Introdução1
A discriminação em razão da deficiência é uma das formas de discriminação mais silenciadas (Martins, 2006, p. 9), nomeadamente no plano laboral. Este fenómeno radica em vários fatores, entre os quais na ideia falaciosa de que as pessoas com deficiência são necessariamente menos produtivas, constituindo fatores de disrupção nas estruturas empresariais e entraves ao seu funcionamento, mas, sobretudo, no argumento de que representam inevitavelmente um custo acrescido para as empresas e organizações. Essa visão das pessoas com deficiência em contexto de trabalho, associada a uma resposta social desajustada, tem contribuído para a estigmatização, a marginalização e a assunção automática da sua condição de vulnerabilidade sem atender à capacidade humana de adaptação (Slorach, 2016, pp. 248-249), bem como para elevados níveis de desemprego comparativamente com as pessoas sem deficiência (Pinto et al., 2022).
Em Portugal, a tutela laboral das pessoas com deficiência ou com doença, nomeadamente crónica e oncológica, tem respaldo em instrumentos jurídicos nacionais, mas também internacionais e europeus aplicáveis ao ordenamento jurídico português. Um dos principais desafios colocados à abordagem da proteção laboral na deficiência prende-se com a delimitação do seu âmbito objetivo e subjetivo que se relaciona com o conceito de deficiência. Ora, a noção de deficiência, que se projeta em vários domínios (Araújo, 2001), não é estática e tem vindo a sofrer mutações em função de diferentes modelos teóricos adotados para a sua concetualização (Colominas, 2018; Moreira, 2013; Oliver, 1990). Na evolução recente do conceito de deficiência podem destacar-se quatro grandes modelos: o modelo médico, cujo enfoque é a superação das incapacidades do indivíduo, recorrendo à medicina e à reabilitação, reduzindo o indivíduo à(s) sua(s) incapacidade(s). Em contraponto, e inspirado nas reivindicações resultantes do movimento das pessoas com deficiência nos Estados Unidos da América (EUA) e no Reino Unido (RU) dos anos 1970, o modelo social deixa de conceber a deficiência enquanto problema individual, passando a perspetivá-la como uma forma de opressão social. Ao salientar as barreiras que impedem a plena participação das pessoas com deficiência nas várias dimensões da vida social e que se traduzem, em muitos casos, na falta de respostas societais à diferença, enfatiza-se a necessidade de uma mudança coletiva. Contudo, o modelo social foi também sendo alvo de críticas por subavaliar ou mesmo excluir o corpo como dimensão de análise. Assim surge o modelo biopsicossocial, que procura ultrapassar as insuficiências dos dois modelos que o antecederam, propondo uma conceptualização da deficiência na intersecção entre dimensões sociais, biológicas e psicológicas. Partilhando desta visão mais abrangente, o modelo de Direitos Humanos emergiu recentemente, centrado na afirmação da dignidade de toda a pessoa humana e assente no desenho de um regime legal de promoção da participação das pessoas com deficiência (Moreira, 2013) que coloca o indivíduo no centro das decisões que lhe dizem respeito (Lawson & Beckett, 2021). Acolhendo o mencionado modelo de Direitos Humanos, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD),2 datada de 2006 e adotada por Portugal em 2009, tem promovido uma mudança de paradigma nesta nova compreensão da deficiência, procurando dar voz às pessoas com deficiência, sob o lema “Nada sobre nós sem nós”. A CDPD tem, assim, vindo a alavancar um conjunto de políticas públicas em Portugal com vista à efetivação dos direitos das pessoas com deficiência (Fontes & Martins, 2023).
Este artigo parte de uma interpretação ampla e relacional (Waddington & Priestley, 2020) do conceito de pessoa com deficiência, em linha com o disposto no artigo 1.º da CDPD, nos termos do qual se incluem aqueles que têm incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que em interação com várias barreiras podem impedir a sua plena e efetiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros. A apreciação que tem vindo a ser feita da noção de pessoa com deficiência, no quadro da aplicação da 2000/78/CE, do Conselho Europeu, de 27 de novembro (de agora em diante, Diretiva 2000/78),3 que estabelece um quadro geral para a igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional, interpretada em conformidade com a CDPD, tem vindo a acomodar situações de doença mesmo em situações em que há dúvidas na sua qualificação como doença crónica (Neto, 2021).
Assim, a garantia de proteção da discriminação em razão da deficiência decorre de várias fontes internacionais e europeias, onde se pode destacar as referidas CDPD e Diretiva 2000/78, mas também a Constituição da República Portuguesa e a legislação laboral vigente que deve acomodar esta visão dinâmica da deficiência. Ora, as pessoas com deficiência, à semelhança das pessoas sem deficiência, apresentam um leque de necessidades e capacidades muito diverso e variado. No entanto, no quadro de uma sociedade marcadamente individualista, resultante do modelo de produção capitalista dominante que, em regra, não atende às necessidades específicas das pessoas com deficiência e tão pouco às suas potencialidades, as medidas de adaptação razoável do local de trabalho assumem um papel fundamental para garantir a manutenção da relação laboral e combater a discriminação com base na deficiência. A tutela do direito ao acesso e à manutenção do emprego das pessoas com deficiência, na qual se enquadra a adaptação razoável do posto de trabalho, é, com efeito, essencial para travar processos de desfiliação (Castel, 2008), uma vez que a marginalização radica na condição de vulnerabilidade motivada pela precariedade no trabalho e pelo enfraquecimento das relações de suporte que afastam o indivíduo do sistema.
Partindo desta assunção, o presente artigo pretende compreender, a partir de um inquérito e de entrevistas realizadas a pessoas com deficiência e/ou com doença com experiência profissional, se as soluções jurídicas oferecidas pelo ordenamento jurídico português no domínio das medidas de adaptação razoável são adequadas, se o direito em apreço é conhecido e é exercido pelos seus titulares, e se o mesmo é reconhecido e implementado pelas entidades empregadoras.
