da cidadania construtiva (através do hip-hop enquanto grupo ou movimento social). Na música “Só dever” o artista faz uma reflexão sobre as fragilidades do ensino público moçambicano, indicando que o objetivo da falta de investimento no ensino público - que poderia ter sido colmatado com o dinheiro das dívidas ocultas - seria contribuir para que a maioria da população, por falta de um sistema de educação pública de qualidade, permaneça “escrava” do regime em vigor. Entretanto, fomenta-se a venda informal de álcool à juventude, mas privatiza-se o direito a uma educação de qualidade para estes mesmos jovens. Outrossim, é o apelo a um pensamento crítico ou a uma atitude mais proativa do povo moçambicano em relação ao conflito militar na província de Cabo Delgado, iniciado em 2017 sem que o governo moçambicano tivesse partilhado informações sobre as reais motivações do mesmo nem sobre as medidas que iriam tomar para estancar os ataques que na altura ainda não haviam sido reivindicados. A situação alastrou-se, levando a que em 2021 tivesse ocorrido um dos ataques mais violentos à vila de Palma (na mesma província), o qual inspirou a música “Ai de nós”. Ao mencionar na letra “Ai de nós, patrão”, Azagaia lembra o discurso proferido pelo Presidente Filipe Nyusi (2015-2019; 2019- ), que referiu que o povo era o seu patrão (Nyusi, 2015: 3). O rapper chama, assim, a atenção deste “patrão” para o facto de se manter inerte no que concerne aos acontecimentos de Cabo Delgado ao indicar “Ai de nós, que vedamos os olhos, a boca, os ouvidos, até o coração”, sugerindo que era o momento de o povo exigir explicações e soluções ao governo moçambicano.
6. O rap como veículo de vocalização da memória coletiva sobre injustiça social em Moçambique
Os elementos tempo, discurso e espaço que compõem a teoria da memória coletiva desenvolvida por Maurice Halbwachs (1990 [1950]) mostram-se fundamentais para a discussão desta categoria de análise entendida como a possibilidade de o rap (enquanto movimento hip-hop em Moçambique) servir de plataforma de (re)construção social dos saberes adquiridos pelos jovens através das experiências vivenciadas nas diferentes etapas da história da democracia moçambicana. Neste contexto, os temas das músicas de Azagaia são o espelho dessa “história vivida” por toda uma sociedade, e através dos quais os dilemas do povo são registados, refletidos e assim (re)construídos através de um discurso crítico e uma linguagem criativa/poética familiar ao espaço (Moçambique) e ao momento em que os factos políticos, económicos e sociais decorreram.
A letra da “MIR Música de intervenção rápida” inspirou-se nos atos bárbaros que a Força de Intervenção Rápida empregou para dispersar os antigos combatentes que se manifestavam pelo pagamento das pensões em 2013. Foi no mesmo ano, como já referido, que tiveram início os ataques armados da RENAMO na zona centro de Moçambique, contexto que inspirou a música “Declaração de paz”, lançada no ano seguinte. Em 2019, Azagaia apresenta “Só dever”, música que retrata o maior escândalo financeiro do país (despoletado em 2015) até à data, envolvendo a contração de dívidas - não aprovadas pelo parlamento e, por isso, ilegais - pelo governo moçambicano, o que mergulhou o país numa crise económica da qual se ressente até à atualidade. Por fim, a música intitulada “Ai de nós” é inspirada, como já afirmado, nos ataques terroristas que fustigam a província de Cabo Delgado, e cujas supostas motivações assentam tanto nos projetos de prospeção de petróleo e gás na região de Mocímboa da Praia, bem como em fatores religiosos com ligações ao autoproclamado Estado Islâmico. Fica assim patente que o rap opera como veículo de vocalização da memória coletiva sobre a injustiça social em Moçambique pois, como defendem Carmen Oliveira e Evelyn Orrico (2005), a memória coletiva surge de um grupo social que, num determinado período histórico e através da linguagem oral, escrita, entre outras, procura manter viva a experiência que vive ou viveu e através da qual forma a sua identidade.
