Introdução
Para iniciarmos esta conversa, propomos ao leitor ou leitora que pense na imagem de um grande terreiro de barro batido sendo cuidadosamente varrido e depois aguado para quebrar a quentura e cortar a poeira. Ação que é feita à sombra de oitizeiros e mangueiras, ao pé dos quais foram dispostas duas cadeiras de madeira com assentos feitos com couro de bode, junto a duas outras cadeiras de cadeiras de encosto em ferro e inteiramente entrelaçadas com fios de plástico. Cuidando para que tenhamos a pisada firme, aproximemo-nos das cadeiras e, escolhida uma delas, sentemo-nos. O sol quente não tarda a fraquejar e o cheiro de café novo toma a atmosfera. Acendamos um cigarro e ouçamos as palavras que se seguem.
Há não muito tempo, em 1988, Antonio Candido, sociólogo e professor universitário, proferiu uma pequena palestra sobre o direito à literatura (Candido, 1988/2011). No Brasil, estávamos sob uma nova carta magna, a Constituição Cidadã - como ficou conhecida. A sociedade brasileira estava ávida por direitos, por liberdade e por garantias. Candido, portanto, apontou um dos direitos que, para ele, seria fundamental para todos e todas. Um direito humano. Naquela altura, a sua preocupação era a de marcar a desigualdade aterradora que tomava a sociedade e que colocava, de um lado, as pessoas que tinham acesso a eventos, produtos e bens culturais e, do outro lado, aquelas que, privadas ainda de vários outros direitos básicos, não o tinham. O diagnóstico da sociedade brasileira e a defesa de um direito tratado por alguns como não fundamental, talvez até como supérfluo, é habilmente demonstrado e argumentado naquele texto. Não há necessidade de marcarmos a nossa concordância com o texto do renomado professor da Universidade de São Paulo. Acreditamos ainda ser importante que o diagnóstico feito há décadas segue quase inalterado, e que urge reforçarmos a defesa do direito humano fundamental à literatura com a mesma ênfase dada pelo professor. Acreditamos ser também importante trazer desdobramentos ou, caso seja mais apropriado dizermos, adicionar adendos a este direito. Nosso objetivo é alinhar pelo menos três dimensões: o direito à literatura, como defendido por Candido, o direito à criação literária e, por fim, o direito à reflexão sobre a literatura. Tomemos um gole de café (senão esfria) acompanhado de um bolo de chuva. Continuemos.
Entendemos que o direito à literatura, à compreensão e fruição do objeto estético-literário é o foco e continua sendo, como o dissemos. Quando acrescentamos o que chamamos de direito à criação literária, acreditamos dar um passo adiante e em profundidade em relação ao primeiro. Ou seja, garantir o direito à criação literária a todos e todas é dar os instrumentos necessários à construção de uma representação e de um discurso àqueles/as que, por muito tempo, foram tão somente estereotipicamente representados/as, silenciados/as sob o estilo do discurso indireto “livre”, e alienados/as da possibilidade de criar e publicar, serem autores e autoras. Ao termos apresentado esta segunda dimensão, passemos à terceira.
A teoria da literatura consolida-se como disciplina ou ferramenta de compreensão do texto literário sob a epistemologia eurocêntrica ao longo do século xx. Assim, os conceitos e categorias de pensamento sobre a literatura atravessam os oceanos e são aplicados a romances, contos, poemas, narrativas, causos, cordéis, etc. Produzimos, por décadas, uma refinada e reconhecida crítica da literatura produzida na América Latina a partir do pensamento eurocêntrico. É neste ponto que acreditamos ser possível construir outros operadores conceituais, a partir do momento que pudermos garantir o direito à reflexão sobre a literatura.
Apresentadas as três dimensões, sob o céu incandescente de um laranja-róseo da tarde caindo, precisamos falar sobre tais direitos e ainda sobre as condições materiais para a garantia do terceiro direito, e não apenas as filosóficas ou teórico-analíticas. O financiamento de pesquisas em literatura ou sobre literatura é adequado? Aconchegue-se à cadeira. Não vá embora agora, já é quase noite, sabemos, e não temos financiamento, mas temos ainda café e bolo.