1. O conceito de adaptação razoável no ordenamento jurídico internacional e nacional
A Diretiva 2000/78, acima referida, foi transposta para o ordenamento jurídico português pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, que aprovou o Código de Trabalho (CT) de 2003, e pela Lei n.º 35/2004 de 29 de julho, que procedeu à sua regulamentação, bem como pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou o CT de 2009 e, posteriormente, pela Lei n.º 3/2011, de 15 de fevereiro,4 aplicável ao acesso e exercício do trabalho independente nos setores privado, cooperativo e social, na administração pública central, regional e local, nos institutos públicos e em quaisquer pessoas coletivas de direito público, estabelecendo um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional.
No seu artigo 5.º, a Diretiva 2000/78 consagra o conceito de adaptação razoável, nos termos do qual a entidade empregadora deve adotar medidas eficazes e práticas destinadas a adaptar o local de trabalho em função das necessidades das pessoas com deficiência: adaptações das instalações ou equipamentos, ritmos de trabalho, atribuição de funções ou oferta de meios de formação. Contudo, determina ainda que “Os encargos não são considerados desproporcionados quando forem suficientemente compensados por medidas previstas pela política do Estado-Membro em causa em matéria de pessoas deficientes”. Nestas medidas enquadram-se apoios públicos ou benefícios atribuídos às empresas que contratem pessoas com deficiência. Sem prejuízo, como também é alertado pela doutrina, é “confuso e injusto” imputar os encargos da adaptação razoável apenas à deficiência e não à resposta social adversa às pessoas com deficiência (Clements & Read, 2008).
Posteriormente, o artigo 2.º da CDPD, confirmando a centralidade deste direito como forma de tutelar o direito ao acesso e à manutenção do emprego, veio definir “adaptação razoável” nos seguintes termos:
“Adaptação razoável” designa a modificação e ajustes necessários e apropriados que não imponham uma carga desproporcionada ou indevida, sempre que necessário num determinado caso, para garantir que as pessoas com incapacidades gozam ou exercem, em condições de igualdade com as demais, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que tem por missão interpretar e aplicar uniformemente o Direito da União Europeia (UE) em todos os Estados-Membros, tem tido um papel decisivo na interpretação e densificação do conceito de deficiência e da conformidade dos regimes jurídicos nacionais com a Diretiva 2000/78, tendo-se verificado uma mudança na interpretação do conceito de deficiência decorrente das implicações da ratificação da CDPD por parte da UE (Giermanowska et al., 2020; Moreira, 2014; Neto, 2021; Rouxinol, 2017). Nesse contexto, o TJUE tem vindo a acomodar situações de doença sempre que, no caso concreto, os fundamentos de discriminação se manifestem de forma idêntica aos da deficiência, considerando que aquelas podem ser entendidas como deficiência para efeitos da aplicação da Diretiva 2000/78 e da CDPD.
Importa salientar que, no quadro da UE, o combate a outras formas de discriminação como, por exemplo, em razão da origem étnico-racial ou nacionalidade, enquadra-se na lógica de mercado, uma vez que estão em causa fatores de discriminação que se podem tornar obstáculos à liberalização dos mercados e à livre circulação de pessoas e de trabalhadores/as. Convém dar nota que muitos dos/das trabalhadores/as em apreço são provenientes de países com elevados níveis de degradação das condições de trabalho e de desemprego, pelo que estão disponíveis para aceitar condições de trabalho mais precárias e salários mais baixos. A discriminação das pessoas com deficiência em contexto laboral tem frequentemente respaldo na ideia de que representam um custo acrescido. Esse pressuposto acomoda-se nos quadros teóricos da Economia neoclássica, que subsumem a realidade a uma racionalidade artificial, não têm em conta nem a dimensão social da inclusão das pessoas com deficiência, nem o valor acrescentado da diversidade no quadro da Economia Política dos Direitos Humanos (Branco, 2012). Tal como a doutrina jurídica alerta, é “confuso e injusto” imputar os encargos da adaptação razoável apenas à deficiência e não à resposta social adversa às pessoas com deficiência (Clements & Read, 2008).
A maioria dos casos em que o TJUE se refere à CDPD são, pois, referentes à definição adequada de deficiência para efeitos de aplicação da Diretiva 2000/78 e/ou o entendimento da obrigação de realizar uma adaptação razoável que esta consagra. O artigo 27.º da CDPD, que consagra o direito das pessoas com deficiência a trabalhar em condições de igualdade em relação aos/às demais trabalhadores/as, é frequentemente citado pela jurisprudência, ainda que raramente objeto de uma efetiva interpretação (Waddington, 2018).
A tutela da discriminação das pessoas com deficiência no plano laboral integra medidas distintas nos três momentos essenciais da relação contratual: no acesso ao emprego, na sua pendência - isto é, enquanto o contrato vigora -, mas também aquando da cessação contratual.
Na fase de acesso ao emprego são de realçar as medidas de discriminação positiva, designadamente o sistema de quotas que, em Portugal, vigora no setor público (Neca, 2019) e privado, bem como a proteção em razão da discriminação plasmada nos artigos 23.º e seguintes do CT.
Na pendência do contrato, os mecanismos de tutela com maior destaque são a adaptação razoável do posto de trabalho, prevista no artigo 86.º do CT e também mencionada no artigo 84.º do CT, e as medidas de discriminação positiva, nomeadamente as consagradas nos artigos 86.º a 88.º do CT, tais como a especial proteção na parentalidade, mudanças no regime de faltas e licenças, dispensa de modalidades de flexibilização de tempo de trabalho. Convém salientar que as medidas de ação positiva são destinadas a um grupo de trabalhadores/as que reúnam uma determinada característica que os coloca em desvantagem, enquanto a adaptação razoável é como um fato à medida de uma pessoa com deficiência e visa responder às suas necessidades concretas. No entanto, pese embora estejam em causa dois conceitos distintos (Waddington & Bell, 2021), o artigo 86.º do CT não trata de forma desagregada os dois conceitos.
