Introdução
A pandemia de COVID-19 provocou uma crise global com gravidade assimetricamente distribuída. Os países centrais reagiram rapidamente, buscando a contenção da expansão pandêmica e a estabilização dos mercados e elaborando novos mecanismos de seguridade social de forma a mitigar os efeitos da pandemia, enquanto a própria ordem neoliberal impôs aos países periféricos a vivência dos problemas sanitários, sociais e econômicos da crise em toda a sua potência (Teles, 2022).
O Brasil, com mais de 700 mil óbitos por COVID-19, é o segundo país no mundo em números absolutos de mortes e o 14.º em mortes proporcionais à população (WHO, s.d.). Com 2,7% da população mundial, o país concentrou 13% do total de mortes no mundo por COVID-19; quatro em cada cinco dessas mortes foram consideradas excedentes (Senado Notícias, 2021). Tais dados confirmam a desastrosa gestão da pandemia pelo governo de Jair Bolsonaro e o completo descontrole da crise sanitária. Um exemplo claro da gravidade dos problemas de gestão da pandemia por esse governo foi o episódio da falta de oxigênio no estado do Amazonas. No dia 14 de janeiro de 2021, o oxigênio acabou em diversos hospitais. Profissionais de saúde e familiares de pacientes entraram em desespero, pacientes tiveram de ser mantidos em contínua ventilação manual. Mais de 60 pacientes morreriam nas 24 horas seguintes e cerca de 500 precisariam ser transferidos com urgência para estados vizinhos. O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado que investigou a atuação do governo na pandemia demonstrou que o Ministério da Saúde havia sido informado com antecedência sobre os níveis baixos de estoque, mas nenhuma medida fora tomada (da Silva et al., 2022; Gazel & Cruz, 2022; Senado Federal, 2021).
A profissão médica esteve no centro desta crise. De um lado, atuou na linha de frente, em um sistema de saúde com planejamento deficitário em todos os setores, o que levou a uma caótica distribuição de pacientes, jornadas de trabalho extenuantes, escassez de insumos básicos, falta de infraestrutura e de equipamentos de proteção. Isso agravou as condições de trabalho e aumentou a frequência de contaminação dos profissionais de saúde (Caponi et al., 2021). De outro lado, sobretudo por meio de seu órgão regulador máximo, o Conselho Federal de Medicina (CFM), a corporação representou um dos mais importantes suportes a uma gestão da pandemia considerada por alguns autores como tendo caráter necropolítico (Carnut, 2022; Castilho & Lemos, 2021), uma vez que estavam claras as iniquidades no acesso a tratamento de classes econômicas menos favorecidas, população negra e povos indígenas, estabelecendo valores distintos do direito à vida, na forma definida por Mbembe (2003/2016). Tratou-se de uma gestão regida pelo negacionismo científico, pelo estímulo às prescrições off-label de medicamentos sem eficácia e comprovadamente potencializadores de risco, e pela desqualificação das vacinas e demais medidas de prevenção (Dias et al., 2021; Ferrari et al., 2022).
Desta forma, o Parecer n.º 4 do CFM, de 16 de abril de 2020 (cf. CFM, 2020), defendendo a autonomia do médico em prescrever de forma off-label cloroquina e hidroxicloroquina, mantida válida até hoje, trouxe uma falsa aura de racionalidade às medidas cientificamente injustificadas do governo, contribuindo para instaurar uma disputa por regimes de verdade em torno da pandemia, sua evolução e seu combate, com consequências nefastas para toda a população (Ferrari et al., 2022).
Michel Foucault lança mão do conceito de regimes de verdade para descrever os processos, regras, práticas e discursos por meio dos quais determinadas verdades são construídas e legitimadas em distintos contextos socioculturais ou períodos históricos. Ele abordou a noção de regimes de verdade em várias de suas obras, principalmente em A ordem do discurso, de 1970 (Foucault, 1970/2016), e Microfísica do poder, de 1979 (Foucault, 1979/1990). Trata-se de um conceito intimamente vinculado ao de poder, uma vez que para Foucault o poder não apenas reprime e silencia, mas também e, sobretudo, produz discursos, conhecimentos e “verdades” que buscam normatizar a sociedade. Regimes de verdade são produzidos e mantidos por instituições e mecanismos de poder, como o sistema educacional, a mídia, a política e as instituições jurídicas (Foucault, 1979/1990); são historicamente contingentes e mutáveis, ou seja, variam de acordo com as mudanças sociais, políticas e culturais (Foucault, 1970/2016). A disputa por regimes de verdade refere-se ao conflito entre diferentes sistemas de conhecimento e poder sobre o que deve ser considerado verdadeiro. Durante a pandemia de COVID-19 no Brasil, esta disputa se deu entre o discurso oficial do governo federal, que minimizava a gravidade, desestimulando medidas preventivas como uso de máscaras, isolamento social e vacinas, e o da comunidade científica e da Organização Mundial da Saúde (OMS), que as defendiam.
Segundo revisão feita por Santos et al. (2022), as investigações nas ciências sociais sobre a COVID-19 têm incidido, de forma mais significativa, no acesso a tratamento e a processos de trabalho, nas relações interpessoais e intergrupais, nas desigualdades socioeconômicas, nas disparidades de recursos entre Norte e Sul, nas novas configurações (bio)políticas e nos autoritarismos. No campo específico da saúde pública, a literatura tem examinado o fenômeno da gestão da pandemia de COVID-19 no Brasil, ora pelo viés da governança estatal, ora pelo viés da governança médica. Literatura mais recente tem também indicado uma hipertrofia da política em relação aos sistemas de saúde nesta forma de gestão, em contraposição ao que ocorreu em muitos países onde foram os sistemas de saúde que se hipertrofiaram (Neves, 2020).
