Introdução
Este artigo desenvolve uma análise sobre como o Estado angolano tem implementado o processo de educação escolar pública na região leste de Angola, a partir das perceções de alunos e alunas que, em 2018, estudavam na 9ª, 12ª e 13ª classes, e de professores e professoras que lecionavam, no mesmo ano, nas escolas do ensino secundário da região. Este trabalho insere-se numa investigação doutoral em Ciências da Educação sobre o desenvolvimento da rede escolar pública na região leste de Angola, no período entre 2008 e 2018.
A proposta tem como objetivo compreender o processo da construção da oferta de educação escolar nas comunidades da região leste angolana, no período temporal de dez anos (2008 a 2018), a partir de dados estatísticos oficiais do Ministério da Educação das províncias da Lunda Norte, Lunda Sul e do Moxico, e das perceções dos atores educativos e dos educandos das comunidades onde tem vindo a ser implantada a educação escolar pública.
O desenho metodológico seguido é eminentemente qualitativo, assente no método de estudo de caso. A recolha dos dados, para além dos documentos oficiais e orientadores das políticas educativas e das estatísticas oficiais do Ministério da Educação disponíveis para as províncias da Lunda Norte, Lunda Sul e do Moxico, foi realizada com recurso às técnicas de inquérito por questionário e por entrevista. Os inquéritos por questionário foram administrados presencialmente pelo investigador, nos meses de março a agosto de 2018, integrando perguntas fechadas e abertas, tendo obtido respostas de 127 professores(as) e de 408 alunos(as) que estudam na 9ª, 12ª e 13ª classes de 11 escolas do ensino secundário da região leste angolana que cooperaram com o projeto de investigação doutoral. As entrevistas semiestruturadas foram efetuadas a diretores de escolas do ensino secundário (7), a representantes provinciais do Ministério da Educação (MED) da região (2), a um representante político do governo central na região e a um pai e encarregado de educação.
Para este artigo, foram selecionadas algumas questões abertas do questionário, designadamente as relativas a: motivos identificados como promotores da procura de educação escolar pela população da região; papel e fins atribuídos à educação escolar; mudanças verificadas no processo de expansão da rede escolar a partir de 2008; e apreciação do papel do Estado na promoção da educação escolar nas regiões do leste de Angola.
Educação escolar
O presente trabalho desenvolveu-se a partir da problemática teórica da construção socio-histórica dos sistemas educativos - e da escola como instituição - enquanto instrumentos concebidos e conduzidos pelo Estado para a escolarização das populações. Este fenómeno ganha expressão, historicamente, desde finais do século XVIII e acelera na sua expansão ao longo do século XIX.
A educação escolar surge em diferentes contextos nacionais a ritmos diferenciados, influenciada pela história, política, economia, cultura e religião, usos e costumes, conduzindo à adoção de modelos simultaneamente específicos a cada país, partilhados progressivamente a nível global. Tal como afirma Alves (2006, p. 12), “as singularidades históricas dessas mesmas nações levaram à formulação de finalidades, objetivos e propostas não coincidentes para a instituição escolar e para a definição dos limites da ação estatal visando estendê-la a todos”.