Na fase do término do contrato, a tutela da discriminação das pessoas com deficiência em contexto laboral repousa, sobretudo, em restrições ao recurso a certas modalidades de cessação do contrato de trabalho, designadamente a caducidade do contrato por impossibilidade superveniente e definitiva do trabalhador prestar trabalho (Vicente, 2019). A validade da cessação do contrato deve ser aferida em função da disponibilização prévia de medidas de adaptação razoável do posto de trabalho, designadamente da verificação da existência de um posto de trabalho adequado, à semelhança do que acontece em modalidades de despedimento por causas objetivas, como o despedimento por inadaptação ou por extinção do posto de trabalho (Vicente, 2019).
A adaptação razoável do posto de trabalho pretende eliminar, de forma individualizada, barreiras que são erigidas às pessoas com deficiência ou com doença, nomeadamente crónica ou oncológica. A título exemplificativo, temos o caso de um trabalhador com deficiência motora que não tem acesso ao local de trabalho em virtude de não existirem rampas de acesso ou que não tem casa de banho adaptada, ou o caso de um trabalhador surdo a quem não é facultado software adequado para o desempenho das suas funções ou ainda uma enfermeira, com doença oncológica e a realizar tratamentos de quimioterapia, a quem se solicita a realização de tarefas proibidas ou desaconselhadas como a mobilização de doentes.
A eficácia do regime jurídico aplicável à adaptação razoável do posto de trabalho pressupõe uma correta delimitação do âmbito subjetivo dos seus beneficiários, uma compreensão clara da necessidade (ou não) de um procedimento prévio desencadeado pela pessoa com deficiência que pretenda beneficiar da medida, e a densificação dos conceitos de “adaptação razoável” e “encargo desproporcionado” (Neto, no prelo). O principal obstáculo à aplicação do direito em apreço relaciona-se com os custos que pode comportar para a entidade empregadora, devendo atender-se à dimensão e/ou situação financeira da mesma (Martínez, 2015). A concretização destes conceitos terá de surgir no quadro de uma avaliação das políticas implementadas pelos Estados destinadas a mitigar os custos acrescidos que resultem das medidas de adaptação razoável necessárias.
2. Metodologia
Para responder aos objetivos deste trabalho foi adotada uma abordagem mista, através da realização de um estudo quantitativo, por questionário a pessoas com deficiência (Estudo 1; N = 195), e de um estudo qualitativo, por entrevista a pessoas com deficiência (Estudo 2; N = 8). Esta opção metodológica pareceu-nos particularmente adequada porque, por um lado, permitiu de forma mais extensiva conhecer uma realidade ainda pouco estudada em Portugal e, consequentemente, sobre a qual pouco se sabe, e por outro lado, de modo complementar, possibilitou uma compreensão mais aprofundada das experiências e perceções das pessoas com deficiência relacionadas com a disponibilização de adaptações razoáveis em contexto laboral. Em seguida apresentam-se os procedimentos adotados para a realização de ambos os estudos.
2.1. Inquérito por questionário (Estudo 1)
2.1.1. Procedimento de recolha de dados
Para a recolha de dados, recorreu-se a um tipo de amostragem não probabilística, do tipo intencional, onde se solicitou a colaboração de pessoas com deficiência ou com doença crónica com experiência profissional (no setor público ou privado, incluindo estagiários/as e prestadores/as de serviços). A divulgação do questionário foi feita através da base de dados do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, pedindo às entidades parceiras do mesmo que divulgassem o estudo através dos seus contactos, utilizando os meios considerados adequados. A participação dos/das inquiridos/as era voluntária, anónima e não teve qualquer tipo de compensação monetária. A recolha de dados decorreu entre maio e julho de 2022. O preenchimento do inquérito demorou, em média, cerca de 15 minutos. Para a elaboração do questionário recorreu-se à ferramenta Google Forms. A aplicação de questionários online tem sido considerada adequada quando as populações em estudo são difíceis de aceder, sendo este o caso das pessoas com deficiência (Whitehead, 2007). Porém, também existem algumas desvantagens associadas à utilização deste procedimento, tais como a eventual exclusão de pessoas sem acesso à Internet ou com menos escolaridade, podendo contribuir para possíveis enviesamentos da amostra.
2.1.2. Amostra
A amostra deste primeiro estudo foi constituída por 195 participantes, com idades compreendidas entre os 21 e os 78 anos (M = 45,23 anos; DP = 10,91). Todos/as responderam que se identificavam como “pessoa com deficiência e/ou incapacidade, doença crónica ou risco agravado de saúde”. A maioria dos participantes eram mulheres (58,5%), tinham o ensino superior (53,8%) e deficiência adquirida (58,5%). Esta teve origem, maioritariamente, em situações de doença crónica (74,6%), e ocorreu há mais de 10 anos (57,9%). Cerca de – dos/das inquiridos/as (75,9%) responderam que dispunham do Atestado Médico de Incapacidade Multiusos, sendo o grau de incapacidade igual ou superior a 60% em 77,7% dos casos (ver Tabela 1). Em termos geográficos, foram recebidas respostas dos 18 distritos de Portugal continental e também das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. Porém, quase metade das pessoas inquiridas residia nos distritos de Lisboa (33,8%) e do Porto (15,4%).
n | % | |
---|---|---|
Sexo (N = 195) | ||
Feminino | 114 | 58,5 |
Masculino | 81 | 41,5 |
Habilitações Literárias (N = 195) | ||
2.º Ciclo do Ensino Básico | 6 | 3,1 |
3.º Ciclo do Ensino Básico | 21 | 10,8 |
Ensino Secundário | 63 | 32,3 |
Ensino Superior | 105 | 53,8 |
Tipo de deficiência (N = 195) | ||
Congénita | 81 | 41,5 |
Adquirida | 114 | 58,5 |
Origem da deficiência adquirida (N = 114) | ||
Doença profissional | 1 | 0,9 |
Acidente de trabalho | 8 | 7,0 |
Doença crónica | 85 | 74,6 |
Acidente | 20 | 17,5 |
Há quanto tempo adquiriu incapacidade? (N = 114) | ||
Há menos de 10 anos | 39 | 34,2 |
Há 10 ou + anos | 66 | 57,9 |
Não responde | 9 | 7,9 |
Atestado Médico de Incapacidade Multiusos (N = 195) | ||
Sim | 148 | 75,9 |
Não | 47 | 24,1 |
% de incapacidade no atestado multiusos (N = 148) | ||
Menos de 30% | 1 | 0,7 |
30 a 60% | 30 | 20,3 |
61 a 80% | 75 | 50,7 |
Mais de 80% | 40 | 27,0 |
Não sabe/Não responde | 2 | 1,3 |
Fonte: elaboração das autoras.