O objetivo do presente artigo é examinar, a partir de referenciais da sociologia e filosofia da medicina, o fenômeno da interação entre governança estatal e governança médica num contexto político de neoliberalismo autoritário de extrema direita, no âmbito do qual a negação da ciência (em vez dos enunciados científicos consensualmente aceitos no campo da saúde) deu sustentação às intervenções do Estado e, a partir daí, refletir sobre os limites necessários à autonomia médica em todos os seus níveis.
1. Aspectos históricos da relação Estado/medicina
A sociologia da medicina contemporânea tem demonstrado como a formação dos vínculos entre Estado e medicina, e suas variações de governança no Ocidente, acabaram por conferir ao primeiro uma aura de maior racionalidade às suas intervenções sobre os processos de saúde-doença das populações e, à segunda, uma autonomia profissional diferenciada por meio de organizações de autorregulação sob a proteção desse mesmo Estado. O trabalho de John Martyn Chamberlain (2012), que articula estudos clássicos da sociologia da medicina com uma ampla revisão de produções mais recentes, buscou compreender de que forma a regulação das práticas médicas estariam vinculadas às transformações políticas dos regimes de governos nos Estados-nação do Ocidente, legitimando, na atualidade, o modelo neoliberal de governabilidade.
O autor identifica a retomada do método científico no período iluminista como o fator que teria propiciado, séculos mais tarde, o surgimento do modelo contemporâneo de biomedicina que congrega atividades assistenciais com atividades de investigação tecnocientífica. Para Chamberlain, a biomedicina, tendo substituído as formas místico-religiosas hegemônicas de abordagem do processo saúde-doença, ganhou enorme “autoridade cultural”, a ponto de, associando-se ao ideal de progresso, contribuir para a evolução tecnológica e para as profundas transformações sociopolíticas na modernidade, envolvendo desde a urbanização e a industrialização dos Estados-nação europeus até a institucionalização da ciência e o avanço do processo de democratização. A congregação entre assistência e pesquisa tecnocientífica representada pela biomedicina se apresenta, então, como ápice epistemológico do desenvolvimento da clínica, no qual o ser humano torna-se ao mesmo tempo objeto e sujeito da produção do conhecimento.
Essa perspectiva vai ao encontro de uma das teses de Foucault (1963/1987) em O nascimento da clínica, para quem esse processo transformador tem início no século xviii e se consolida no século xix, mas seus efeitos se fariam sentir no futuro em termos de prestígio e autoridade da medicina. Foucault sustenta que foi a evolução científica positivista da clínica que ofereceu ao ser humano da modernidade a possibilidade de ser ao mesmo tempo sujeito e objeto do seu próprio conhecimento. Essas influências se farão sentir, segundo este autor, não apenas nos limites do campo da medicina, mas nas ciências humanas como um todo.
Pode-se compreender, a partir daí, a importância da medicina para a constituição das ciências do homem […]. A possibilidade do indivíduo ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de seu próprio conhecimento implica que se inverta no saber o jogo da finitude. (Foucault, 1963/1987, p. 227)
A saúde do corpo passa a substituir a salvação da alma. A medicina tenderá a oferecer “a face obstinada e tranquilizante” da finitude humana; “nela, a morte é reafirmada, mas, ao mesmo tempo, conjurada” (Foucault, 1963/1987, p. 228). E se por um lado reafirma ao homem a sua finitude, por outro lhe oferece esse novo mundo técnico que será sua forma “armada, positiva e plena” de lutar contra ela. É assim que a partir de sua produção de saber, a medicina produz também seu poder, seu prestígio filosófico e científico, sua autoridade cultural, que enfim carregará nos séculos vindouros.
Foi esta mudança que serviu de conotação filosófica para a organização de uma medicina positiva […]. Daí o lugar determinante da medicina na arquitetura de conjunto das ciências humanas; mais do que qualquer outra, ela está próxima da disposição antropológica que as fundamenta. Daí também seu prestígio nas formas concretas da existência […]. Os gestos, os discursos, os olhares médicos tomaram, a partir deste momento, uma densidade filosófica comparável, talvez, a que tivera antes o pensamento matemático. (Foucault, 1963/1987, p. 228)
Faz-se notório, ademais, que a relação entre medicina e política guarda estreita proximidade com a relação entre saber e poder, tal como definido também por Foucault (1969/2007). Para este autor, saber e poder são entidades mutuamente dependentes, já que o poder é também exercido por meio do saber, que o legitima e normaliza, a partir de um conjunto de relações que se articulam em torno de saberes específicos, imbuídos de interesses particulares que definem quais saberes são considerados legítimos e quais não o são, organizando não só a dinâmica cognitiva que sustenta o normal e o anormal, mas também a política organizada e orientada à busca do poder.
Eliot Freidson (1970) disse que a profissão médica passou a ter a prerrogativa de definir socialmente o que é e o que não é doença. O crescimento da ciência médica, associado ao desenvolvimento do capitalismo no bojo da Revolução Industrial, teria favorecido uma proliferação de tratados que visavam responder a questões fundamentais de governança política, envolvendo, sobretudo, segurança, saúde e bem-estar da população, tornando-se fundamental para a ampliação do aparelho disciplinar do Estado e contribuindo, portanto, para justificar decisões e ações de governabilidade a partir de uma racionalidade propriamente científica.
Para Nikolas Rose (1999), o crescimento da influência da ciência médica na atuação da governança estatal levou a uma progressiva institucionalização da expertise, tornando-se essa mesma ciência um componente do próprio exercício da autoridade política - o que forneceu aos profissionais médicos a possibilidade de fechamentos em espaços sociais e campos de saber nos quais a concentração e a intensificação de sua autoridade se tornaram muito difíceis de afrontar.