1. O direito à literatura
Como referido anteriormente, em 1988 Antonio Candido proferiu uma palestra, que foi publicada em texto, sobre a relação entre direitos humanos e literatura. Aquele ano e a promulgação de uma nova Constituição marcaram o fim da ditadura militar no Brasil que havia iniciado em 1964. Hoje, 60 anos depois do golpe civil-militar e 36 anos depois da publicação do texto de Candido, o Brasil continua com a mesma Constituição Cidadã - quase toda ela emendada e remendada, mas que não garantiu e garante cada vez menos o direito à literatura que Candido defendia, ou, pelo menos, o direito à literatura como nós queremos defender aqui. Para elaborar e desenvolver este direito, que entendemos fundamental, queremos percorrer um caminho de reflexões não apenas políticas, mas teórico-filosóficas e institucionais, passando por uma problematização do conceito de visão de mundo até ao financiamento de pesquisas em literatura. Encruzilhadas muitas vezes silenciadas, mas que permitem uma atenção sobre o estado das coisas nesta contemporaneidade. Comecemos, como é natural, pelas coisas primeiras. Vejamos o que Candido entende por direito à literatura em dois trechos do aludido texto:
Acabei de focalizar a relação da literatura com os direitos humanos de dois ângulos diferentes. Primeiro, verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos. (Candido, 1988/2011, p. 188)
Portanto, a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura. A distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar e manter uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis […] de fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável. (Candido, 1988/2011, p. 193)
Analisemos estes trechos. No que chama de primeiro ângulo, Candido compreende a literatura como uma “necessidade universal”, ou seja, para ele todos os povos em qualquer tempo precisam da fabulação, da fantasia, seja num nível mítico de organização do mundo ou num nível espaço-temporal de organização das sociedades. Nesse sentido, o termo universal, sem o problematizarmos, refere-se aos seres humanos de forma horizontal, sem qualquer hierarquização e/ou sem a pretensa superioridade da fabulação escrita sobre a fabulação oral, por exemplo. Assim, a “necessidade universal” de literatura “deve ser satisfeita” para dotar as pessoas de uma humanidade íntegra, inteira. É a literatura que “dá forma aos sentimentos e à visão de mundo”. Pensar a “visão de mundo” neste contexto, ainda sem problematizá-la, é a organização intelectual da realidade a partir de valores humanos, sociais e históricos. Ao carregar tais características, a literatura é uma instituição fundante da humanidade e temos direito a fruí-la. Fruir, aproveitar o discurso fabulado, a literatura em suas diferentes formas e temas é não apenas um ato de deleite mas de formação, constituindo, assim, a orientação horaciana do prodesse aut delectare.
O segundo ângulo para o qual Candido nos direciona funda-se mais fortemente no âmbito da “formação”, uma formação ou educação de desmascaramento de determinadas ordens sociais, condições históricas, silenciamentos e exclusões, fazendo com que possamos observar determinados aspectos individuais e/ou coletivos de maneira diferente do discurso majoritário ou da visão dominantes, pois a literatura focaliza “as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual” (Candido, 2011, p. 188). Esse tipo de literatura, que o autor chama de “empenhada”, carrega um tipo especial de fruição e educação. Uma educação para o questionamento, uma educação para a transformação daqueles que se deixam sensibilizar pelas situações enformadas em poemas, narrativas, peças teatrais, música, arte, etc. A literatura entendida por Candido não é apenas um direito humano fundamental, mas uma ferramenta imprescindível à conquista dos direitos humanos. A fruição não é um ato passivo, sendo antes uma potência ativa a partir da aprendizagem, da formação ou educação do/da leitor/a de literatura. Os trechos do texto de Candido destacados acima sintetizam uma posição de defesa da literatura como direito e abrem espaço para problematizarmos e aprofundarmos essa defesa em outras direções. No segundo trecho que destacamos, Candido conclui a sua defesa trazendo outras duas distinções que precisariam ser superadas, a ideia de uma cultura popular e de uma cultura erudita. A separação da cultura em “esferas incomunicáveis” produziria não apenas injustiça, mas desumanidade. Essa desumanidade materializa-se na ausência do respeito e do cumprimento do acesso a outros direitos para uma parcela da humanidade, notadamente aqueles/as que não têm recursos financeiros para garantir a sua humanidade. Destacamos isso não sem perceber a encruzilhada em que estamos. A desumanização de parte da humanidade (significativa, digamos) ser justificada pela desigualdade econômica é uma contradictio in adjecto, uma vez que deveríamos ser iguais ou tratados como iguais em nossas diferenças; ao invés, criamos abismos que aprofundam a desigualdade em todos os âmbitos de nossa existência. Na produção e fruição da cultura temos apenas mais um abismo eufemizado nos termos “erudito” e “popular”. Portanto, quando Candido chama a nossa atenção para essa separação, imediatamente ele arremata o direito à literatura e os direitos humanos como direitos inalienáveis.