Todas as pessoas inquiridas responderam que tinham experiência profissional prévia. No período temporal em que decorreu o estudo, 80,5% da amostra estava a trabalhar. Das pessoas que responderam encontrar-se em situação de desemprego (12,8%), na maioria dos casos o vínculo tinha terminado por iniciativa da entidade empregadora (52%) e por caducidade ou não renovação do contrato a termo (64%). Quase metade do grupo inquirido (46,7%) trabalhava (ou já tinha trabalhado) no setor privado, sendo que 51,3% trabalhava (ou já tinha trabalhado) numa grande empresa (com mais de 250 trabalhadores/as) e que o tipo de contrato mais referido foi “por tempo indeterminado” (53,3%) (ver Tabela 2).
n | % | |
---|---|---|
Situação profissional atual (N = 195) | ||
Trabalhador/a (inclui estagiários/as e prestadores/as de serviços) | 157 | 80,5 |
Reformado/a | 13 | 6,7 |
Desempregado/a | 25 | 12,8 |
Se desempregado/a, o vínculo terminou (N = 25) | ||
Por sua iniciativa | 6 | 24,0 |
Por acordo com a entidade empregadora | 6 | 24,0 |
Por iniciativa da entidade empregadora | 13 | 52,0 |
Se desempregado/a, o vínculo terminou (N = 25) | ||
Depois do período experimental | 9 | 36,0 |
Por caducidade ou não renovação do contrato a termo | 16 | 64,0 |
Tipologia do contrato atual/último contrato (N = 195) | ||
A termo certo ou incerto | 72 | 36,9 |
Por tempo indeterminado | 104 | 53,3 |
Estágio profissional | 13 | 6,7 |
Contrato de prestação de serviços (“recibos verdes”) | 6 | 3,1 |
Tipo de organização onde trabalha ou trabalhou (N = 195) | ||
Empresa do setor privado | 91 | 46,7 |
Organização sem fins lucrativos | 34 | 17,4 |
Governo central ou local | 20 | 10,3 |
Outro setor da administração pública (como educação ou a saúde) | 42 | 21,5 |
Uma empresa do Estado | 8 | 4,1 |
Dimensão da organização onde trabalha ou trabalhou (N = 195) | ||
Micro (menos de 10 trabalhadores/as) | 20 | 10,3 |
Pequena (entre 10 a 50 trabalhadores/as) | 26 | 13,3 |
Média (entre 50 a 250 trabalhadores/as) | 42 | 21,5 |
Grande (mais de 250 trabalhadores/as) | 100 | 51,3 |
Não sabe | 7 | 3,6 |
Fonte: elaboração das autoras.
2.1.3. Instrumento
O questionário utilizado para a recolha de dados deste estudo foi criado pelas autoras deste artigo. O questionário continha 41 perguntas, distribuídas por seis secções, que passamos a descrever. A primeira secção englobava duas questões para validação de critérios de inclusão na amostra (ter deficiência e experiência profissional). A segunda secção continha 11 questões solicitando dados de caracterização sociodemográfica. Na terceira secção solicitava-se informação detalhada sobre a situação profissional (sete questões). A quarta secção incluía 13 questões sobre adaptações razoáveis, tais como: i) conhecimento sobre adaptações razoáveis utilizando uma escala dicotómica “Sim/Não”; ii) posicionamento face às adaptações razoáveis aferido através de oito afirmações (por exemplo: “As adaptações razoáveis são medidas muito justas”), usando cinco níveis de resposta de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente); iii) caracterização do/da inquirido/a sobre disponibilização (“total”; “parcial”; “não disponibilizada”; “não necessária”) de um conjunto de 11 medidas de adaptação razoável (como a “redução de horário de trabalho”); iv) duas questões sobre o impacto da disponibilização (ou não) das adaptações razoáveis (por exemplo, “ter autonomia no desempenho da minha atividade profissional”), usando uma escala de 1 (discordo totalmente) a 4 (concordo totalmente); v) quatro questões dicotómicas (por exemplo, “a entidade empregadora recorreu a apoios do Estado para a disponibilização de adaptações razoáveis”); vi) três questões abertas (uma delas relativa às medidas de adaptação razoável disponibilizadas devido à pandemia); e vii) uma questão específica para as pessoas desempregadas sobre se o término do seu contrato de trabalho esteve relacionado com a eventual não disponibilização de adaptações razoáveis. A quinta secção incidia sobre a temática do assédio no trabalho, pedindo-se aos participantes para assinalarem com que frequência, numa escala de 1 (nunca) a 5 (muito frequentemente) ocorriam certas situações devido à incapacidade ou doença (exemplo: “alguma vez sentiu que o seu trabalho foi/é sistematicamente desvalorizado”). Por último, a sexta secção era constituída por sete questões para aferir se as pessoas recorriam aos mecanismos legais disponíveis para fazer cumprir o direito às adaptações razoáveis.