A atuação da medicina, portanto, seja na dimensão real das práticas assistenciais do dia a dia, seja na dimensão simbólica da autoridade cultural de seus enunciados, tem sido intimamente ligada à manutenção da ordem social e da governança propriamente dita do Estado.
Rose afirmou que a própria eficácia das estratégias neoliberais de governança depende em grande parte da capacidade dos governos em alinhar “os objetivos das autoridades que desejam governar e os projetos pessoais dessas organizações, grupos e indivíduos que são sujeitos do governo” (1999, p. 48).
Assim sendo, a constituição dos organismos de autorregulação da profissão médica e a própria autonomia médica operam nessa proximidade entre governança estatal e governança médica, apoiando-se também numa ampla aceitação social do discurso altruísta da medicina, estabelecido desde o juramento hipocrático, no qual o bem-estar do paciente é anunciado como o objetivo primordial da prática médica, estando acima dos interesses pessoais e corporativos dos médicos e dos próprios interesses da ciência.
Chamberlain (2012) discutiu como essa máxima influenciou até mesmo os primeiros estudos sociológicos funcionalistas sobre as relações Estado/medicina. O próprio Talcott Parsons, em sua obra clássica Essays in Sociological Theory (Parsons, 1964), enfatizou o altruísmo de grupos profissionais como o dos médicos, que aplicavam suas competências técnicas imbuídos dos valores coletivos de seu grupo profissional, os quais seriam responsáveis pela confiabilidade social que a medicina teria alcançado.
As articulações entre política e ciência e as relações entre saber e poder raramente foram tão explícitas e transparentes como na pandemia de COVID-19. Grupos de extrema direita se mobilizaram de diversas maneiras para atacar as medidas de saúde pública recomendadas por especialistas e referendadas pela OMS. As armas de desinformação, minimizando a gravidade da crise sanitária e questionando a eficácia das medidas de proteção, funcionaram como instrumentos legítimos das lutas políticas do momento. Assim, a exploração da pandemia para fins políticos alinhava-se a agendas políticas e ideológicas da extrema direita, como o nacionalismo, o populismo e o autoritarismo, além de promover o discurso de ódio contra grupos minoritários. Para tanto, valeram-se também da subversão das atribuições e práticas médicas a fim de direcioná-las a seu favor, como veremos a seguir.
2. Os meandros da autonomia médica e a prescrição off-label de medicamentos durante a pandemia de COVID-19 no Brasil
Chamberlain (2012) considera que existe consenso relativamente ao reconhecimento de uma ampla autonomia da profissão médica, tanto em dimensão individual quanto coletiva, ainda que ambas estejam relativizadas pelas variações do grau de controle de empresas médicas e do Estado ou pelos próprios limites estabelecidos nas normas de conduta autoimpostas.
Para Freidson (1970), a aquisição de um maior grau de autonomia por uma profissão é adquirida pela demonstração do domínio e mobilização de uma determinada forma de conhecimento especializado e esotérico, impossível de ser totalmente apropriado por outros grupos, e sem o qual algumas tarefas importantes para a coletividade não poderiam ser cumpridas. Haveria, assim, um nível individual de autonomia relacionado às necessidades de julgamento e à tomada de decisão do médico na prática assistencial, e um nível coletivo, institucional, de suas associações autorreguladoras na padronização de condutas, na determinação dos conteúdos da formação médica e na legitimação das formações recebidas.
Para Mary Ann Elston (2004), a “autoridade cultural” da medicina decorre da crença difundida em suas afirmações cientificamente fundamentadas sobre a realidade do corpo humano e seu adoecimento. A autora concebe três subtipos de autonomia médica: “autonomia econômica”, relacionada ao valor de sua remuneração; “autonomia política”, relacionada a decisões políticas sobre a saúde da comunidade; e “autonomia clínica”, relacionada à liberdade de decisão na prática assistencial (Elston, 2004, p. 175). Chamberlain (2012) dialoga com Elston ao argumentar que o avanço do neoliberalismo como modelo de governabilidade, ao tempo que estimulou a autorregulação profissional, impôs também transformações mais profundas nos três subtipos de autonomia médica.
Para Chamberlain (2012), a manutenção do poder conferido pelo Estado no âmbito da autorregulação resguardou para a corporação médica a possibilidade de continuar ocupando lugares de poder e de prestígio social e político. Elston (1991), por sua vez, nega que a corporação médica tenha respondido às críticas acadêmicas e de movimentos sociais relativa às condutas da corporação. A autora afirma que em lugar de uma mobilização da categoria médica para uma revisão dos limites de seu poder de regular as próprias práticas, foram feitos pequenos ajustes para responder às críticas, mas sem nenhuma redução significativa de seu controle colegiado.
Um dos poderes atribuídos ao profissional de medicina em sua autonomia clínica é o da prescrição off-label de medicamentos. Esta ocorre quando o médico prescreve uma droga disponível no mercado, mas não para as indicações das doenças ou especificações de dosagem sob as quais essa droga obteve registro. Wittich et al. (2012) atribuem a grande disseminação que a prescrição off-label alcançou nas últimas décadas à falta de regulação das autoridades estatais sobre as práticas médicas. Para Stafford (2008), essa tendência resulta também dos interesses comerciais envolvidos, uma vez que a indústria farmacêutica não vê vantagens em fazer gastos com novos ensaios clínicos para testar indicações diferentes para drogas já registradas, sob o risco de produzir evidências contra seu próprio negócio. Por isso mesmo, encontra-se também um significativo número de produções na literatura que exigem uma maior regulação do Estado sobre prescrição off-label, sendo contrárias a que as próprias associações médicas desenvolvam protocolos e consensos sobre uso off-label sem uma vigilância maior da sociedade, dada a permeabilidade desta categoria profissional ao marketing das empresas.