Em termos socio-históricos, a emergência e o desenvolvimento dos modernos sistemas educativos nas sociedades ditas ocidentais esteve associada a finalidades diversas. Como referido por Nóvoa (2015, p. 224), “a consolidação dos sistemas nacionais de ensino faz-se em paralelo com o desenvolvimento do projeto sociopolítico de afirmação dos modernos Estados-nação”, sendo que estes promovem o ensino escolar com vista ao fortalecimento das suas instituições e à produção de uma identidade comum num território delimitado, e, para esse fim, a educação escolar emerge como meio de fazer chegar e promover a identificação de uma dada população, a uma certa cultura, uma certa história e a uma dada língua comum. A escola é também a instituição criada e desenvolvida para desempenhar funções de manutenção e reprodução do património cultural, assente, como refere Young (2010, p. 90), “(…) a crença de que o conhecimento adquirido através do currículo é (ou, pelo menos, deveria ser) cognitivamente superior ao conhecimento do dia-a-dia”. Ou ainda, como afirmam Silva e Palhano (2021, p. 1863), é “por meio da escola que crianças e adolescentes adquirem determinados conhecimentos, os quais variam em parte de acordo com a região”. Neste mesmo contexto socio-histórico, marcado pelo “desenvolvimento científico e tecnológico e complexificação das sociedades, com a consequente necessidade de especialização e divisão do trabalho” (Santos, 1999, p. 315), a instituição dos modernos sistemas educativos cumpriu ainda a função de transmitir o conhecimento e produzir disposições comportamentais congruentes com a preparação de mão-de-obra, isto é, a qualificação e capacitação das pessoas para o domínio de conhecimentos básicos que permitissem incorporá-las em novas formas de organização do trabalho que então se vinham afirmando na sequência da Revolução Industrial.
Na opinião de Fernandes (1998, p. 35), a conceção, implementação e afirmação da Escola ou do “sistema escolar” foi levada a cabo pela política do Estado-nação e, desde o seu surgimento, está ligado ao sector do serviço público instituído, precisando, para isso, de “estruturas formais hierarquizadas, sob controlo direto ou indireto do Estado”. Segundo este entendimento, a educação escolar compreende um “sistema escolar” com unidades constitutivas - as escolas - e grupos sociais de professores, de alunos, e de outros profissionais e auxiliares de educação. Deste modo, a educação escolar, a nível formal e oficial, realiza as suas atividades formais em espaços adequados para cada atividade, utiliza agentes da educação que sejam profissionais especializados, dirige-se a grupos etários definidos, abrangendo a infância e a juventude.
Este modelo de organização escolar foi implementado em Angola durante o domínio colonial português, que não vamos aqui analisar, e, de forma adaptada, replicado pelas autoridades oficiais no sentido de orientar e fundar, a partir daquele, o sistema educativo angolano, segundo novos princípios e finalidades, após a independência, em 1975, e o cessar das armas da guerra civil, em 2002. Como referiu Vieira (2007, p. 104), “fazer do sistema de educação um instrumento do Estado” também serve para a consciencialização de um povo que saiu de uma guerra pós-independência que, com diferentes intensidades e alguns breves interregnos, se prolongou por quase 30 trinta anos.
A Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino (LBSEE) angolana, homologada pela Lei n.º 17/16, de 7 de outubro, compreende as definições de educação escolar e de sistema educativo, sendo a primeira a que aqui nos interessa analisar por enunciar as finalidades que se associam ao trabalho educativo, que é legítimo esperar que sejam promovidas.
A Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino (LBSEE) angolana define educação como
o conjunto de estruturas, modalidades e instituições de ensino, por meio das quais se realiza o processo educativo, tendente à formação harmoniosa e integral do indivíduo, com vista à construção de uma sociedade livre, democrática, de direito, de paz e progresso social. (Artigo 2.º, alínea 3)
O mesmo diploma reitera que a educação é um processo planificado e sistematizado de ensino e aprendizagem, que visa preparar de forma integral o indivíduo para as exigências da vida individual e coletiva (Artigo 2.º, alínea 1) e que o indivíduo se desenvolve na convivência humana, a fim de ser capaz de enfrentar os principais desafios da sociedade, especialmente na consolidação da paz, da unidade nacional, do ambiente, bem como no processo de desenvolvimento científico, técnico, tecnológico, económico, social e cultural do País (Artigo 2.º, alínea 2).
Ao longo da nossa pesquisa no contexto angolano, verificamos que a questão do surgimento da instituição escolar e do processo de educação escolar não cumpriu plenamente, ou não cumpriu necessariamente, todas as funções e papéis que se esperava que cumprisse.