A análise de dados foi feita com recurso ao software estatístico IBM SPSS (versão 28.0.0.0) e neste artigo, por uma questão de economia de espaço e de coerência temática, apenas se excluíram os dados da secção sobre assédio, bem como as respostas às perguntas abertas. Em termos de procedimentos analíticos recorreu-se à análise descritiva (tabelas de frequências), e em algumas situações, realizou-se o teste de qui-quadrado, para aferir se existia associação entre algumas variáveis e informação sociodemográfica.
2.2. Entrevistas semiestruturadas (Estudo 2)
Como mencionado anteriormente, foi conduzido um segundo estudo, desta vez qualitativo, através da realização de entrevistas semiestruturadas a oito pessoas com deficiência, tendo por objetivo explorar o seu posicionamento sobre o direito à adaptação razoável. As entrevistas foram realizadas a pessoas inquiridas que se mostraram disponíveis para tal no final do questionário do Estudo 1 e foram conduzidas por uma das investigadoras do projeto durante o mês de outubro de 2022, tendo as mesmas decorrido presencialmente, exceto uma delas que, por conveniência do/da entrevistado/a, foi realizada online. Cada entrevista durou aproximadamente uma hora. As entrevistas foram gravadas com consentimento das pessoas entrevistadas e transcritas verbatim.
2.2.1. Caracterização dos/das entrevistados/as
Todas as pessoas entrevistadas tinham deficiência, seja congénita (n = 5) ou adquirida (n = 3) e experiência profissional (n = 8). Quatro eram mulheres, quatro eram homens, e as suas idades eram compreendidas entre os 33 e os 72 anos. Em termos de habilitações literárias, a maioria das pessoas entrevistadas eram licenciadas, com exceção de duas delas que tinham o ensino secundário concluído (ver Tabela 3).
Código | Sexo | Idade | Habilitação | Tipo de deficiência* | Profissão/Situação laboral |
---|---|---|---|---|---|
E1 | F | 61 | Licenciatura | Congénita | Dietista/Aposentada (setor público) |
E2 | M | 50 | Licenciatura | Adquirida | Advogado/Funcionário público |
E3 | M | 45 | Ensino Secundário | Adquirida | Administrativo/Trabalhador empresa de tecnologia (setor privado) |
E4 | F | 48 | Licenciatura | Congénita | Jurista/Funcionária pública |
E5 | F | 38 | Licenciatura | Congénita | Professora/Professora setor privado (Ensino) |
E6 | F | 33 | Licenciatura | Congénita | Psicóloga/Desempregada |
E7 | M | 72 | Licenciatura | Congénita | Funcionário sindical |
E8 | M | 37 | Ensino Secundário | Adquirida | Administrativo/Trabalhador setor privado (ramo hoteleiro) |
* Todos/as os/as entrevistados/as, à exceção da pessoa entrevistada E5, tinham deficiência física ou sensorial, e incapacidade igual ou superior a 60%. Fonte: elaboração das autoras
A elaboração do guião das entrevistas foi orientada pelas perguntas do questionário e também pelos resultados do mesmo, uma vez que as entrevistas foram realizadas posteriormente ao preenchimento do questionário. As entrevistas semiestruturadas exploraram os seguintes tópicos: percurso profissional das pessoas entrevistadas, perceção de situações de discriminação em contexto laboral, tipo de medidas de adaptação razoável que foram sendo facultadas ao longo desse mesmo percurso, impactos das medidas, posicionamento das entidades patronais face à necessidade de disponibilizar adaptações razoáveis, entre outros. Em seguida, apresentam-se os resultados dos dois estudos.
3. Resultados
3.1. Conhecimento sobre o direito à adaptação razoável
A grande maioria dos participantes no estudo respondeu conhecer o direito à adaptação razoável do posto de trabalho (65,6%). Porém, importa referir que ter Atestado Médico de Incapacidade Multiusos (AMIM) está associado a um maior conhecimento desse direito, sendo a relação entre as variáveis estatisticamente significativa (X2 (1, N = 195) = 9.738, p = .002). Com efeito, 71,6% das pessoas inquiridas que tinham AMIM (n = 148), conheciam este direito; já entre as que não tinham AMIM (n = 47), apenas 46,8% conheciam esta lei.
3.2. Perceções sobre medidas de adaptação razoável
Uma larga maioria dos/das inquiridos/das “concorda” ou “concorda totalmente” (perfazendo um total de 76,4% das respostas) que as medidas de adaptação são justas e, numa proporção mais elevada ainda (81,5%), “concorda” ou “concorda totalmente” que elas são uma forma eficaz de eliminar a discriminação no acesso ao emprego das pessoas com deficiência (ver Figura 1).
Ainda assim, uma das pessoas entrevistadas apontou as persistentes lacunas de informação em torno das questões da deficiência e revelou desconhecer os seus direitos: “Nós não sabemos quais são os direitos que temos. Só se nós formos muito atrás da informação e mesmo assim […] é difícil” (E5).
Também no questionário este dado foi salientado. Se uma parte significativa das pessoas inquiridas (79,2%) considerou que a legislação existente em matéria de adaptação razoável é boa embora não esteja a ser cumprida, muitas também expressaram preocupação com o desconhecimento que grassa em torno destas medidas: neste sentido, 69,8% consideraram que as entidades empregadoras não conhecem o direito à adaptação razoável e uma esmagadora maioria (95,9%) “concorda” ou “concorda totalmente” que o Estado deveria divulgar mais informação sobre adaptações razoáveis e os apoios que tem disponíveis. O desconhecimento sobre o direito à adaptação razoável é, aliás, percebido como comum entre as pessoas com deficiência: 80% das pessoas inquiridas entendem que as pessoas com deficiência têm pouco conhecimento sobre este direito.
A este propósito, uma das pessoas entrevistadas comentava: “Temos de clarificar que tipo de adaptações é que podem ser adaptações razoáveis” (E7). Em parte, possivelmente, por causa deste desconhecimento generalizado, 59,4% das pessoas inquiridas “concordam” ou “concordam totalmente” que, por vezes, as medidas de adaptação são percebidas como injustas pelos colegas de trabalho, o que também confirma a necessidade de uma maior sensibilização para a importância do direito à adaptação razoável.