Wittich et al. (2012), com base em uma revisão de artigos que propunham condutas para reduzir os riscos de uma prescrição off-label, formularam seis recomendações: 1) que o medicamento tenha aprovação da autoridade sanitária para comercialização; 2) que a proposta da prescrição off-label tenha sido submetida a uma substancial revisão por pares; 3) que a prescrição off-label seja clinicamente necessária ao tratamento e haja coerência teórica ou empírica que a justifiquem; 4) que o prescritor esteja bem informado sobre a droga, seu uso e seus efeitos adversos por meio de fundamentos científicos firmes; 5) que o prescritor mantenha registros do uso e dos efeitos do produto em um acompanhamento clínico frequente e próximo ao paciente; 6) que a prescrição off-label seja feita no melhor interesse do paciente e sem intenção fraudulenta.
Entretanto, é importante que se tenha em mente que a prescrição off-label pode ser necessária em alguns casos, dada a própria natureza epistêmica da clínica, e que quando bem aplicada comporta também aspectos positivos. A clínica é também, por si só, um conhecimento que se dirige à complexidade da unicidade dos organismos humanos. Ou seja, faz parte da natureza epistemológica da clínica ter de dar conta das idiossincrasias biológicas e psíquicas dos indivíduos e das formas diversas de interação entre essas idiossincrasias e seu contexto sociocultural, o que acaba por determinar formas particulares de adoecimento e de respostas às terapêuticas. Neste sentido, a permissão para a prescrição off-label tem como objetivo o benefício de um paciente específico ou de um pequeno grupo de pacientes, confiando-se na boa interpretação do médico daquela situação clínica particular desde que ele possa justificar essa prescrição, nas formas que se encontram bem sintetizadas nas seis recomendações feitas pela revisão de Wittich et al. (2012) citadas anteriormente.
A autonomia clínica para a prescrição off-label é, portanto, um dispositivo técnico e ético que permite uma ação em benefício do paciente. Ela existe em função desse benefício, e não como atributo secular da tradição do poder médico fundamentado em si mesmo que, como veremos em seguida, foi a forma que o CFM defendeu.
No Brasil, o governo de Bolsonaro incentivou o uso massivo de determinados medicamentos para tratamento precoce de COVID-19 envolvendo toda a população, e não apenas pacientes individuais e grupos específicos de pacientes como recomendado para qualquer protocolo do uso off-label de medicamentos. Um kit COVID que incluía as drogas antimaláricas cloroquina e hidroxicloroquina, o antibiótico azitromicina e o antiparasitário ivermectina, entre outras drogas menos frequentemente prescritas, foi criado e propagandeado por todos os órgãos oficiais de comunicação do governo.
Em abril de 2020, o CFM publicou o Parecer n.º 4, sobre o uso precoce da cloroquina e hidroxicloroquina em portadores de COVID-19, indicado tanto para casos leves quanto para casos graves. Apesar de o parecer reconhecer, em sua introdução, a inexistência de evidências científicas de eficácia destes fármacos, seus enunciados deixam clara a liberação dos médicos para sua prescrição tendo por base a defesa da autonomia profissional:
d) O princípio que deve obrigatoriamente nortear o tratamento do paciente portador da COVID-19 deve se basear na autonomia do médico e na valorização da relação médico-paciente […];
e) Diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19. (CFM, 2020, p. 7)
O governo parecia aguardar o parecer. Uma reportagem no site UOL Notícias confirmava que quando o parecer foi aprovado no CFM, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, o presidente deste órgão, “foi entregá-lo e discuti-lo pessoalmente com Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto” (Martins, 2021). Apenas um mês depois de sua publicação, o ministro da Saúde assinava um novo protocolo expandindo o uso de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com COVID-19, divulgando-o massivamente por meio da agência central de comunicação do governo (Agência Brasil, 2020).
Vale ressaltar que nem o CFM nem o Ministério da Saúde cumpriram os trâmites normativos que exigem uma avaliação técnico-científica para a emissão desses tipos de protocolos. O parecer do CFM não anexou a avaliação de uma comissão de especialistas no uso das drogas a serem liberadas para uso off-label, e o Ministério da Saúde ignorou a análise técnica da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde - CONITEC, que era contrária à liberação (Cardim & Bernardes, 2022).
Francisco Paumgartten (2022), em sua revisão sobre o envolvimento do CFM com o governo de Bolsonaro durante a pandemia, observou que durante a segunda metade de 2020 a literatura científica já estava repleta de resultados de diversos ensaios clínicos randomizados e bem controlados demonstrando, inequivocamente, a ineficácia dessas drogas, assim como seus efeitos maléficos nos pacientes, incluindo o aumento da mortalidade dos que delas faziam uso. Em abril de 2021, já existia uma metanálise, método considerado padrão-ouro para determinar a eficácia e a segurança dos medicamentos, envolvendo 28 ensaios clínicos, publicada no prestigioso periódico Nature, confirmando essas conclusões (Axfors et al., 2021).
Não obstante, o CFM manteve o parecer. Os Conselhos Regionais de Medicina da maioria dos estados brasileiros seguiram a posição do CFM. Secretarias Estaduais de Saúde adquiriram o chamado kit COVID e orientaram os profissionais ao seu uso. Já a categoria médica brasileira, por sua vez, aderiu maciçamente à prescrição do tratamento precoce e publicizou-o em suas redes sociais. Daí os dados de crescimento exponencial do consumo dessas medicações, negligenciando-se os riscos de morte já cientificamente comprovados.
