Introdução
Faz-nos falta esta música de intervenção... porque foi assim que eu sou artista.
(Bonga, em entrevista, 2 de julho de 2019)
Pensar a música angolana por um prisma transnacional e enquanto instrumento de luta anticolonial é um exercício instigante. Primeiro, porque ao se anteceder ao próprio nascimento dos movimentos revolucionários de libertação, a música de protesto angolana impele-nos a refletir sobre seu papel, não apenas como dispositivo que reflete ou que suporta uma ideia de luta (concreta ou abstrata), mas como mobilizadora de “repertórios de sentimentos” que, não sendo necessariamente revolucionários, poderão projetar utopias e imaginários desalinhados com o situacionismo colonial e com o apolitismo promovido a doxa1 pelas políticas coloniais do Estado Novo. Em segundo lugar, porque, produzida frequentemente no “mesmo” contexto de censura política que a canção de protesto portuguesa, permite diálogos e comparações úteis para um debate sobre o passado e sobre o futuro das vozes ecoadas e silenciadas pelo 25 de Abril.
Com efeito, embora muita música angolana, inclusive a que foi produzida na Europa durante o período final do Estado Novo e na alvorada do 25 de Abril, possa ser inserida na categoria de música de protesto - ou de “contestação” ou mesmo de “intervenção”, como amiúde se designa no quadro conceptual da história da música em Portugal2 - o certo é que ela tem estado ausente da memória historiográfica portuguesa do 25 de Abril e do Estado Novo. Esta evidência é corroborada pelas consultas dos dicionários históricos portugueses sobre este período de transição de epistemes,3 os quais constituem o principal objeto desta análise. Elaborar possíveis explicações para esse fenómeno é um dos objetivos a que este texto se propõe.
Em Lisboa, Paris ou Roterdão, as possibilidades da música como instrumento revolucionário ganharam uma nova dimensão para os músicos angolanos. As suas trajetórias, indubitavelmente ligadas à ex-metrópole, autorizam-nos a repensar estes músicos angolanos como cantores de Abril. Porque “a opção sobre o que esquecer ou silenciar faz parte da construção de qualquer narrativa histórica” (Meneses, 2020), questiona-se neste artigo, através de um exercício simultaneamente hermenêutico e exploratório, um particular esquecimento-acontecimento: o (não-)lugar dos cantores angolanos (e, por extensão, poder-se-ia dizer africanos) na memória histórica4 do 25 de Abril em Portugal.
Este artigo tem também como objetivo contribuir para uma história global e não eurocêntrica das canções e dos cantores de Abril, se aqui incluirmos as/os que, de uma forma ou de outra, agiram ou atuaram ao arrepio do projeto colonialista português. Trata-se de uma história que ainda está, em grande medida, por fazer.5 Por um lado, tanto as músicas de protesto de angolanos como de portugueses feitas na Europa são tidas como se de uma (e não a mesma) história se tratasse. Por outro lado, ao alegar que o eurocentrismo explicará a invisibilidade dos angolanos na história da música que Abril consagrou, estou simultaneamente a assumir o pressuposto de interconectividade entre o centro imperial e a periferia colonial, e a perspetiva de que metrópole e colónia, muito mais do que um binómio, constituíram um espaço entrelaçado de construção cultural e política (Cooper & Stoler, 1997; Gopal, 2019).
Esta perspetiva transcende o nacionalismo metodológico, abre o campo de possibilidades teórico-metodológicas no estudo da história cultural e social do 25 de Abril e traz novas propostas de reflexão. Permite aprofundar o conhecimento sobre o papel desempenhado pela diáspora africana e, mais objetivamente, sobre os trânsitos transcoloniais e translocais de uma música com raízes em Angola, mas empenhada em alianças não só com a luta antifascista portuguesa, mas também com outras lutas contra os impérios coloniais e neocoloniais em todo o mundo.6
Este estudo é, portanto, uma tentativa de interrogar a história a partir de uma reflexão sobre a memória, tal como afirma François Hartog (cf. Guerreiro, 2020). Para este desígnio, combinaram-se métodos e técnicas qualitativas, entre as quais a pesquisa arquivística (os dicionários e outras fontes escritas, visuais e audiovisuais) e a realização de entrevistas em Portugal e em Angola. Foram examinados os trajetos dos músicos angolanos Rui Legot, Bonga, Vum-Vum e Ruy Mingas e analisados registos e memórias sobre as suas práticas laborais, culturais e sociopolíticas; memórias de antigos ouvintes destes músicos, bem como conteúdos musicais, discursos e representações emanados de outros suportes de mediação. Por sua vez, as variáveis que guiaram a seleção dos dez dicionários foram, dentro de uma amostra aleatória, a diferenciação ao nível da autoria, data de publicação e casa editorial.