Algumas das pessoas entrevistadas referiram igualmente a forma como colegas de trabalho percecionam as medidas de adaptação razoável, designadamente aquelas que implicam apoio nas tarefas laborais ou em atividades de rotina realizadas para aceder ao local de trabalho e durante o horário de trabalho. Uma das entrevistadas aludia, por exemplo, à falta de apoio dos colegas - “Senti-me completamente ilhada” (E1) - enquanto um outro relatou episódios concretos em que necessitou de ajuda e a perceção alheia dessas situações: “Uma vez tive de pedir ajuda a uma colega minha para me vir ajudar a sair do carro porque a porta não parava… Abria a porta e o vento fechava-me a porta. E isto, às vezes, é mal interpretado”. E concluía afirmando que: “diretamente não sou discriminado. Em termos emocionais sou. As pessoas pensam ‘lá está este’” (E8).
Não é despiciendo que o desconhecimento sobre as medidas de adaptação razoável surge articulado com uma perceção social errada sobre as capacidades das pessoas com deficiência, descrita pelas pessoas entrevistadas. Como uma das entrevistadas indicava, “para pessoas com alguma incapacidade… a sociedade não está preparada para adaptações” (E1). No mesmo sentido, outra pessoa entrevistada (E2) afirmou: “Noto um total desconhecimento das capacidades que as pessoas têm”, associando esse desconhecimento à discriminação: “A discriminação noto no comportamento […], a forma como lidam diariamente comigo, […] muitas vezes eu finjo que nem ouço o que as pessoas dizem…”. Como exemplo dessa atitude de desconhecimento, a pessoa entrevistada, que era uma pessoa com deficiência visual, referiu uma entrevista onde lhe perguntaram “Como é que vocês conseguem ler?”.
Já uma outra pessoa entrevistada realçava:
Há sempre o receio de as pessoas pensarem que não somos capazes de fazer o trabalho que outras pessoas normais fazem. […] Sei que houve pessoas que colocaram a referência que tinham deficiência e não foram selecionadas e depois retiraram e chamaram-nas para a entrevista. […] Depois as pessoas percebem que somos capazes de fazer o trabalho igual ou, às vezes, até melhor. […] Não será pela tecnologia nem pela falta de conhecimentos na minha área profissional, mas quando enviamos candidaturas para uma vaga e quando somos sinceros e dizemos que temos uma deficiência isso faz com que as pessoas nos descartem, por desconhecimento, por acharem que não vamos fazer a nossa função convenientemente. […] A decisão de contratar pessoas com deficiência é uma exceção: isto é tão raro, então eu tenho de mostrar que esta decisão é benéfica para ela. (E6)
Uma outra pessoa entrevistada, a propósito do seu problema de saúde, insuficiência renal, fez também menção à barreira do desconhecimento, referindo que “Há um trabalho a fazer no plano da educação […] e no plano da formação para aceitar as pessoas que têm deficiência e para os responsáveis de recursos humanos poderem aceitar esses problemas como naturais” (E7).
3.3. Medidas de adaptação razoável necessárias e disponibilizadas
O inquérito fazia menção a um conjunto de medidas de adaptação razoável: i) redução de horário, ii) flexibilização de horário, iii) mobilidade geográfica, iv) mobilidade funcional, v) aumento do número ou duração das pausas, vi) autorização para teletrabalho, vii) aquisição de software, equipamentos ou ferramentas especiais de trabalho, viii) modificações no edificado como instalação de rampas, alargamento de portas, adaptação de casa de banho, etc., ix) alargamento do número de dias de férias, x) alargamento dos dias de faltas justificadas pela entidade empregadora, xi) verificação de posto de trabalho compatível, com o objetivo de perceber quais são as medidas que os/as trabalhadores/as entendem como necessárias para si e, em caso afirmativo, se a medida em causa foi ou não disponibilizada.
Os resultados a este respeito estão, naturalmente, relacionados com o tipo e grau de deficiência do grupo de participantes, uma vez que há medidas que podem não ser consideradas necessárias para certas pessoas, mas serem-no para outras. Feita esta ressalva, os resultados do inquérito indicam que a maioria (50% ou mais) das pessoas inquiridas que trabalham referiram não necessitar das medidas de adaptação razoável. Esta percentagem apenas desceu no caso da medida de “flexibilização do horário de trabalho” (referida como não necessária por apenas 39% das pessoas inquiridas), “alargamento dos dias de férias” (não necessária para somente 43% de inquiridas/os) e “verificação de posto de trabalho compatível” (assinalada como não necessária por cerca de 45% das pessoas inquiridas). Ainda assim, um subgrupo, de dimensão variável de acordo com a medida considerada, apontou necessidades que nalguns casos foram “totalmente disponibilizadas”, noutros apenas “parcialmente disponibilizadas”, mas noutros ainda “não disponibilizadas”.
Tal como apresentado na Figura 2, as medidas que foram mais expressivamente selecionadas como necessárias e não disponibilizadas pelos empregadores foram a redução de horário (33,3%), o alargamento dos dias de faltas justificadas pela entidade empregadora (33,3%), o alargamento do número de dias de férias (32,3%) e a verificação do posto de trabalho compatível (30,8%). Já dentro das medidas de adaptação totalmente disponibilizadas pelas entidades empregadoras contam-se em maior percentagem as medidas que se referem à “autorização para teletrabalho” (17,9%),5 à “aquisição de software, equipamentos ou ferramentas especiais de trabalho” (15,9%), a “modificações no edificado como instalação de rampas, alargamento de portas, adaptação de casa de banho, entre outros” (14,4%) e também à “verificação de posto de trabalho compatível” (14,4%). Nestes resultados é curioso assinalar que as medidas percebidas pelos/as trabalhadores/as como “necessárias mas não satisfeitas” se parecem direcionar mais ao bem-estar de quem trabalha, ao passo que as medidas percebidas como “necessárias e disponibilizadas” se afiguram como primordialmente dirigidas à facilitação do exercício da atividade profissional em sentido estrito. A verificação de posto de trabalho compatível é uma medida estruturante uma vez que supõe analisar, dentro da organização da empresa, se dentro da categoria profissional do/da trabalhador/a com deficiência e no âmbito das suas competências, há um posto de trabalho onde se poderia integrar. Embora seja digno de menção que 14,4% das pessoas inquiridas tenham indicado esta medida, porventura a clarificação inicial, no inquérito, sobre o que se entende por “verificação de posto de trabalho compatível” poderia ter levado a um resultado diferente.