O porquê de isso assim acontecer estará seguramente associado ao facto de, após o cessar das hostilidades da guerra civil, se ter alterado inopinadamente o panorama demográfico pela vinda maciça de populações que se haviam refugiado nas regiões vizinhas, fazendo com que os mapas anteriormente organizados se mostrassem inadequados para responder às reais necessidades sociais. Por outro lado, o esforço de guerra limitou a capacidade económica do Estado e não permitiu a utilização de meios económicos suficientes a gerar uma resposta adequada. Não obstante, interessa compreender como as populações que são envolvidas por estes processos os percecionam e os valorizam a partir das suas vivências.
Região leste angolana
A região leste de Angola faz fronteira, externamente, com a República Democrática do Congo e com a República da Zâmbia, confinando, internamente, com as províncias de Malanje, do Bié e do Cuando-Cubango.
A região leste do país está subdividida em três províncias: Lunda-Norte, Lunda-Sul e Moxico. De acordo com a projeção do INE (2016b, p. 8): i) a província da Lunda Norte é composta, política e administrativamente, por 10 municípios, 25 comunas, com um total de 1.107 localidades, sendo 122 urbanas e 985 rurais e é habitada por 1.060.551 habitantes; ii) a província da Lunda Sul compreende por 4 municípios, 14 comunas, com um total de 397 localidades, sendo 34 urbanas e 363 rurais e tem 669.413 habitantes; ii) a província do Moxico integra 9 municípios, 30 comunas, com um total de 1.236 localidades, sendo 92 urbanas e 1.144 rurais e 935.649 habitantes.
No período em análise, a região leste de Angola manifesta uma das taxas de analfabetismo mais elevadas do país, pois cerca de metade da população com 15 ou mais anos não sabe ler, escrever ou calcular. As diferenças variam entre, sensivelmente, 52% (Moxico) e 44% (Lunda-Sul) da população que não sabe ler nem escrever nas três províncias, o que indica que em qualquer delas se regista uma taxa de analfabetismo significativamente superior à média nacional (34,4%), como é referido no censo de 2014 (INE, 2016a, p. 54). A inverso, as taxas de alfabetização da população de 15 ou mais anos registam a nível regional a seguinte distribuição (INE, 2016a): a província da Lunda-Norte, 50,0%; a província da Lunda-Sul, 55,8%; e a província do Moxico 47,6%. A média a “nível nacional é de 66%, sendo na área urbana cerca do dobro da área rural, respectivamente, 79% contra 41%” (INE, 2016a, p. 53).
Ainda de acordo com as estatísticas fornecidas pelas direções provinciais de educação da região leste ao Gabinete de Estudo e Planeamento Estatístico (GEPE), no período de 2008 a 2018 existiam naquela região um total de 990 escolas, das quais 213 escolas na província da Lunda Norte, 285 na província da Lunda Sul e 490 na província do Moxico. Curiosamente, a nível da região, a província do Moxico é a que conta com a mais elevado rácio de escolas por habitante, o que possivelmente estará relacionado com a orografia da zona, com a concentração dos seus habitantes em agregados de tamanho médio, e com o facto de não ter atraído populações de fora.
Estudo empírico
O estudo empírico que fundamenta o presente artigo integrou-se numa pesquisa de doutoramento intitulada “Desenvolvimento da educação escolar pública em Angola: perceções de atores locais sobre a escolarização na região leste no período entre 2008 a 2018”, com a configuração de um estudo de caso. Escolheu-se este método de investigação, seguindo as propostas de Yin (2005); Baptista (2012); (Stake (2013), tomando em consideração, o que refere Amado (2014), que:
os estudos de caso de investigação (…) podem ser de natureza quantitativa, de natureza fenomenológica e interpretativa, ou mista (os que conciliam o uso de técnicas e instrumentos próprios das abordagens qualitativas e quantitativas). (…) podem consistir no estudo de um indivíduo, de um acontecimento, de uma organização, de um programa ou reforma, de mudanças ocorridas numa região, etc. são estudos que admitem uma grande multiplicidade de abordagens metodológicas diversas. (pp. 121-122)
O estudo visou analisar a perceção que os estudantes e os/as professores(as) do 1º e 2º ciclos do ensino secundário (ou colégios e liceus) da zona leste angolana possuem sobre o processo da implementação da educação escolar e sobre as suas transformações verificadas no período entre 2008 a 2018. No estudo mais amplo foram visadas as conceções de atores sociais diversos da região leste angolana sobre a educação escolar (designadamente quanto aos seus papéis e fins), as perceções sobre os motivos para a procura de escolarização e para o abandono escolar, a avaliação das infraestruturas escolares e recursos humanos disponíveis, o sentido e o valor atribuídos à educação escolar e sua relação com a educação tradicional e a apreciação do papel do Estado na escolarização daquelas comunidades.