O direito à fruição de um bem cultural como a literatura, um bem que traz deleite e educação, é defendido pelo ensaísta no que identificamos como díade horaciana. No entanto, é importante destacarmos que, no que tange à literatura, a educação ou formação é uma operação não institucional ou não determinada por diretrizes e valores centrípetos. O caráter centrífugo da formação pela literatura faz com que, em determinados casos, ela seja mal vista dentro da institucionalidade, de valores ou de uma moral específica. Poderíamos citar vários exemplos, mas referindo o mais recente, destacamos o caso do livro O avesso da pele do escritor Jeferson Tenório que, no Brasil, foi proibido de ser utilizado em uma escola. Embora a grande repercussão do caso tenha dado notoriedade ao livro até que a decisão da proibição fosse revogada, o fato do interdito ter ocorrido no ano de 2024 é índice do potencial “(de)formador” da literatura e de seu poder disruptivo. Lutar e garantir o direito à literatura como um direito humano não era apenas fundamental em 1988 - é-o ainda hoje. O sinal de retrocessos na sociedade brasileira, seja com o crescimento de grupos fascistas, seja com a esquizofrenia neopentecostal cristã em em claro crescimento, revela a urgência da garantia e de uma luta contínua e atenta pela cultura e pela literatura. Apesar da visível necessidade de luta pelo direito à literatura, a sociedade brasileira presenciou avanços que possibilitaram, para diversos grupos antes totalmente alienados desse direito, um crescente acesso à sua fruição. É desse ponto que passamos a pensar no direito à criação literária.
2. O direito à criação literária
Optamos por destacar três grupos étnico-sociais para tratar do que entendemos por direito à criação literária no âmbito brasileiro: as pessoas indígenas; as pessoas negras/quilombolas; as pessoas sertanejas/nordestinas. Estes três grupos são parte fundamental do que entendemos por literatura brasileira desde sempre. É, por exemplo, o chamado indianismo que no século xix constitui-se como o marco no “nacionalismo” romântico no Brasil. Se voltarmos alguns séculos atrás, as literaturas de viagens tiveram um especial interesse na caracterização/descrição dos povos indígenas e a literatura de catequese um interesse ainda mais especial e específico nessas pessoas. Durante as correntes do realismo e do naturalismo, o “interesse” da literatura brasileira foi quase especificamente voltado para as pessoas negras. Um caso notório é o livro O cortiço de Aluísio Azevedo, que tenta fazer um exame científico do comportamento e da constituição ético-biológica do negro brasileiro (ou simplesmente do negro). Tal interesse estaria presente na literatura brasileira por décadas, sempre retratando o negro a partir de estereótipos e características socioculturais negativas, marginalizadas, violentas ou hipersexualizadas (Dalcastagnè, 2012). O terceiro grupo que destacamos teria uma participação essencial na literatura brasileira ainda no século xix mas, principalmente, a partir do século xx com o livro Os sertões de Euclides da Cunha. O sertanejo/nordestino acabaria por ser objeto de descrição, dissertação e dissecação em várias correntes do modernismo, ora em tons positivos (no caso de alguns textos da década de 1930), ora em tons desumanizadores e negativos, nutridos por um pseudocientificismo positivista, como no caso do próprio livro de Euclides da Cunha. Estes três grupos podem ser caracterizados como sendo sempre o outro na sociedade brasileira ocidental, branca, patriarcal, sudestina - mesmo sendo a maioria da população. Por séculos os três grupos foram objeto de representação em diversos romances, contos e poemas. Há poucos escritores, ao longo dos séculos, pertencentes a estes grupos. Um dos casos de maior destaque, por exemplo, é o de Joaquim Machado de Assis, considerado quase que unanimemente como o maior escritor brasileiro de todos os tempos e que, mesmo sendo negro, tem a sua figura “embranquecida”. Podemos contar nos dedos os autores e as autoras negros/as, indígenas e sertanejos/as de grande renome nos compêndios ou livros didáticos brasileiros. É neste sentido, portanto, que a luta pelo direito à criação literária ganha importância tão fulcral como o direito à sua fruição.