Segundo o relatório da CPI, o estímulo à prescrição off-label de medicamentos do kit COVID num contexto pandêmico de grandes proporções permitiu um aumento exorbitante no faturamento dos laboratórios que os produziam. Assim, com as vendas desses medicamentos o faturamento da empresa Vitamedic cresceu de aproximadamente 16 milhões de reais em 2019 para mais de 474 milhões em 2020, com os primeiros cinco meses de 2021 já ultrapassando 265 milhões de reais (Senado Federal, 2021, p. 127). De acordo com o levantamento feito pelo jornal Folha de S. Paulo, tendo em conta que três das sete empresas farmacêuticas a quem a CPI solicitou dados não os tinham ainda fechados, o faturamento total deve ter ultrapassado um bilhão de reais (Lopes & Rezende, 2021).
Como já anteriormente referido, a conduta do governo e do CFM em relação ao kit COVID lançou a sociedade brasileira numa exasperada disputa entre regimes de verdade referentes à eficácia dos medicamentos do kit COVID, e também das vacinas bem como de outras medidas preventivas, a exemplo do isolamento social e do uso de máscaras. Para Fabrício Neves e Fernanda Sobral (2021), era tão generalizada a postura anticientífica do governo de Bolsonaro que chegava a atingir a própria produção de políticas de ciência e tecnologia para o combate da pandemia, o que demandaria uma análise historicamente dimensionada para além das idiossincrasias conjunturais.
3. Alinhamento ideológico entre governança estatal e médica e consequências sobre o enfrentamento da pandemia de COVID-19
O relatório final da CPI reconheceu claramente que a posição do CFM se alinhava à gestão da pandemia pelo governo: “Ademais, é preciso salientar que o parecer do CFM serviu de fundamento para embasar muitos dos atos do Executivo Federal, que praticamente durante toda a pandemia defendeu e priorizou o tratamento precoce como principal instrumento de combate à covid-19” (Senado Federal, 2021, p. 150).
Para fundamentar sua afirmação de que a atuação do CFM foi “deletéria” e “danosa ao povo brasileiro”, o relatório cita literalmente um fragmento do discurso do presidente Bolsonaro na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 21 de setembro de 2021:
Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso off-label. (Senado Federal, 2021, p. 151)
O presidente Bolsonaro tentava, assim, diante das críticas sofridas, justificar a conduta do governo como decorrente de recomendação do CFM, usando como escudo a “autoridade cultural” da medicina, tal como descrita por Elston (1991), sem levar em conta que essa autoridade era, ela mesma, subsidiária da autoridade da ciência que o governo e o próprio CFM, conjuntamente, desprezavam.
Outras declarações também permitem inferir a proximidade política e a identidade ideológica entre conselheiros e membros da diretoria do CFM e o governo. Ainda em fevereiro de 2019, antes da pandemia, o recém-empossado primeiro secretário do CFM, Hermann Von Thiesenhausen que figura no relatório final da CPI como integrante do chamado “gabinete paralelo” do Ministério da Saúde, declarou ao jornal El País: “Há muito tempo [que] o Conselho Federal de Medicina não tem uma relação de proximidade com o Governo Federal. A nova gestão abriu essa oportunidade para as entidades médicas” (tal como citado em Jucá, 2021).
Segundo o relatório da CPI, o gabinete paralelo era um grupo formado por médicos, apoiadores e gestores públicos, criado pelo presidente Bolsonaro para dar encaminhamento à promoção do uso do kit COVID sem passar pela análise de técnicos do Ministério da Saúde.
Outro membro do alto escalão do CFM, Emmanuel Fortes, seu terceiro vice-presidente, também apontado como membro do gabinete paralelo, era, desde então, filiado ao mesmo partido de extrema direita pelo qual o Presidente da República se elegeu, o Partido Social Liberal, e já havia concorrido três vezes, sem sucesso, a cargos públicos eletivos, antes de ser convidado para compor a nova chapa eleita do CFM (Gonçalves, 2021). Tratava-se de um dos mais entusiastas promotores do uso do kit COVID; numa live de junho de 2020, difundida pelo canal noticioso Intercept Brasil, no YouTube, Fortes usa de sua autoridade para, por meio de uma falácia, induzir os médicos a sentirem-se mais seguros ao prescreverem cloroquina:
E para quem prescreve, o risco é bem menor do que para quem não prescreve […]. Se tiver problemas […] é preciso que quem se queixa venha a encontrar provas de que foi a prescrição medicamentosa que gerou o dano. Agora, quem não prescreve, aí a situação fica muito mais complexa, porque basta ir no prontuário e vê-se que a pessoa não tomou providência preliminarmente e pode ser acionada judicialmente. (Intercept Brasil, 2021)
Já o jornal Metrópoles transcreveu uma declaração feita por Fortes em suas redes sociais, em apoio explícito ao presidente Bolsonaro, enquanto exercia a vice-presidência do CFM: “Aproveitei para fazer o registro e declarar que continuo confiando em seu governo e estarei consigo em 2022” (Portela, 2021).
Outros conselheiros e membros da diretoria do CFM tanto participavam do gabinete paralelo quanto exerciam cargos formais no Ministério da Saúde. Entre eles, Raphael Parente, ex-secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, conselheiro à época do CFM, que integra a atual diretoria do CFM. Neste ano de 2024, foi redator da resolução publicada pelo CFM, e anulada pelo Supremo Tribunal Federal, que pretendia impedir os médicos de realizarem aborto em caso de estupro, uma das poucas exceções à proibição do aborto pela lei brasileira (Estadão, 2024). Em 2020, quando era ainda secretário da Atenção Primária também se queixava da falta de espaço para suas propostas e denunciava o que considerava “má vontade de grande parte da mídia com as propostas conservadoras” (Oliveira, 2024).