A análise ampla da perceção que tanto alunos(as), como professores(as) possuem sobre a educação escolar, revela em nossa opinião, um aspeto relevante e central a estudar: a representação da sua importância e impacto a nível pessoal e social. A opinião dos principais intervenientes no processo de educação escolar e ensino/aprendizagem, pode constituir uma espécie de alerta para a melhoria de aspetos negativos na educação escolar, ao apelar a uma maior preocupação do Estado relativamente à educação escolar, e para a maior intervenção na mesma, nomeadamente no que respeita as infraestruturas, recursos educativos e humanos, e também ao combate ao analfabetismo e abandono escolar. Ao mesmo tempo permite-nos aferir das conquistas realizadas quanto à expansão dos processos de escolarização e do sentido que o envolvimento naqueles adquire para professores, alunos e comunidades.
A recolha de dados realizou-se a partir do método de inquérito por questionário, dirigido a alunos e a professores, integrando questões fechadas e abertas, o qual, tendo sido elaborado de modo diferenciado para os dois públicos-alvo, foi administrado presencialmente nos meses de março a agosto de 2018. Complementarmente, foram recolhidos mais dados através da realização de entrevistas a atores locais das três províncias do leste angolano. A recolha dos dados, nomeadamente a administração do inquérito por questionário e a realização de entrevistas, estiveram a cargo do investigador principal. Depois de devidamente credenciado e autorizado pelas autoridades do Ministério da Educação de Angola e, designadamente por cada Direção de Educação das províncias envolvidas no estudo, o investigador aplicou o inquérito por questionário em escolas indicadas por estas autoridades. Em cada escola foi dispensado ao investigador um tempo letivo (45 minutos e noutros casos 90 minutos) para explicitação do teor e objetivos da investigação, solicitação de autopreenchimento, esclarecimento de dúvidas quanto ao preenchimento dos questionários e, finalmente, a sua recolha. No caso da administração do questionário a professores coexistiram modalidades de resposta presencial e diferida (alguns professores preferiram responder num outro momento e devolver posteriormente o questionário respondido). As entrevistas foram solicitadas e realizadas em cada uma das escolas aos seus diretores e, igualmente, a responsáveis políticos a nível provincial.
Para este artigo foram selecionadas para análise algumas questões abertas daquele questionário, designadamente as relativas a:
motivos identificados como promotores da procura de educação escolar pela população da região;
papel e fins da educação escolar;
mudanças verificadas no contexto a partir da implementação do processo de educação escolar
e apreciação do papel do Estado na promoção da educação escolar naquele contexto regional.
Num primeiro momento, buscou-se apreender os motivos que, no olhar de alunos e professores, são identificados como promotores da procura de educação escolar pela população da região.
O segundo momento visou apreender as conceções de educação escolar, a partir do modo como são entendidos o seu papel e as finalidades que se lhe são associadas.
Num terceiro momento, procurou-se compreender transformações reconhecidas pelos participantes e as expectativas que decorrem da presença da educação escolar na sua vida e na vida das comunidades que integram. Estas transformações tocaram aspetos da vida pessoal, familiar e comunitária/social. No caso dos professores, estas expectativas dizem respeito aos impactos da educação escolar na vida dos seus alunos, mas também às expectativas que têm para si mesmos enquanto profissionais da educação escolar.
Por fim, abordou-se o modo como alunos e professores avaliaram o que vinha sendo a intervenção do Estado para a promoção da educação escolar pública naquela região, procurando compreender as razões que levaram os inquiridos a adotar perspetivas mais e menos otimistas quanto à intervenção do Estado na promoção da escolarização.