Por outro lado, o facto de estas temáticas serem escritas no português de Moçambique (Timbane, 2017), uma língua portuguesa nativizada (Firmino, s.d.) que sofre(u) a influência dos moçambicanismos, confirma que “[o] português passa a ser dois, o do colonizador e o do revolucionário” (Ponso, 2016: 69). A língua de protesto social que foi validada pela FRELIMO na luta pela independência de Moçambique continua ativa e servindo os propósitos revolucionários do movimento hip-hop no país.
A letra de “Só dever” é clara quanto ao seu propósito de retratar a realidade do país: “Aqui nós convivemos com aqueles que assassinaram / […] que rasgaram a corda, os que assinaram / […] que revolucionaram e tornaram-se burgueses / Com brancos moçambicanos, e pretos portugueses”.
Veja-se ainda a letra de “Ai de nós” (que reflete a mensagem de “Só dever”):
Vergonha na cara limpa-se com caras de Samora / Sangue nas mãos, com as mãos de quem nos explora / E nos oferece armas para nos matarmos de borla / Nada de borla custa gás e petróleo / Custa o sangue de uma província negociada no escritório / […] Deixa o meu povo seguir, diria a mulata Noémia / […] Azagaia não felela9, fala de tudo e de todos / Todos juntos vamos gritar e sabotar vossos ouvidos (ouviram?) / Em nome dos calados que merecem ser ouvidos […].
Nestas músicas Azagaia menciona “brancos moçambicanos, e pretos portugueses”, bem como “aqueles que revolucionaram e tornaram-se burgueses” e “vergonha na cara limpa-se com caras de Samora”, trazendo o debate sobre a mudança de paradigmas na sociedade moçambicana que retrata as heranças do colonialismo com “brancos moçambicanos” e a rutura com a ideologia socialista marcada pelo surgimento de “pretos burgueses” e daqueles “que revolucionaram e tornaram-se burgueses”, ou seja, remetendo à FRELIMO, outrora socialista e revolucionária, e que atualmente constitui o partido com mais acesso ao poder financeiro e aos recursos naturais no país, e sobre a qual recai a “vergonha” nacional das dívidas ilegais. Destaca-se a menção à miscigenação com “Deixa o meu povo seguir, diria a mulata Noémia”, demonstrando a intenção de Azagaia em mostrar que no país não existem apenas pretos e brancos, mas também o fruto desse encontro entre povos através do colonialismo.
O trabalho de Mendonça Júnior (2021a, 2022) destaca o uso das línguas bantu no rap moçambicano como recurso para recuperar o valor das línguas nativas marginalizadas durante os períodos colonial e pós-independência, podendo aqui considerar-se o caso de Azagaia e a utilização da expressão “não felela” na letra da música “Ai de nós”. Desta forma, entende-se que o rap moçambicano “se tornou […] uma das poucas formas de contestação direta contra o regime e suas práticas de corrupção e empobrecimento da maioria da população” (Bussotti e Chinguai, 2020: 84).
Considerações finais
Este estudo, valendo-se de pesquisa documental para o contextualizar e auxiliar na análise de conteúdo, pretende aferir o lugar da língua portuguesa em Moçambique, das línguas bantu e das marcas identitárias moçambicanas na (re)criação de um movimento hip-hop. Através deste exercício foi possível demonstrar que o português de Moçambique, validado como língua oficial no contexto de luta revolucionária contra o colonialismo português, manteve esse estatuto nos diferentes contextos históricos que Moçambique vem atravessando desde a sua independência. Expressando esta realidade, as letras das músicas do rapper moçambicano Azagaia configuram, como ficou explicitado, a memória coletiva do povo moçambicano, mostrando que o rap - pensado e executado no português de Moçambique, bem como incorporando a exaltação de ideais progressistas de líderes políticos e de opinião na sociedade moçambicana - desconstrói a narrativa de que herói ou heroína nacional deve ser aquele ou aquela que se conforma aos parâmetros nacionalistas estabelecidos pela FRELIMO. Estas características permitem concluir que o rap moçambicano desempenha um papel central na (re)criação de espaços de exercício de cidadania cultural e proativa, bem como de promoção de espírito crítico social e de ação, na medida em que incentiva alternativas para uma democracia promotora da paz e do bem-estar social no país.