Examinemos essa questão. Quando apresentamos a visão de Antonio Candido sobre a literatura como fenômeno humano horizontal, não hierarquizado, vimos que todas as sociedades precisam de e usam a literatura como parte constituinte de sua ontologia, de sua organização social. Neste sentido, quando pensamos no direito à criação literária a partir das nações indígenas, devemos compreender as narrativas, mitos e lendas como produção literária e, portanto, compreender que todas as nações indígenas exerceram por milênios o que chamamos aqui de direito à criação literária. Mas, por outro lado, a empresa colonizadora eurocristã monoteísta encarregou-se de hierarquizar a literatura, colocando a sua visão de mundo como complexa, enquanto as narrativas indígenas e orais foram compreendidas como “formas simples”. Essa ação de distinção epistemicida é o ato principal de negação do direito à criação literária (e à existência) de todos os povos indígenas ao longo de séculos. Apenas a partir da mobilização social de milhares de pessoas e organizações indígenas ao longo do século xx é que o direito à criação literária - e de existir - passa a se materializar dentro do Brasil. Foi justamente a partir da Constituição de 1988 que o país passou a ter um processo de materialização de direitos dos povos indígenas e, no que tange à literatura, destacamos a conquista da Lei 11.645/20081 que, alterando a Lei 10639/2003, obriga o ensino de cultura, história e literatura indígena nas escolas de todo o país.2 Tal conquista pavimentou o mercado editorial brasileiro, abrindo espaço para dezenas de escritores e escritoras indígenas terem as suas obras publicadas e discutidas de forma sistemática e profunda, abrindo espaço para que as instituições ocidentais garantissem o acesso e o conhecimento sobre tais obras e seus autores e autoras. Vale destacar ainda a mobilização continental a partir da definição do território Abya Yala como um espaço congregador e agregador de uma nova postura em relação à terra e às nações indígenas a partir de suas próprias narrativas e cosmopercepções.3 Nesse sentido, o direito à criação literária foi conquistado de forma continental permitindo a inserção de pessoas indígenas em espaços anteriormente interditos a elas, como o caso da nomeação de Ailton Krenak para a Academia Brasileira de Letras em 2024. Pessoas como Emil’ Keme, Graça Graúna, Daniel Munduruku, Davi Kopenawa, Eliane Potiguara, Trudruá Dorrico Macuxi, Denilson Baniwa conquistaram espaço na cena artística, cultural, literária, intelectual e filosófica, com discussões fundamentais para a compreensão da literatura e da arte a partir de outras cosmopercepções e, portanto, resgatando a horizontalidade defendida por Candido.
Ao pensarmos nas pessoas negras/quilombolas, temos elementos que as aproximam da situação que destacamos acima sobre as pessoas indígenas. Os atos de epistemicídio e de desumanização alienaram essas populações do direito à criação literária, que passou a ser reivindicado não apenas por indivíduos como Esperança Garcia, no século xviii, Maria Firmino dos Reis, no século xix, ou Lima Barreto, no início do século xx, mas de forma coletiva a partir da mobilização social urbana e rural. Esta mobilização conquistou, além de direitos humanos fundamentais, também o direito à criação literária a partir da Lei 10.639/20034. No entanto, podemos marcar alguns acontecimentos anteriores fundamentais. A publicação do livro Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus em 1960 serviu como um catalisador de extrema potência representativa para influenciar e inspirar outras escritoras e escritores negros (Jesus, 1960/2020). Outro marco importante é o lançamento dos Cadernos negros, em 1978, pelo grupo Quilombhoje e que até agora lança anualmente coletâneas com escritores e escritoras negros/as de todo o país. Na cena artístico-cultural destacamos a fundação do Teatro Experimental do Negro por Abdias Nascimento em 1944, o que ajudou na formação de quadros artísticos e militantes para a luta e garantia de direitos básicos da população negra no Brasil. A presença de pessoas negras nas áreas culturais e, cada vez mais, nas universidades brasileiras é fator fundamental também para a garantia do direito à criação literária. Destacamos pessoas como o próprio Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Milton Santos, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Silvio de Almeida, Carla Akotirene, Djamila Ribeiro e cada vez mais pessoas negras que atuam diretamente na promoção de direitos e reflexões sobre práticas antirracistas e emancipatórias dentro e fora das universidades, dentro e fora da literatura.