Este artigo encontra-se dividido em duas partes. Na primeira, procede-se a um resumo compilado destas quatro trajetórias, situando-as nos respetivos espaços europeus onde as comunidades africanas foram recriando culturas relativamente autónomas de convivialidade. Na segunda parte, considera-se a relevância do estudo das memórias subalternas para se apurar, ainda que de forma incompleta, o legado destes “esquecidos da história” europeia (Perks, 2015, p. ix) na vida cultural portuguesa.
1. A música angolana a protestar em Lisboa (e às vezes em Paris e em Roterdão)
Em Luanda, remontam pelo menos à década de 1950 os sinais de uma atmosfera cultural desafiadora dos cânones culturais caucionados pelo sistema colonial português. Neste contexto particular, releva-se o pioneirismo dos Ngola Ritmos7 e de outros agrupamentos musicais ou teatro-musicais formados dentro de coletividades africanas ou no seguimento das turmas que se iam criando pela periferia da cidade. Um dos fatores que contribuiu para a popularidade do semba em Angola relacionava-se com a forma como os seus intérpretes souberam manejar e cultivar o que podemos chamar de dimensão utópica de transformação social.
A música servia, em certa medida, como espaço de inscrição de uma cultura popular dissidente, da “infrapolítica dos oprimidos” (Scott, 2013, pp. 19-20). Mais do que a uma gramática do protesto, tratava-se frequentemente de recorrer ao disfarce (a dissimulação, a sorrelfa, a incoerência entre o palco e os bastidores) como forma de dissidência (Scott, 2013). Estes aspetos dos repertórios de resistência dos músicos advinham da tensão entre a necessidade de integração na ordem colonial e as expectativas de outra vida (Gomes, 2021). Cantar letras “proibidas” era normalmente algo planeado, escolhendo com cautela os espaços e os momentos ideais para o fazer.
A fronteira entre “agência” e “resistência” é muitas vezes ténue. Porém, fora do espaço imperial português, a dimensão de “protesto” da música ganhava contornos mais nítidos, semelhantes à liberdade que Abril viria a oferecer. Na oportunidade de as gravar em território estrangeiro e amistoso, as músicas podiam transpor as fronteiras do Império através das emissoras radiofónicas “clandestinas” afetas aos movimentos de libertação e sediadas em países vizinhos. Os discos podiam ainda chegar ao espaço nacional por via aérea ou marítima, como foi o caso de Angola 72 - o primeiro álbum de Bonga, gravado em Roterdão e que obteve então grande sucesso em Angola e Cabo Verde (Gomes, 2021, p. 334). Mas para além da materialidade das letras e dos fonogramas, é no quotidiano, muitas vezes não registado pelo arquivo colonial, que encontraremos gestos, posturas e sensibilidades anticoloniais da parte destes músicos.
As suas vidas na diáspora ilustram, exemplarmente, os trânsitos bidirecionais entre a metrópole e a cidade colonial, as “histórias entrelaçadas” e as “geografias sobrepostas” que caracterizam o passado colonial (Sanches, 2013, p. 280). As rotas que entrelaçavam Luanda e Lisboa, cidades então concebidas como partes de um todo nacional, é um eixo que continua por explorar do ponto de vista do estudo da cultura popular.