Caso semelhante é o de Mayra Pinheiro, secretária de Gestão e Trabalho do Ministério da Saúde do governo de Bolsonaro, que também era membro titular da Comissão Mista de Especialidades Médicas do CFM. Pinheiro é uma das indiciadas pela CPI, e ficou conhecida na mídia nacional pela alcunha de “capitã cloroquina”, dado o seu empenho em publicizar e distribuir o kit COVID. Ficou famosa a sua declaração sobre a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) durante interrogatório na CPI que demonstrava seu alinhamento político e moral:
A Fiocruz é um órgão ligado ao Ministério da Saúde, que é mantida com recursos do Ministério da Saúde, e trabalha contra todas as políticas que são contrárias à pauta deles de minorias. Tudo deles envolve LGBTI, eles têm um pênis na porta da Fiocruz, todos os tapetes das portas são a figura do Che Guevara […]. (UOL Notícias, 2021)
Com sede no Rio de Janeiro e filiais em diversos estados brasileiros, a Fiocruz é uma das mais respeitadas instituições de pesquisa em saúde do hemisfério sul do planeta e foi muito atuante em demonstrar e denunciar a gestão catastrófica da pandemia pelo governo de Bolsonaro, tendo sofrido perseguição política por meio de cortes de verbas e interrupção de pesquisas.
Quanto à autoridade máxima do órgão regulador, o presidente do CFM sempre tentou criar uma atmosfera de neutralidade do órgão em relação a filiações político-ideológicas, evitando declarações de conteúdo político-moral como as da sua colega. Num artigo de opinião que publicou no jornal Folha de S. Paulo, atribuiu ao que chama de “politização do problema” as pressões por parte da categoria médica a fim de que o CFM retirasse a liberação para a prescrição off-label de cloroquina:
Lamentavelmente, no Brasil, há uma politização criminosa em relação à pandemia entre apoiadores e críticos do presidente da República […]. Infelizmente, a politização também atingiu sociedades de especialidades médicas e grupos ideológicos de médicos, principalmente quanto ao chamado tratamento precoce […]. Esses grupos pressionam de todas as maneiras o Conselho Federal de Medicina […]. O CFM abordou o tratamento precoce para a COVID-19 no parecer n.º 4/2020 em respeito ao médico da ponta, que não tem posição política ou ideológica. (Ribeiro, 2021)
Apesar da perspectiva de negacionismo político, que juntamente com o negacionismo científico costuma acompanhar posições ultraconservadoras contemporâneas, o presidente do CFM jamais escondeu a proximidade entre o órgão regulador que dirigia e o governo. Em uma live realizada em maio de 2020 juntamente com o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás, disponível no canal YouTube do jornal Metrópoles, o presidente do CFM, inicialmente, reconhece que essa liberação não estava em consonância com os procedimentos técnicos exigidos para tal: “não existe nenhuma evidência científica […] que comprove alguma eficácia da hidroxicloroquina. Mas nós, numa decisão bastante fora das nossas normas, acabamos liberando o uso da hidroxicloroquina” (Metrópoles, 2021).
A análise de trechos de seu discurso mais à frente, na mesma live, permite inferir que esta exceção às normas em defesa da autonomia médica foi, de certa maneira, um ato de gratidão por privilégios que o órgão alcançou no governo, sobretudo no que se refere ao acesso prévio a decretos e portarias envolvendo interesses da categoria, o que permitia à diretoria exercer influência sobre o texto final:
E o presidente Bolsonaro já nos recebeu cinco vezes no Palácio do Planalto desde que assumiu o governo há um ano e quatro meses. Todas as nossas reivindicações foram atendidas pelo presidente […]. Ele nunca falou: isso aqui eu não posso atender […]. E aí as coisas ficam muito mais fáceis […]. Antes que as normas sejam postas, você tem a oportunidade de consensuar aquilo que vai ser proposto. E esse é o caminho que nós estamos seguindo no governo Bolsonaro. Então, existe sim o apoio do Conselho Federal de Medicina ao Ministério da Saúde, ao presidente […]. (Metrópoles, 2021)
Um exemplo desse tipo de consenso obtido pelo CFM a partir deste apoio ao presidente e ao Ministério da Saúde foi conseguir manter a exclusividade de colocação de DIU para a categoria médica, obtendo a revogação da Nota Técnica n.º 5/2018-CGSMU/DAPES/SAS/MS, que permitia a enfermeiros/as realizar o procedimento nas unidades de atenção primária à saúde (Ministério da Saúde, 2021). O Conselho Federal de Enfermagem afirmou em no seu site que a revogação foi feita a despeito das evidências produzidas por estudos científicos, demonstrando não haver diferença nos desfechos nem nos riscos do procedimento quando feito por médicos ou por enfermeiros, e que o governo cedia às pressões da corporação médica, por meio da influência do CFM no governo, prejudicando as mulheres que precisam desse serviço no Sistema Público de Saúde (COFEN, 2019).
O que as evidências empíricas das análises documentais demonstram é que a disputa entre regimes de verdade não se deu em torno de diferentes interpretações honestas da noção de autonomia clínica ou, ainda, em torno de compreensões epistemológicas distintas sobre os meios mais adequados de verificação da eficácia e segurança de drogas e vacinas. Tratou-se, antes disso, de uma crença ideologicamente produzida e motivada no contexto de um fenômeno sociopolítico em que o órgão autorregulador das condutas e práticas médicas afasta-se de suas responsabilidades para com o Estado brasileiro e a sociedade e se alinha ideologicamente a um governo ultraliberal de extrema direita, buscando conferir racionalidade às ações do governo na promoção do kit COVID, agora não mais fundamentado na ciência médica, mas em sua negação. Isso foi, em certa medida, reconhecido pelo relatório final da CPI, já que as acusações apresentadas envolvem a um só tempo agentes públicos do governo, incluindo o próprio presidente da República, e conselheiros e membros da diretoria do CFM, incluindo o presidente do órgão.