Discutir o direito à criação literária a partir do povo sertanejo/nordestino é incluir uma questão geopolítica neste debate. Esse povo foi, durante séculos, marginalizado, desumanizado, alienado de todo o processo de emancipação do Brasil, atuando como mão de obra ou exército de pessoas famintas e flageladas para o benefício do sudeste bandeirante e industrializado. Temos grandes nomes da literatura brasileira que são geograficamente nordestinos ou sertanejos, como José de Alencar, por exemplo, mas poucos que de fato carregam em seu estilo retórico-discursivo a linguagem e a cosmopercepção do sertão. Um dos principais nomes desse estilo é o escritor mineiro João Guimarães Rosa, considerado por muitos como a segunda pilastra da literatura brasileira (a primeira sendo Machado de Assis) com sua obra narrativa, que alçou o sertão de uma condição geográfica para uma condição metafísica desde a sua primeira obra, Sagarana, em 1946.5 Mesmo assim, o processo de violência e desumanização contra o povo sertanejo - que podemos identificar ao longo de vários séculos com os massacres de nações inteiras (como a nação Kariri, no sertão cearense), os massacres de Canudos, da Confederação do Equador, as guerras holandesas, os massacres de Palmares, do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, da Sedição de Juazeiro, da Balaiada, a Sabinada, da revolta dos Malês, da Pedra do Reino, da construção de Brasília6, da construção de São Paulo e do Rio de Janeiro, do exército da borracha, etc. - segue de forma sistemática na construção do Brasil ocidental e sedimenta uma ideia de atraso, incivilidade e deformação sempre associadas ao povo sertanejo/nordestino, que, ao conquistar direitos fundamentais como o direito à educação, ainda assim precisa manter um comportamento migratório para ser reconhecido dentro de seu próprio país, indo para universidades ou instituições sudestinas ou estrangeiras. O desenvolvimento do Nordeste a partir de políticas públicas estruturantes a partir de 2003, com o primeiro governo de Lula da Silva, trouxe dignidade ao povo e à região que já passava por um processo de afirmação de uma identidade cultural importante com a chamada “invenção do Nordeste”, muito bem caracterizada pelo escritor paraibano Durval Muniz de Albuquerque Junior. Já na década de 1930 havia um processo de valorização da linguagem e do povo sertanejo com os romances de escritores e escritoras daquela região, como José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, além da importância fundamental de Luiz Gonzaga, na música, e Glauber Rocha, com o cinema novo. A tropicália também exerceu um papel de capital importância para a identidade cultural nordestina com Torquato Neto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia. No âmbito cultural, artístico e literário a expressão sertaneja/nordestina é extremamente diversificada e é fundamental para a própria constituição da chamada cultura brasileira.
Desta forma compreendemos que o direito à criação literária, assim como o direito à literatura, continuam como um processo de conquista coletiva a partir da luta e mobilização dos movimentos sociais e entidades culturais que reafirmam a importância de pessoas e direitos que estimulam a autoria e criação de literatura sob cosmopercepções distintas daquela imposta pelo pesado maquinário colonial, ainda em funcionamento em todo o continente americano.