Desde a década de 1940 que a comunidade africana em Lisboa se repartia entre os residentes fixos (funcionários públicos, desportistas, etc.), os embarcadiços e, com o passar do tempo, cada vez mais estudantes. O intervalo que dista entre finais da década de 1950 e meados da década de 1960, constitui, na diáspora, o primeiro período dos “longos anos 60” dos ritmos angolanos (Gomes, 2021, pp. 289-296), no qual se insere a atividade musical dos grupos N’gola Kizomba, Duo Ouro Negro e Duo N’Gola, maioritariamente com carreiras em Portugal. Este período ficou marcado pelo importante papel do Clube Marítimo Africano, do Clube Universitário de Jazz e da Casa dos Estudantes do Império (CEI)8 como centros aglutinadores de sociabilidades entre jovens oriundos das colónias, alguns dos quais se identificavam (ou viriam a identificar-se) com os ideais anticolonialistas. O segundo período caracterizou-se pelo despontar de um punhado de artistas angolanos - Filipe Zau, Ruy Mingas, Lilly Tchiumba, Vum-Vum, Bonga e o grupo Os Rock’s - os quais se inspiraram nas influências, políticas e estéticas quer da geração precedente de músicos, quer das novas linguagens musicais e das novas gramáticas políticas globais.9 À semelhança do que aconteceu com a música de intervenção dos cantores de Abril portugueses, foi sobretudo entre a segunda metade da década de 1960 e a segunda metade da década de 1970 que o eco do protesto musical angolano foi mais explícito e retumbante.
De acordo os dados recolhidos, o trabalho pioneiro do que poderemos chamar de semba-diaspórico de protesto será provavelmente o do grupo Nzaji10, formado em Moscovo em 1964, integrando elementos dos ex-Kimbambas do Ritmo, de Luanda, cidade onde se exilaram então militantes do MPLA, da Juventude do MPLA e da União dos Estudantes Angolanos.11 Noutro género musical, é obrigatório mencionar Portugal-Angola: Chants de lutte, de Luís Cília, editado em Paris, em 1964, sendo muito possivelmente, na Europa, o primeiro disco de intervenção contra a guerra colonial cantado em português.
Nascido e criado em Angola, Cília fora colega de Ruy Mingas no liceu. Foi em Lisboa, nas festas da CEI, que a amizade se sedimentou… com novos ritmos. O poeta cabo-verdiano Daniel Filipe era um amigo em comum e apresentou-lhes a discografia de Léo Ferré e George Brassens - além de ter induzido Cília a aderir ao Partido Comunista Português (PCP). Foi a pedra de toque para Cília musicar poetas portugueses. É desse tempo “O menino negro não entrou na roda”, o seu primeiro poema musicado (cf. Cília, 2003), e “Meu país”. Também Ruy Mingas, sobrinho do músico Liceu Vieira Dias (cofundador dos Ngola Ritmos e, na altura, preso no Tarrafal), começa então a “musicar poetas angolanos e não angolanos […] que tivessem uma poesia de intervenção política ou social” (Mingas, 1993).12 Nasce aí a sua interpretação do poema “Monangambé”, de António Jacinto, mais tarde considerada como um hino da luta pela independência de Angola. No entanto, Mingas não se cingiu à temática nacionalista. A canção “Poema de Farra” é, pode-se dizer, uma reinterpretação luandense de Jubiabá, obra de Jorge Amado que retrata as aventuras de um jovem negro, numa sociedade profundamente desigual e racista, que consegue romper a fronteira que o separava da cidade rica. Apesar de várias aparições públicas televisivas e de discos gravados na editora Zip-Zip, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança (PIDE/DGS) coloca-o, em março de 1971, numa lista de dez “cantores e grupos de baladas” que, segundo esta polícia, se “dedicavam a atividades ilícitas” e se tinham “evidenciado na utilização de temáticas antissociais e pacifistas”.13
Em 1973, Mingas regressou a Luanda, onde principiou uma série de novos trabalhos, dos quais se relevam composições a partir de poemas de Mário Pinto de Andrade e Agostinho Neto, e o novo hino de Angola, já em 1975. É dele (e do poeta Manuel Rui) a autoria da célebre canção “Os meninos do Huambo” ou, em termos mais corriqueiros, “os meninos à volta da fogueira”, apesar de - e isto é apenas uma suspeita - grande parte dos portugueses provavelmente atribuírem esta autoria ao português Paulo de Carvalho que, em 1985, gravou uma versão muito semelhante.14
Em Lisboa, foi com Ruy Mingas e Teta Lando, convivendo em festas - em especial nas tocatinas em casa do médico Arménio dos Santos Ferreira15 -, que o músico Bonga (então ainda conhecido por Barceló de Carvalho, atleta do Benfica) começou a aperfeiçoar-se na arte das percussões (Romão, 2018). Bonga é, hoje em dia, muito provavelmente, o mais renomado músico angolano a nível mundial. Porém, em Portugal, serão poucos os que conhecem o seu passado como cantor de intervenção, e menos ainda os que o reconhecem como cantor de Abril.