Na mesma linha surgem os resultados das entrevistas realizadas. Duas das pessoas entrevistadas (E3 e E6) referiram que lhes foram disponibilizadas medidas de adaptação razoável, que passaram designadamente pela remoção de obstáculos no espaço envolvente, como a colocação de fios eletrónicos dentro de calha. Foi ainda ilustrada a importância das adaptações razoáveis para evitar acidentes de trabalho: “Acontecem muitas vezes acidentes com enfeites de Natal, iluminação, a árvore e outros eventos” (E3).
As entrevistas evidenciaram também dificuldades de articulação com os departamentos de recursos humanos e falta de sensibilidade no acompanhamento e perceção das suas necessidades: “Foi absolutamente desrespeitoso não me terem dado um espaço para o técnico fazer perguntas de foro clínico e estarem-me a fazer perguntas de foro clínico num open space onde é também feito atendimento ao público” (E4).
A mesma entrevistada referiu também retaliações e animosidade face ao pedido de adaptações razoáveis. A esse respeito relatou que, depois de fazer uma reclamação:
O então diretor sugeriu que eu fizesse um pedido de mobilidade para sair de lá quando eu reclamei do rato porque eu pedi um rato e, portanto, no primeiro dia que fui trabalhar, eu tive que usar o meu, mas fiquei absolutamente aflita do braço e das costas. Nesse mesmo dia […] encontrei um ratinho […] pequenininho que era ótimo para mim. E depois fiz um requerimento para comprarem um rato e dei o modelo. Seis meses depois o serviço comprou um com nenhuma das três características que indiquei: pequeno, leve e sem curvatura. (E4)
Esta entrevistada mencionou ainda que “houve um dia que eu fui ao gabinete do então diretor e ele virou-se para mim a dizer-me que eu estava a ser muito insistente, que não iam comprar nenhuma cadeira cara para mim” (E4), enquanto outra pessoa entrevistada declarou:
Estas adaptações têm sido a minha guerra, […] tenho sofrido isto de uma empresa que fatura milhões […] e não arranjava dinheiro para comprar uma cadeira cujo IVA é recuperado no imediato e ainda vai buscar o valor no IRC. […] O acesso ao refeitório no outro hotel implica subir uma rampa que eu não conseguia subir que era muito inclinada e escorregadia, mas ao meu pedido de adaptação, a resposta que obtive foi: “lá há sempre alguém, pede ajuda”. […] O chefe de cozinha é que teve o cuidado de adaptar as coisas para eu ter acesso à comida. Os recursos humanos ainda não perceberam. (E8)
3.4. Impactos da disponibilização e/ou não disponibilização de medidas de adaptação razoável
Torna-se, finalmente, interessante analisar o impacto, tal como percecionado pelos/as trabalhadores/as, da tomada e da não tomada de medidas que estes veem como necessárias. Assim, de acordo com os dados recolhidos através do questionário, cerca de 77% dos/das que beneficiaram de medidas de adaptação razoável consideraram que tal contribuiu para aumentar a sua autonomia no exercício de funções profissionais e um pouco mais de 82% “concordaram” ou “concordaram totalmente” que adquiriram maior autonomia na utilização dos espaços da organização (ver Figura 3). Em contrapartida, cerca de 56% dos/das participantes deste estudo que não obtiveram adaptações entendidas como necessárias, “concordam” ou “concordam totalmente” que a não disponibilização destas medidas limitou a sua autonomia no exercício da atividade profissional e cerca de 39% “concordam” ou “concordam totalmente” que tal limitou a autonomia na utilização dos espaços da organização.
Mais ainda, uma percentagem expressiva (40%) dos que se encontravam desempregados à data da inquirição, “concordam” ou “concordam totalmente” que o término do seu contrato de trabalho esteve relacionado com a não disponibilização de adaptações razoáveis.
Nas entrevistas foram igualmente apresentados exemplos do impacto da recusa de adaptações razoáveis. Uma das pessoas entrevistadas relatou: “Faleceu agora até uma professora com cancro que foi colocada a 200 quilómetros de sua casa” (E7). Na sequência dos pedidos de adaptação razoável que lhe foram negados, uma das entrevistadas (E1) acabou mesmo por se reformar e a respeito refere: “Foi muito violento para mim ter deixado de trabalhar assim compulsivamente. Eu gostava do que fazia.”
Contudo, e apesar da importância que parecem atribuir às medidas de adaptação razoável para uma boa inserção profissional, os dados do questionário revelam que só um quarto das pessoas inquiridas alguma vez contactou uma estrutura representativa de trabalhadores/as ou de pessoas com deficiência para obter ajuda ou informação relativamente a este assunto; e, embora destes, 23,1% tenha considerado a informação prestada bastante útil, somente 13,8% tomou alguma iniciativa na sequência desse contacto.
Mais ainda, de todas as pessoas inquiridas, só uma recorreu ao tribunal para ver o seu direito reconhecido. Como razões para não recorrer a processo judicial ressaltam-se (ver Figura 4): a perceção de que há pouca sensibilidade para o assunto (24,1% “concordaram” com esta afirmação e 21,5% “concordaram totalmente”), o receio de que o processo seja demasiado longo (23,1% “concordaram” com esta afirmação e 14,9% “concordaram totalmente”), a incapacidade de comportar os custos (17,9% “concordaram” e 18,5% “concordaram totalmente”) e o desconhecimento quanto às pessoas a quem recorrer (21,5% “concordaram” com esta afirmação e 13,8% “concordaram totalmente”). Houve também uma percentagem não negligenciável de pessoas que manifestou receio do despedimento (14,9% “concordou” e 13,3% “concordou totalmente”).