3. O direito à reflexão sobre a literatura
Na esteira do direito à literatura e do direito à criação literária como conquista do povo brasileiro a partir de movimentos sociais e populares ao longo do século xx e xxi, temos a necessidade de discutir o direito à reflexão sobre a literatura a partir de epistemologias outras que foram construídas como parte desses movimentos emancipatórios e que não se individualizam, mas se aglutinam principalmente a partir de outras cosmologias que nos ajudam a ver, a perceber e a sentir o mundo de maneira não-ocidental, construindo uma possibilidade de pensar a literatura numa matriz contracolonial. É aqui que destacamos o pensamento de Emil’ Keme, Oyèrónkẹ, Oyěwùmí, Graça Graúna, Leda Maria Martins, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo e Antônio Bispo dos Santos. Devemos, assim, pôr em revista dois conceitos que mencionamos acima: universal e visão de mundo. Pois, para compreendermos a fundamentalidade do que chamamos de pensamento contracolonial e não-ocidental, é importante percebermos o mundo a partir da pluriversalidade e da cosmopercepção.
Mas, lembrando que ainda estamos à sombra de oitizeiros e mangueiras, queremos chamar a atenção para as instituições que possibilitam (ou não) a reflexão sobre a literatura, essencialmente nos cursos de letras das universidades brasileiras. Lembremos que os cursos de letras, desde as diretrizes curriculares nacionais até aos projetos pedagógicos de curso, historicamente têm hierarquizado a própria literatura tanto na escolha de disciplinas e suas ementas até à definição de referências bibliográficas para fruição, estudo, análise e reflexão sobre a literatura. Trata-se de um projeto de hegemonia do pensamento eurocêntrico e do epistemicídio de outras matrizes, sistematizado e inflexível em diversos cursos de letras ao longo do território nacional. Mas, no mesmo sentido das conquistas que elencamos no direito à criação literária, aqui também tivemos um conjunto de avanços importantes. Identificamos como ponto de virada principal, no sentido de desestabilizar a própria comunidade acadêmica brasileira, a conquista da lei de cotas nas universidades (Lei n.º 12.711/2012).7 O acesso ao ensino superior por pessoas negras e indígenas garantiu um crescente questionamento das matrizes epistemológicas, das referências bibliográficas e dos projetos pedagógicos de cursos de uma forma revolucionária nunca vista na educação superior brasileira. Mesmo que identifiquemos, no âmbito do pensamento crítico e teórico da literatura, momentos de questionamento como os estudos culturais, estudos pós-coloniais e, mais recentemente, os estudos decoloniais, a importância dada a estes estudos tem crescido sistematicamente desde a presença cada vez mais intensa de pessoas outrora desumanizadas e tidas como objetos ou sujeitos de análise e que agora são sujeitos de pesquisa, autores e autoras. Um acontecimento importante que também podemos destacar é a organização do Encontro de Saberes da Universidade de Brasília, a partir de 2010, que deu renome, na comunidade acadêmica, a várias lideranças de movimentos sociais. A interiorização de universidades e institutos federais também pode ser identificada como um movimento de garantia de acesso ao mundo acadêmico por pessoas antes alienadas desse direito.
Assim, nós, que estamos aqui nesse terreiro conversando com você, também nos inserimos como parte desse coletivo de intelectuais e pesquisadores/as que hoje, dentro do mundo acadêmico ainda sob a opressão do pensamento eurocêntrico, tem a possibilidade de reunir outras matrizes epistemológicas para pensar o mundo e refletir sobre o fenômeno literário a partir do sertão brasileiro no sertão de Coimbra, por exemplo. Isto acontece mesmo que as condições de pesquisa em literatura não sejam tão valorizadas quanto em outras áreas, sendo um campo do conhecimento destituído de importância diante de áreas como a tecnologia, ou outras, que se retroalimentam do sistema colonizador e produtor de monoculturas dos mais variados tipos. Mesmo assim, estamos aqui, trilhando os caminhos de Emil’ Keme e Graça Graúna, que elaboraram importantes reflexões sobre a teoria da literatura indígena contemporânea, além de Leda Maria Martins, que faz uma reflexão a partir do termo oralitura8. Nossa proposta de lutar pelo direito à reflexão sobre a literatura parte de uma orientação epistemológica fundada na noção de pluriversalidade de Dimas Masolo (cf. Noguera, 2012) e da problematização do conceito de visão de mundo a partir da apresentação do conceito de cosmopercepção de Oyèrónkẹ, Oyěwùmí (1997/2021).