Participaram do estudo 408 estudantes do 1.º e 2.º ciclos do ensino secundário (ou colégios e liceus, de acordo com a nova designação prevista na LBSEE), matriculados, em 2018, nas 9.ª, 12.ª e 13.ª classes, nas escolas das três províncias da zona leste angolana a que tivemos acesso. A maioria dos/as alunos(as) inquiridos/as é do sexo masculino (57.1%), sendo os restantes do sexo feminino (41.4%), e 1,5% omitiram resposta a esta questão. No que respeita à sua escolaridade, a maioria dos respondentes estava a frequentar a 9.ª classe (50.7%), seguindo-se os que detêm a 12.ª classe (29.7%) e a 13.ª Classe (19.4%), e um estudante (0,8%) não respondeu. No que respeita à amostra dos docentes, esta foi constituída por 127 professores(as) que lecionam no 1º e 2º ciclos do ensino secundário, e denotava um baixo índice de feminilidade: só 17,3% dos respondentes eram professoras.
Na medida em que o número de respondentes foi elevado (408 estudantes e 127 docentes) e o corpus de texto obtido bastante amplo, as respostas às questões abertas, foram sujeitas a análise de conteúdo, seguindo as recomendações de Bardin (2014), a qual foi processada através dos softwares SPSS (versão 26) e NVIVO (versão 12) e, a categorização indutiva, daí resultante, foi inserida numa base de dados no sentido de obter tendências quantitativas nas respostas.
Os resultados a seguir reportados resultam da codificação de respostas dadas às questões abertas, tendo sido realizada uma análise descritiva e comparativa entre alunos(as) e professores(as).
Resultados
Procura de escolarização
As famílias da região leste angolana, sobretudo aquelas que têm crianças e jovens em idade escolar, estavam preocupadas com a educação escolar dos seus filhos e filhas, motivo que fez com que procurem a escolarização na expectativa da preparação do seu futuro.
É importante assinalar que uma parte dos alunos e alunas respondentes eram também pais/mães e encarregados de educação, pelo que quando se referiam a estes motivos não os circunscreviam a si mesmos ou à sua experiência, mas os alargavam para os seus próprios filhos (Cf. Quadro 1).
Indicadores | Alunos(as) | Professores(as) | ||
---|---|---|---|---|
Nº | % | Nº | % | |
Formação e desenvolvimento das crianças | 178 | 43,63% | 41 | 32,28% |
Integração social | 51 | 12,50% | 25 | 19,69% |
Recuperação do tempo/oportunidade que a geração anterior não teve | 28 | 6,86% | 23 | 18,11% |
Melhores condições e qualidade de vida | 87 | 21,32% | 23 | 18,11% |
Fonte: elaboração própria.
O motivo mais fortemente evocado como sustentando a procura social dos processos de escolarização na região é coincidente entre professores e alunos. Assim, 43,63% dos alunos e 32,28% dos professores afirmam que a população procura a escolarização com o fim de “formação e desenvolvimento das crianças”, reconhecendo e enfatizando que a escola proporciona uma experiência de socialização algo diferente da que as famílias podem assegurar. Isso mesmo transparece nas respostas dos inquiridos, que acentuam o facto de a educação escolar “assegurar a formação adequada para o desenvolvimento da vida dos filhos(as)”; “garantir o futuro dos filhos”, (…) “ser a base para a melhoria das condições sociais das famílias”, constituir “uma boa formação”, e ou proporcionar “um bom emprego”. Libâneo, de Oliveira, e Toschi (2013, p. 420) destacaram igualmente esse desejo das famílias preocupadas com boa aprendizagem dos seus filhos ao referirem que os “pais desejam que seus filhos aprendam bem (…) que os conhecimentos, habilidades, e os valores tenham serventia para a vida”. Os motivos aqui invocados para a procura de escolarização recuperam e incorporam princípios e “mitos fundadores” dos modernos processos de escolarização (a transformação da condição social, a "promessa" de futuro, a instituição de uma instância e relação de socialização especializada, separada da família).