O relatório conclui que:
ao adotar e insistir no tratamento precoce como praticamente a única política de governo para o combate à pandemia, inclusive em detrimento da vacinação, Jair Bolsonaro colaborou fortemente para a propagação da covid-19 em território brasileiro e, assim, mostrou-se o responsável principal pelos erros cometidos pelo governo federal durante a pandemia da covid-19. (Senado Federal, 2021, p. 155)
Segundo o relatório, o presidente do CFM foi incluído por dar suporte institucional a medicamentos sem comprovação científica, o que teria estimulado sua prescrição e aumentado a exposição da população a tratamentos que elevavam o risco de morte:
Os integrantes do gabinete paralelo e o Presidente do CFM tinham conhecimento do uso que o Presidente estava fazendo das informações fornecidas, e ainda assim o assessoramento prosseguiu por todo o ano de 2020 e início de 2021 e o Parecer n.º 4⁄2020 do CFM foi mantido em vigência, assumindo o risco do resultado lesivo. Parece clara a exigibilidade de conduta diversa (culpabilidade). Devem, portanto, também ser indiciados pelo crime de epidemia com resultado morte. (Senado Federal, 2021, p. 1045)
Entre as demais acusações presentes no relatório final constam: fraude em licitação, corrupção, incitação ao crime, prevaricação, emprego irregular de verbas públicas e falsificação de documentos. O relator indicou ainda, que por haver indícios de crime contra a humanidade, o relatório e as provas recolhidas seriam enviados ao Tribunal Penal Internacional, em Haia (Senado Federal, 2021).
4. Contributos da sociologia da medicina à análise do problema
O Parecer n.º 4 do CFM, que contribuiu, segundo o relatório da CPI, para embasar a gestão catastrófica da pandemia pelo governo de Bolsonaro, pode ser considerado no âmbito dos tratados médicos que visam orientar a governança política no campo da saúde, como descrito por Freidson (1970). Entretanto, no fenômeno brasileiro aqui analisado, essa orientação não esteve mediada pela ciência médica mas, ao contrário, por sua negação, referendada pelo órgão máximo de regulação de práticas médicas em associação com um neoliberalismo autoritário de extrema direita. O poder de intervenção do governo de Bolsonaro para implementar as ações de seu interesse na gestão da pandemia só poderia se sustentar na criação de um saber anticientífico que se tornaria o cerne de uma disputa por regimes de verdade e que encontrou na concepção descontextualizada da autonomia médica, mais especificamente da autonomia clínica, pelo CFM, sua justificação.
As reflexões de Freidson (1970, 1994) sobre a autonomia profissional e seus desdobramentos fornecem um pano de fundo teórico essencial para examinar os meandros da postura do CFM na defesa da prescrição off-label da cloroquina e de medicamentos ineficazes durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. Em sua obra seminal, The Profession of Medicine (1970), o autor desenvolve o conceito de autonomia profissional como um traço definidor das profissões e, no caso da medicina, distingue dois níveis dessa autonomia: a individual, relacionada à liberdade de julgamento e à tomada de decisão clínica pelos médicos devido à natureza hiperespecializada do seu trabalho; e a coletiva, institucional, das associações profissionais na padronização de condutas, formação e legitimação das credenciais médicas. Seus pressupostos e conceitos nos ajudaram a compreender como esses dois níveis de autonomia foram instrumentalizados para dar suporte a formas de ação ideologicamente mediadas entre governança médica e estatal.
Rose (1999) e Chamberlain (2012), por sua vez, oferecem análises importantes sobre como o avanço do neoliberalismo enquanto modelo de governança reconfigurou os mecanismos de autorregulação médica e promoveu um maior alinhamento entre os interesses da governança estatal e os das corporações profissionais da medicina. Em Powers of Freedom (1999), Rose argumenta que a eficácia das estratégias neoliberais de um governo depende da capacidade dos Estados em alinhar seus objetivos aos projetos pessoais e corporativos de organizações, grupos e indivíduos que são os sujeitos dessa governança.
Nesse sentido, Rose aponta que a constituição dos órgãos de autorregulação profissional da medicina e a própria autonomia médica decorrem dessa proximidade almejada entre governança estatal e médica no neoliberalismo. Seus estudos contribuem, sem dúvida, para pensar os novos riscos sociais dessa proximidade nos novos contextos de neoliberalismos autoritários de extrema direita que vêm ganhando espaço em diversos países nas primeiras duas décadas do século xxi.
Chamberlain (2012), na mesma toada, desenvolveu uma análise histórica e sociológica sobre como essa articulação entre Estado e medicina foi se forjando, e nos ajuda a entender a influência que o CFM exerceu no fenômeno em discussão. Este autor demonstra que, na modernidade, o suposto rigor científico dos saberes e as práticas médicas forneceram aos Estados uma racionalidade técnica para legitimar e operacionalizar diversas intervenções biopolíticas sobre a população, da saúde pública à regulação dos corpos. Ao mesmo tempo, o receituário neoliberal de diminuição da regulação estatal favoreceu uma escalada da autorregulação profissional médica mediante seus conselhos, que ganharam mais espaço para definir protocolos assistenciais e currículos de formação, bem como mais liberdade na determinação das credenciais para o exercício profissional. Essa amplitude de autonomia e autoridade cultural, demonstrada por Chamberlain, foi o que deu suporte ao CFM para sustentar a liberação de prescrição de medicamentos comprovadamente ineficazes e potencializadores de risco de morte.