Essa virada epistemológica baseia-se na necessidade de perceber e repensar o mundo a partir de outras formas de percepção e compreensão da realidade. Seu caráter filosófico garante a possibilidade de reflexão da literatura a partir dessas bases de princípio balizador que não funcionam apenas como operadores conceituais, mas como constitutivos de uma ética de reflexão filosófica, epistemológica e metodológica. Neste sentido, podemos propor um exercício de movimentação dialógica da chamada teoria da literatura para o que optamos por chamar de cosmologias da literatura. O deslocamento da ideia de “teoria” para a de “cosmologias” fundamenta-se em outras questões de princípio, como a categoria de amefricanidade, construída por Lélia Gonzalez (2020), e a reflexão construída por Antonio Bispo dos Santos de que nós, povos não-ocidentais, somos povos de trajetória e de cosmologias (Santos, 2023). Essa noção de trajetória conflui com o conceito de escrevivência de Conceição Evaristo (cf. Roda Viva, 2021). Assim, todas as reflexões construídas a partir e dentro dos movimentos sociais de emancipação de maneiras plurais de sentir, ver, viver e perceber o mundo podem ser mobilizadas para a construção de uma reflexão sobre a literatura reivindicatória de uma nova matriz de interpretação do fenômeno literário. Essa matriz apresenta categorias de análise e perspectivas outras a partir de corpora primários produzidos sob essas outras formas de perceber e sentir o mundo.
Conclusão
Entendemos que a teoria da literatura como a conhecemos hoje (que parte de Platão e Aristóteles, passando por Georg Hegel, por Erich Auerbach, pelos formalistas russos, pelo círculo de Bakhtin, Terry Eagleton, Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Wolfgang Iser, Luiz Costa Lima, etc.), fundamentada apenas no chamado “cânone ocidental” (a referência ao livro de Harold Bloom é, e não é, irônica), não pode ser a única base de reflexão sobre a literatura. Obviamente, temos já outras matrizes de reflexão sobre a literatura, como a iniciada pelo Orientalismo de Edward Said (1978/2007) ou mesmo pelas obras de Frantz Fanon (1952/2020) mas, com os operadores que mencionámos neste rápido exercício, podemos construir um método de emancipação da literatura latino-americana sem a necessidade de utilizar conceitos e sistemas eurocêntricos de reflexão sobre a literatura. Contudo, não acreditamos numa hierarquização outra da reflexão sobre a literatura.
No sentido da reflexão inicial de Antonio Candido que apresentamos aqui, entendemos a pluriversalidade de diálogos entre as epistemologias e formas de pensar a literatura. Ao reivindicarmos um direito a uma outra matriz de pensamento sobre o fenômeno literário, não queremos excluir ninguém. Pensamos, inclusive, que o pensamento do círculo de Bakhtin fez grandes contribuições à teoria literária, por exemplo - como também reconheceu o autor de The Rethoric of Fiction, o norte-americano Wayne Booth, no posfácio à segunda edição (cf. Booth, 1983). As contribuições do pensamento do círculo de Bakhtin (mesmo com matriz radicalmente eurocêntrica, seja neokantiana ou marxista) oferecem possibilidade de abertura e diálogo no pensamento de fronteira sobre a literatura a partir de categorias de análise como a heteroglossia, forças centrípetas e centrífugas, cronotopo, etc. (Bakhtin, 1979/2011). Assumir a tarefa de construir um livro de cosmologias da literatura como um direito à reflexão sobre a mesma dá-nos a responsabilidade de reafirmá-lo, junto com o direito à literatura e o direito à criação literária, como “um direito inalienável” a toda a humanidade.
A defesa da literatura sob estes três prismas como apresentada ao longo deste texto é tarefa ainda por ser feita, se tratando de um processo contínuo de reflexão e luta coletiva a partir dos movimentos sociais e acadêmicos. Quando propusemos uma conversa num terreiro, construindo a possibilidade de um diálogo aproximativo entre autor e leitor/a, enfatizamos a necessidade de criação de uma produção acadêmica que quebre barreiras e atue de forma participante dentro do mundo social. Iniciar esta conversa tomando um café à sombra de oitizeiros e mangueiras é uma maneira de vincular vida e pensamento também de forma horizontal.