Aproveitando as viagens regulares ao estrangeiro - como atleta ou músico amador -, Bonga transportou, além da bagagem habitual, cartas clandestinas do MPLA, enviadas pela célula de José Mingas (irmão de Ruy Mingas) em Luanda. Sabendo de um mandado de busca contra si, conseguiu fugir para os Países Baixos, onde se juntou à comunidade cabo-verdiana aí residente. Fez amizade com Djunga de Biluca, um ex-marítimo cabo-verdiano nomeado por Amílcar Cabral como representante do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde nos Países Baixos, com a incumbência de redinamizar uma associação cabo-verdiana criada em 1967, dedicada a atividades culturais e desportivas, tendo como signo maior a ideia de cultura como arma. Foi ele um dos que impulsionou Bonga a gravar um disco. O álbum Angola 72 saiu pela editora discográfica Morabeza, vinculada a uma associação cabo-verdiana em estreita afinidade com a ideia cabralista de luta pela libertação como um “ato cultural” (Biluca, 2009, pp. 128, 131; Cidra, 2010, pp. 217, 223). Nele, Bonga abordou a exploração da matéria-prima angolana, as agruras do dia a dia do povo, e, na canção “Muimbo ua sabalu” - criada a partir do poema homónimo de Mário de Andrade -, o “lamento dramático de um pai e de uma mãe que perderam o seu filho por ter sido forçado a ir para o contrato” em São Tomé (Pascoal, 2018, pp. 44-45). Outra canção, “Balukumeno” (“Levantem-se”, em português), constitui um desabafo que espelha a tomada de consciência “das atrocidades que a gente se dava conta, [da parte] das autoridades portuguesas” (Bonga, entrevista, 2 de julho de 2019). Após a descoberta da verdadeira identidade de “Bonga”, o músico optou por se mudar para a Bélgica e Alemanha, antes de se radicar definitivamente em Paris, onde estava o músico e militante anticolonial Mário Clington, um angolano com ligações ao MPLA. Nesse período, compôs Angola 74 (lançado já após o 25 de Abril), disco que mantém o estilo e algumas temáticas, embora com inovações advindas em parte das parcerias com o baiano Sebastião Perazzo e com o saxofonista Jo Maka, da República da Guiné (cf. Moorman, 2019). O terceiro álbum, Raízes, de 1975 (reeditado em 1978 como Racines / De L’Angola au Brésil), intensifica o abraço com o Atlântico negro de Angola e Brasil, porquanto “comunica a possibilidade dos outrora colonizados estabelecerem alianças predicadas na crítica ao outrora colonizador, no descentramento deste, na destituição do seu poder de representação na História” (Cidra, 2022, pp. 76-77).
Outro músico angolano que partiu de Luanda em direção a Lisboa para continuar os estudos e também acabou acolhido por Mário Clington em Paris, foi Rui Legot. Uma vez em Lisboa, foi cativado por Ruy Mingas para a força da música como meio de contestação política. Com Henrique Rosa Lopes16, cria o Duo N’Gola, um dos grupos pioneiros da música angolana em Portugal. Compõem a canção “Bicho do Mato” (também conhecida por “Angola”), cuja letra exprime a incitação ao sentimento de angolanidade entre as populações rurais desse país, as quais, ao serem alfabetizadas, aprendiam também que havia “uma terra com o nome de Angola” - a frase do refrão repetida em loop quase ininterruptamente. Apesar disso, terão sido eleitos “a melhor presença portuguesa na TV em 1969”.17 Vigiado pela PIDE devido aos seus encontros com membros afetos ao MPLA, e em situação militar irregular, Legot consegue então escapulir-se para Paris.