Os trabalhos seminais de Foucault (1963/1987, 1979/1990, 1978/1991, 1969/2007, 1970/2016) são essenciais para analisar o tema do artigo, pois oferecem insights fundamentais sobre as relações entre saber, poder e regimes de verdade. Em O nascimento da clínica (1963/1987), Foucault analisa o surgimento da medicina moderna e sua constituição como um campo de saber/poder. Ele demonstra como o olhar clínico, ancorado em bases científicas, permitiu à medicina reivindicar uma posição de autoridade sobre a vida, a saúde e os corpos. Esse “poder de vida e morte” sobre a população confere à medicina um papel político central nas sociedades modernas.
Na análise sobre a “governamentalidade” (1978/1991), Foucault explora as complexas relações entre os diferentes dispositivos e racionalidades de governo das populações e mostra como o Estado moderno, ao incorporar os saberes “científicos” como a medicina, exerce seu poder não apenas pela repressão, mas através da regulação da vida. Os regimes de verdade (Foucault, 1979/1990, 1970/2016), quando produzidos pelo conhecimento médico, passam a legitimar e a racionalizar as intervenções estatais.
No trabalho em tela, os conceitos foucaultianos permitem compreender criticamente como, no caso brasileiro, houve uma ruptura proposital com o regime de verdade científica da medicina, devido à aliança entre um governo de extrema direita e setores conservadores da corporação médica. O negacionismo e a desqualificação das evidências médicas serviram a um projeto de poder ideológico de viés autoritário. Ao deslegitimar o conhecimento científico consensual sobre prevenção, tratamentos e vacinas contra a COVID-19, o governo impôs uma narrativa e uma biopolítica da expertise técnica alinhadas aos seus interesses políticos de base populista e negacionista.
A governança médica, por sua vez, contrariando sua suposta missão de promover a saúde pública com base na ciência, conferiu uma pretensa racionalidade a esse projeto ideológico autoritário por meio de sua “autoridade cultural” (Elston, 1991) e de seu poder de determinar regimes de verdade (Foucault, 1963/1987, 1979/1990, 1970/2016). Dessa forma, os conceitos foucaultianos sobre as imbricações entre saber, poder e governamentalidade neoliberal oferecem uma matriz analítica poderosa para desvelar as complexas engrenagens que permitiram o deliberado deslocamento do regime de verdade científica da medicina em favor de um projeto político-ideológico durante a pandemia de COVID-19 no Brasil.
Acreditamos que o arcabouço teórico-conceitual explorado neste artigo poderá ser útil em futuras análises relacionadas a diversas formas de interação entre governança estatal e governança médica, e sobre os limites em todos os níveis da autonomia médica, sobretudo considerando-se o recente avanço do extremismo de direita no cenário político global.
Considerações finais
A atuação do CFM durante a pandemia constituiu uma ameaça à saúde pública e uma afronta a qualquer modelo eticamente responsável de governança médica. Não se tratou apenas de uma natural alternância de poder entre perspectivas políticas mais neoliberais ou mais social-democratas, como nos habituamos a ver tanto na macropolítica do Estado quanto nas micropolíticas das instituições e autarquias. Tratou-se, antes de tudo, da articulação de um órgão regulador da importância do CFM a uma perspectiva protofascista e negacionista que, no caso do governo de Bolsonaro, além dos malefícios causados durante a pandemia de COVID-19, elogiou a tortura, promoveu o uso de armas pela população, atentou contra as instituições democráticas, promoveu a maior destruição ambiental que o Brasil já sofreu em quatro anos (entre 2019 e 2022) com o extermínio de povos indígenas (como a crise Yanomami), e deixou em cinzas as políticas públicas de saúde construídas durante décadas (Avritzer & Rennó, 2021; Pinheiro-Machado & Freixo, 2019).
Apesar da derrota do ex-presidente Bolsonaro em sua tentativa de reeleição em 2022, os partidários de suas ideias extremistas de direita seguem fortes no Congresso brasileiro e no CFM. Os grandes órgãos de imprensa noticiaram a mobilização destes partidários para apoiar chapas de extrema direita na nova eleição para o CFM, realizada recentemente. A chapa vitoriosa foi a do médico Francisco Cardoso, que ficou conhecido por defender o uso de medicamentos para tratamento precoce da COVID-19 na CPI da COVID no Senado (Satie, 2024).
Já não é possível medir especificamente o tamanho do impacto do uso generalizado de drogas comprovadamente potencializadoras do aumento da mortalidade sobre as mais de 700 mil mortes por COVID-19 no Brasil durante o governo de Bolsonaro. Ainda assim, o episódio demonstra a pertinência da reivindicação por uma maior regulação estatal sobre as práticas médicas, sobretudo quando envolvem a prescrição off-label de medicamentos e o uso de equipamentos que atendem aos interesses econômicos de grandes corporações empresariais como a indústria farmacêutica. Fica evidente a necessidade se instituir novas formas de controle da sociedade sobre as relações de interesse que podem articular governança estatal e governança médica, incluindo uma maior transparência dos interesses envolvidos na formulação das regulamentações das práticas médicas de pesquisa e assistência, onde deverá estar garantida a participação de atores sociais externos à corporação médica.
Este episódio é um exemplo significativo, também, do quanto a medicina moderna, enredada na teia da mercantilização da saúde do neoliberalismo, já não autoriza uma crença justificada no discurso altruísta da medicina de que o bem-estar dos pacientes se encontra sempre acima dos seus interesses pessoais ou corporativos, o que reforça a necessidade de impor limites éticos e científicos à autorregulação da categoria.
Espera-se que o Brasil possa agora também ser exemplo para o mundo de como se investigam os delitos éticos e as práticas criminosas na área da saúde, e de como se punem os responsáveis na forma da lei, quando uma modalidade de articulação entre governança estatal e governança médica não mais se apoia na ciência, mas em sua negação, trazendo funestas consequências para a população.