A formação escolar parece ser requerida e desejada naquela região tendo igualmente como pano do fundo a “integração social” assente na convicção de que a escola tem o poder de evitar trajetórias desviantes entre as crianças e jovens. O valor atribuído à educação para a nova geração neste sentido é uma das causas que leva as pessoas da região a procurar a escolarização para os seus filhos e filhas.
Esta dimensão emerge nas falas dos inquiridos deste estudo. Verificamos que 12,50% dos alunos e 19,69% dos professores referiram a moralização da população como motivo do interesse da população em procurar a educação escolar, como se pode verificar no exemplo dos respondentes, cuja tónica insiste essencialmente na “formação dos filhos”, para “que se não percam na droga, na prostituição ou na ganância”, “para evitar a delinquência”, “que se não integrem em grupos de marginais”, “para formar bons homens e bons cidadãos”, “para uma boa inclusão social e familiar”, “para transformação de normas, valores e atitudes”, ou “como meio de integração social”. Destes discursos pode apreender-se uma certa “pedagogização de problemas sociais” reconhecidos no contexto, associando aos desígnios do trabalho escolar uma narrativa que Nóvoa (2015, p. 234) identifica como tendo estado particularmente presente ao longo do século XX, ancorada em “«ideologias de salvação», alimentando a ilusão da escola como lugar de «redenção pessoal» e de «regeneração social»”, em muitas circunstâncias sendo concomitante com a retração do papel educativo de outros atores e instituições sociais, nomeadamente as famílias e as comunidades.
Outro motivo destacado, por 6,86% dos alunos e 18,11% dos professores, prende-se com a recuperação do tempo/oportunidade escolar que a geração anterior não teve. Isto é, algumas pessoas, num tempo de paz, no país, em geral, e naquela região, particularmente, receiam que os seus filhos e filhas repitam o percurso que muitos deles tiveram, enquanto jovens, no tempo do conflito armado. É o que se encontrou nas falas dos inquiridos ao exprimirem a opinião de que procuram a educação escolar para seus filhos e filhas porque durante a guerra civil não tiveram a oportunidade de aprender, e querem que “os seus filhos aproveitem este tempo de paz, porque a vida sem educação escolar é muito difícil”; “para que seus filhos não sejam analfabetos como os pais que perderam seu tempo sem estudar no tempo da guerra”.
Por fim, 21,32% dos alunos e 18,11% dos professores, incidem o seu testemunho na obtenção de melhores condições e qualidade de vida, com particular/forte ênfase na obtenção de emprego, na fuga à pobreza, tendo como horizonte um futuro melhor para as suas famílias. Assim, afirmam que a educação escolar permite “obter emprego”, “melhoria da vida familiar e do desenvolvimento social”, “tirar o filho do analfabetismo”, “reduzir a pobreza extrema no seio da população”, “preparar um futuro melhor”, “ter um emprego e que sejam capazes de sustentar a própria família”, “acabar com o analfabetismo”, “para adquirir conhecimentos científicos”, “expectativas do emprego”, “para obtenção de título académico”. Como se pode verificar, são tanto a obtenção de condições materiais de existência como os processos que permitem alcançá-las é que são visados, mais uma vez projetando no futuro os benefícios das aquisições escolares.
Olhados globalmente, os motivos que os respondentes entenderam estar subjacentes à procura de educação escolar naqueles territórios exprimem uma síntese entre a recuperação do tempo perdido com a guerra e as promessas de futuro associadas à obtenção de emprego e outras condições de existência material. Este posicionamento é marcado pelo desejo de que a educação escolar se afirme como protagonista da produção de um contrato social, associado à noção de coesão social.