Ainda na primeira metade da década de 1960, Legot formara o trio Angola Melodias, com Eleutério Sanches e Vum-Vum. Este último fora então preso, acusado de ser refratário, e voltaria posteriormente a Luanda onde se tornaria anos depois um dos mais reputados músicos da cidade.18 Em 1968, regressa a Lisboa para ser o intérprete musical de uma peça no Teatro Monumental. Um ano depois, grava o EP Muzangola, décadas mais tarde considerada uma obra de culto, mas que fora então apenas seriamente distribuído nas colónias, ao contrário do que lhe foi feito crer. Nele, Vum-Vum reinterpreta “Monami”, célebre composição popularizada pelos Ngola Ritmos, na qual aborda o lamento de uma mãe que, após 1961, via o filho condenado, fosse ele quem fosse, a uma vida de clandestinidade, pois, subentende-se, outra luta não havia que não a da luta pela independência (Vum-Vum, entrevista, 24 de outubro de 2019). Vum-Vum conseguiu, enfim, lançar um LP em 1976 - Salalé - editado pela Voz de Cabo Verde, de Bana. Na contracapa do disco lêem-se impressos uma dedicatória “Aos mártires de Luanda e a todos nós, filhos-sacrificados da África colonizada” e um “Liberta-te ó África Unida!”, no final do texto epistolar que se lhe segue. Após o 25 de Abril - e antes de Salalé -, teve duas tentativas frustradas de gravar um novo disco, uma delas na editora Orfeu, do seu amigo “Zeca” Afonso, onde ouviu de um dos responsáveis que “ali não gravavam artistas negros”.19 Apesar de ter continuado a trabalhar em Portugal (com passagens por outros países europeus), Vum-Vum sente não ter recebido deste país um reconhecimento verdadeiramente digno pelo seu trabalho. O sentimento de que, apesar da revolução e do rompimento com o passado, a indústria local ainda olhava para a sua obra como “música de pretos” (Vum-Vum, entrevista, 24 de outubro de 2019). Ou, nas palavras de Bonga, uma sensação de “vira o disco e toca o mesmo [risos] […] mesmo os programas de televisão eram todos manipulados” (Bonga, entrevista, 2 de julho de 2019).
Estas considerações levantam a presença do “racismo estrutural da indústria musical”, um fator que Chris Stapleton e Chris May (1990, p. 261) indigitavam em relação à receção, na Europa, do rock made in Africa e que pode ser averiguado em relação a Portugal.20 Entretanto, importa esclarecer como e por que é que os representantes da diáspora musical angolana inexistem como cantores de Abril, pelo menos no que respeita à historiografia portuguesa.
2. Memórias que interpelam dicionários portugueses
Quando se diz que a música de contestação angolana, ou feita por angolanos, tem passado despercebida da memória histórica portuguesa sobre a resistência ao Estado Novo, não significa que ela não esteja presente nas memórias subalternas. Na terminologia de Enzo Traverso (2005/2012, pp. 71-87), memórias fracas (“memórias subterrâneas” ou subalternas), sem visibilidade ou interditas no espaço público contrapõem-se às “memórias oficiais” celebradas e validadas pelo Estado e, acrescente-se, pelo mercado (ou por alguns dos seus setores). Como assinalava Michael Pollak (1989, p. 5),
a clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil. Encontra[-se] com mais frequência esse problema nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante.
A relação estreita entre memórias fortes e produção histórica é, portanto, um ponto de partida para testar a hipótese da presença de um viés eurocêntrico, no que toca à música de contestação em Portugal.
Ao consultarmos as enciclopédias sobre a Revolução dos Cravos presentes em bibliotecas públicas portuguesas,21 ou perscrutarmos pela memória de Abril nos inúmeros artefactos materiais e digitais produzidos pelos média mainstream portugueses, são poucas as vezes que encontramos os nomes dos músicos angolanos aqui analisados ou mesmo os nomes de Ngola Ritmos,22 de B.Leza ou de José Carlos Schwarz, cantores que Abril não consagrou como fez com os seus homólogos “metropolitanos”. Observando as entradas de várias edições portuguesas dos dicionários relativos à história do Estado Novo e do 25 de Abril, verifica-se que o único músico “angolano” aí presente é Luís Cília (e, se quisermos, Fausto23). Porém, é apresentado no máximo como português “vindo de Angola”, raramente ilustrando o quão o seu trajeto musical está profundamente ligado a esse passado. Ser um homem branco e ter continuado a carreira em Portugal são facto(re)s explicativos nada desprezíveis. Todavia, quando os dicionários se debruçam sobre as personalidades e movimentos políticos anticoloniais mais preeminentes desse período, os africanos em geral e os angolanos em particular não são (pelo menos, não sempre) esquecidos da história. Quais então as razões para o serem no âmbito musical?