Também nas entrevistas identificámos vários obstáculos ao recurso aos tribunais, tais como as custas e as despesas associadas a uma ação judicial e as dificuldades em lidar psicologicamente com um processo judicial, como nos testemunhava esta entrevistada:
Pedi ajuda. Pedi informação a várias pessoas… Como eu estava também numa luta tão grande em termos de saúde, desisti. Pronto. Vi todas as portas a fecharem-se e eu não estava com capacidade psicológica para entrar em guerras de tribunais. Desisti. Ia ser tudo tão demorado e dispendioso que achei que não valia a pena. A gente estar em sítios onde não somos desejados… Também ficar ali ia ser muito complicado. (E1)
Outras pessoas entrevistadas referiram-se, ainda, ao mau ambiente de trabalho que o recurso à via judicial pode originar, bem como às despesas, como no seguinte excerto:
E o atrito que ficará, o desconforto que ficará no meu local de trabalho, porque eu recorri a tribunal! Eu gosto muito de ter um bom ambiente de trabalho. […] Depois há as despesas que poderemos ter, que eu posso poder vir a ter, para ir a tribunal, porque eu ganho muito pouco mesmo. (E5)
Nas entrevistas foram ainda questionadas formas adequadas de divulgar o direito à adaptação razoável tendo sido mencionada a necessidade de medidas: i) no local do trabalho, designadamente por via da medicina no trabalho (E5 e E7); ii) no domínio da educação e sensibilização da sociedade para uma visão mais positiva sobre as pessoas com deficiência (E2, E7 e E8); iii) no plano do robustecimento de serviços públicos como a Segurança Social, o Instituto Nacional para a Reabilitação e a Autoridade para as Condições do Trabalho, de modo a torná-los mais operantes ou criando gabinetes de apoio público próprios (E1 e E3); iv) na disponibilização de informação institucional, nomeadamente guias informativos (E6 e E7); v) no fortalecimento da eficácia na fiscalização e da aplicação de sanções por incumprimento nesta área (E1, E5, E6 e E8); vi) no reforço do papel das organizações não governamentais, das redes sociais (E3), bem como das autarquias (E8) e vii) na garantia de alterações específicas ao regime jurídico laboral, designadamente em matéria de ónus da prova de discriminação (E4).
Conclusões e discussão
Este estudo, que genericamente versou sobre a aplicação em Portugal de medidas de adaptação razoável, enquanto direito consagrado na CDPD, noutros instrumentos de direito internacional, bem como em legislação nacional, teve como objetivo compreender se as soluções jurídicas oferecidas pelo ordenamento jurídico português neste domínio são adequadas, se o direito em apreço é conhecido e exercido pelos seus titulares e se o mesmo é reconhecido e implementado pelas entidades empregadoras. Trata-se de uma matéria pouco estudada no nosso país, pelo que a abordagem seguida teve um caráter exploratório. Neste sentido, os resultados obtidos devem ser lidos com alguma cautela. A pesquisa assentou na realização de um inquérito, distribuído através da plataforma Google Forms e que contou com 195 respostas válidas, e na condução de entrevistas junto de oito pessoas com deficiência e com experiência profissional, que participaram no inquérito e se disponibilizaram para esta segunda etapa do estudo.
Os resultados obtidos sugerem que a adaptação razoável é reconhecida, pelas pessoas inquiridas e entrevistadas, como uma medida relevante e com impacto positivo na integração laboral das pessoas com deficiência. No entanto, muitas medidas percecionadas como relevantes pelas pessoas inquiridas (como, por exemplo, as alterações de horários ou o acréscimo de dias de férias) frequentemente não são implementadas, uma vez que as entidades empregadoras tendem a privilegiar a implementação de medidas diretamente relacionadas com o desempenho da atividade profissional (tal como a aquisição de equipamentos especiais) em detrimento de outras mais centradas no bem-estar dos/das trabalhadores/as. A investigação possibilitou ainda a identificação de vários obstáculos à implementação prática do direito à adaptação razoável, nomeadamente o receio de represálias ou a perturbação do ambiente laboral, designadamente na interação com colegas ou superiores hierárquicos, como resultado do exercício do direito em apreço.
Dado o caráter exploratório desta pesquisa, o estudo apresenta algumas limitações. Em primeiro lugar, importa referir algum enviesamento da amostra, que se apresenta mais escolarizada do que a média da população com deficiência. Tal pode ser justificado pelo recurso à modalidade de inquérito online. Assim sendo, os resultados sugerem que a realidade da maioria das pessoas com deficiência pode ainda ser mais negativa no que diz respeito à aplicação de medidas de adaptação razoável. Outra limitação identificada resulta do recurso a conceitos jurídicos que não foram devidamente definidos no questionário, o que pode ter levado a interpretações enviesadas ou erradas, como é o caso, por exemplo, do conceito de “contrato por tempo indeterminado” e de “contrato a termo (certo ou incerto)”. É ainda de realçar que não foram abordadas neste estudo as medidas de adaptação razoável para a deficiência intelectual.
As dificuldades na concretização do direito à adaptação razoável poderão apontar para a necessidade da sua clarificação e densificação legal, bem como para a necessidade de maior divulgação do mesmo. Importa, pois, continuar a desenvolver investigação sociojurídica que analise de forma mais aprofundada a disponibilização de adaptações razoáveis a pessoas com deficiência, dando voz e visibilidade às barreiras experienciadas no acesso a este direito, consagrado formalmente na CDPD e na legislação laboral vigente, mas que, como este estudo mostra, está ainda longe de ser implementado.