Vejamos. No Dicionário de História do Estado Novo, editado pela Bertrand em 1996 (sob a direção de Fernando Rosas e José Brandão de Brito; e coordenação de Maria Fernanda Rollo), para além de um notório realce atribuído à música erudita, registam-se entradas para “Adriano Correia de Oliveira”, “José Afonso” e “Música de intervenção” (Rosas & Brito, 1996).24 A dicionarista Marta Benamor Duarte sublinha ter sido “precisamente dos viajantes - José Afonso e Sérgio Godinho - e dos exilados em Paris - José Mário Branco e Luís Cília - [de quem] viriam as lufadas de ar fresco necessárias para a subversão da linguagem musical portuguesa” (Duarte, 1996, p. 647). É neste contexto que emerge a única referência à música africana: “na escrita e na execução da música [no início dos anos 1970] nascia uma pequena revolução, com a inclusão de novos instrumentos, nomeadamente percussões de origem africana” (Duarte, 1996, p. 647). Do mesmo modo, no Dicionário de História de Portugal, publicado em 1999 (sob a coordenação de António Barreto e Maria Filomena Mónica), encontram-se verbetes biográficos detalhados sobre músicos portugueses como Luís Cília e Sérgio Godinho, mas nenhuma sobre músicos de origem africana não branca (Barreto & Mónica, 2006). Já o Dicionário do 25 de Abril, de 2002 (organizado por John Andrade), contém menções a personalidades africanas influentes nos campos político, literário e religioso - Amílcar Cabral, Daniel Chipenda, Joaquim Chissano, Pepetela, Simão Toko (Andrade, 2002) - mas nenhuma quanto ao campo musical. Por fim, a mais recente reedição do Dicionário de História de Portugal - o 25 de Abril (entre 2016 e 2018),25 ainda que se proponha a sistematizar informação sobre “instituições políticas, jurídicas, culturais e sociais, económicas; biografias de personagens políticos, militares, culturais e religiosos” (Reis et al., 2016-2018, p. 57), as únicas entradas relativas à música são a da “Música erudita” (a que dedica cinco páginas) e as de vários músicos portugueses: Luís Cília e sim, Fausto, ao lado de nomes como Adriano Correia de Oliveira, Brigada Victor Jara, Carlos do Carmo, Carlos Paredes, Fernando Lopes-Graça, Francisco Fanhais, Joaquim Letria, José Afonso, José Jorge Letria, José Mário Branco, José Nisa e Sérgio Godinho.
Desta breve apreciação, constam-se à cabeça dois aspetos importantes: a) a sobrevalorização da música erudita consignando, mais uma vez, a “alta cultura” como critério original da qualidade estética, apenas reificando uma hierarquia dominante entre certas elites, mas muito pouco justificada;26 e, por outro lado, b) a reprodução, em Portugal, daquilo que Filomeno Lopes nomeia de “militarização do conceito de combatente da liberdade”, resultando num “empobrecimento hermenêutico e bastante negativo não só do ponto de vista do conceito, mas também do próprio sentido da luta pela conquista das independências” (Lopes, 2013, p. 38).27 Nesta linha, importa identificar o armamentário - visando desconstruí-lo - que, de uma forma ou de outra, explicará, ou procurará justificar ou relativizar, esta produção do esquecimento e ordens de (in)significância.
Pode assim ser também evocado o facto de grande parte das canções dos músicos angolanos ser cantada numa língua incompreensível à esmagadora maioria dos portugueses. Porém, numa investigação histórica sobre os repertórios musicais de resistência ao Estado Novo, valer-se do critério linguístico como fator excludente é altamente discutível. E mesmo que não fosse, basta observar que várias composições interpretadas por estes artistas foram-no, parcial ou totalmente, em português. E acrescentam-se três contra-argumentos: i) a popularidade do semba em Angola deveu-se também ao público “europeu”; ii) muitos dos jovens negros e mestiços de Luanda não dominavam (bem) o kimbundu, a começar por muitos dos músicos que, para o efeito, recorriam à ajuda dos mais velhos; iii) o facto de a grande maioria dos portugueses de então não entender o inglês nem o francês não impediu nem os conjuntos musicais mais populares da metrópole de cantarem nessas línguas (e.g., os Sheiks), nem a regular inserção de músicas nestes idiomas nas programações das emissoras de rádio e de televisão. Vem-me à memória uma frase de Bonga (entrevista, 2 de julho de 2019): “qual é a diferença entre o inglês que ele não sabe e o kimbundu que ele não sabe?”.
Um outro raciocínio passível de refutar é o de que em Portugal o conceito de música de protesto obedeceria não apenas à letra da música, mas a critérios melódicos específicos ausentes noutros ritmos, como o rock ou o semba, então catalogado oficialmente de “folclore africano”. No verbete de “Canção de Intervenção” da Enciclopédia da Música em Portugal no século xx - no qual, aliás, também não existem referências a intérpretes africanos28 - Maria de São José Côrte-Real assinala que “apesar de não se poder associar um estilo musical específico à música e à canção de intervenção em geral, existe um conjunto de características estilísticas comuns ao seu universo sónico”, sendo estas baseadas na linguagem estética da música tradicional portuguesa (Côrte-Real, 2010, p. 221). Acrescenta a autora que
da diversidade estilística da música tradicional portuguesa de ambas as proveniências, rural e urbana, bem como do carácter individual de cada compositor, mais ou menos influenciado por estilos musicais estrangeiros, resultou a variedade de estilos musicais associados à música e à canção de intervenção. (Côrte-Real, 2010, p. 221)
As escolhas de cantores e de canções de intervenção que dicionaristas e outros estudiosos têm quase sempre acolhido fazem crer que, de facto, esta associação possui fronteiras, impedindo que essa “variedade de estilos musicais” saia de uma certa amarra “nacionalizante”. Mesmo que haja músicos e académicos que parecem descartar essa visão. Foi o caso do músico José Afonso, para quem
a canção de intervenção implica[va] um envolvimento como identificação crescente do próprio cantor com aquilo que se está a passar nas diversas lutas por mais heterogéneas que sejam, nas quais ele de certo modo intervém, não apenas ao nível da canção. A sua identificação com essa luta compromete-o como homem político. (Afonso, 1977, tal como citado em Côrte-Real, 2010, p. 221)
E é o caso do investigador David McDonald, que
se refere ao termo “canção de protesto” não como uma categoria baseada somente em atributos estilísticos, mas como um conjunto de práticas que podem ser lidas em articulação com processos músico-políticos identificados em projetos alargados de mudança social. (McDonald, 2013, tal como citado em Castro, 2015, p. 3)
Definir um (sub)género musical na base da padronização de modelos rítmicos/melódicos cujo ponto de convergência central é a crítica social (de pendor anticolonialista, antissalazarista, antifascista, etc.) encontrará sérias dificuldades em explicar a ausência, nesta memória histórica em particular, de músicas que seguem esse padrão: os já citados temas “Bicho do Mato” do Duo N’Gola e “Meninos do Huambo” de Ruy Mingas são dois exemplos. Seja como for, o uso do critério melódico para a definição de música de protesto implica a exclusão de formas melódicas de matriz não-europeia.29 Pretendendo ser politicamente neutro, este critério nunca o consegue ser.
Este conjunto de argumentos concatena-se com o modo como foi sendo (re)construída a identidade nacional na ex-metrópole. Neste caso, nas ruínas do legado de um Estado ditatorial desacreditado interna e externamente, a nação deixou de ser imaginada como multirracial (Vale de Almeida, 2000). O esforço de renovação identitária acabou, no que respeita à produção histórica da música revolucionária, por não se livrar de um viés eurocêntrico (ainda que sob novas roupagens).
Conclusão
Pouco mais de meia dúzia de músicos angolanos tiveram trajetórias europeias marcadas pelas lutas de libertação dos movimentos independentistas, dos angolanos, dos negros, de África, uma “luta [que] almejava, enfim, produzir a vida, eliminar as forças que, no contexto colonial, concorriam para mutilá-la, desfigurá-la e até destruí-la” (Mbembe, 2019, p. 246). O esvaziamento genérico que caracteriza, em Portugal, a memória histórica acerca das expressões musicais angolanas - ou produzidas por angolanos - alinhadas com o “espírito” de Abril é tributária não apenas de um processo de “militarização” do conceito de combatente da liberdade (Lopes, 2013), mas também - e é esse o argumento central - do facto de a produção histórica, representada aqui pela produção enciclopédica do Estado Novo/25 de Abril, ter vindo a ser, regra geral, encapsulada dentro de um recorte nacionalista e de perspetivas eurocêntricas sobre a identidade nacional.
A memória oficial do império em Portugal e a memória da maioria dos que viveram debaixo desse regime são mundos tangenciais que poucas vezes se encontram. Espera-se, no entanto, que este confronto de memórias facilite a compreensão de algumas tensões sociais que perduram ainda na sociedade portuguesa pós-colonial.