Educação escolar: papel e fins
Para analisar a conceção de educação escolar de alunos e alunas e professores e professoras procurou-se apreender o sentido que esses inquiridos atribuiam ao papel por ela desempenhado, em termos individuais e sociais, bem como aos fins que estes lhe consignavam, por um lado. Por outro, visou-se ainda apreender as características que são atribuídas pelos respondentes ao processo de educação escolar. Isto é, a conceção de educação escolar foi apreendida a partir destas três entradas, resultantes da intersecção entre características do processo, papel desempenhado (sendo que a distinção entre papel e fim procura destacar referências à ação e aos efeitos dessa ação, respetivamente) e finalidades sociais desejáveis.
Dentro da categoria sobre a educação escolar, seu papel e finalidades podemos ainda identificar opiniões diferenciadas entre os inquiridos alunos(as) e professores(as). Deste modo, para as categorias aqui apresentadas houve necessidades de explicitar posicionamentos que traduzem tendências que exprimem perspetivas diferentes sobre o sentido da educação escolar (Quadro 2).
Indicadores | Alunos(as) | Professores(as) | |||
---|---|---|---|---|---|
Nº | % | Nº | % | ||
Conceção de educação escolar | Transmissão de conhecimento | 169 | 41,42% | 53 | 41,73% |
Promoção da educação integral | 131 | 32,10% | 39 | 30,70% | |
Transformação e melhoria social | 49 | 12,00% | 12 | 9,44% | |
Papel e fins da educação escolar | Alfabetização para diminuição do analfabetismo no território | 226 | 55,39% | 59 | 46,45% |
Formação individual para a preparação dos cidadãos | 219 | 53,67% | 69 | 54,33% | |
Socialização para a integração social | 112 | 27,45% | 40 | 41,49% |
Fonte: elaboração própria.
A tónica mais forte nos discursos, quer de alunos(as), quer de professores(as), é a que acentua a ideia de educação escolar, enquanto processo de alfabetização, estar associada à finalidade de diminuição do analfabetismo no seio da população da região (55,39%), de formação de cidadãos (53,67%), e de transmissão de conhecimento (41,42%, no caso de alunos, e 41,73%, entre os professores).
Estas categorias, quer a do processo de transmissão de conhecimento, quer a da alfabetização das pessoas, quer ainda a da diminuição do analfabetismo na região, resultam da agregação feita no processo da análise de conteúdo a partir das falas dos inquiridos quando questionados sobre o que é a educação escolar, seu papel e fins.
Transmissão de conhecimento
Não havendo uma diferença significativa no modo como alunos(as) e professores(as) procederam a esta conceptualização da educação escolar, a dimensão processual, enquanto característica da educação escolar, foi enfatizada nas respostas. Esta foi apresentada como um processo organizado e sistemático, conduzido por profissionais (docentes), legitimados pela autoridade do Estado, incidindo fundamentalmente na transmissão de conhecimento científico ou académico, a que, com menos expressão nas falas dos inquiridos, se juntam outras formas de conhecimento (cultural, cívico e moral).
Assim, no caso do(a)s alunos(as) destacam-se algumas frases que ilustram estas ideias de que “a educação escolar é um tipo de ensino administrado nas escolas, na qual, com ajuda de um docente profissional, transmite os conhecimentos científicos, culturais, religiosos, políticos e sociais aos seus alunos”; ou que “é um processo de ensino que se concretiza através da relação entre um professor e um aluno ou muitos alunos na sala de aula, serviço tutorado pela entidade do ministério da educação para orientar o que o professor ensina ao aluno”.
No caso dos professores(as) evidenciaram-se discursos como: “a educação escolar é o processo instrutivo que é dada na escola como instituição, pelo uso de metodologias para transmissão de conhecimento cujo agentes principais são o professor e o aluno”; “a educação escolar é um processo sistemático que visa apenas à transmissão de determinados legados culturais, isto é, de determinadas ciências, técnicas ou modos de vida com objetivo de preparar pessoas a habilitar-se e adquirir certos conhecimentos especiais que deverão adaptá-las (durante a sua vida).
Esta conceção de educação escolar que enfatiza o processo de transmissão de conhecimento marcou historicamente a instituição escolar. Refletiu-se nomeadamente na afirmação do que Rui Trindade e Ariana Cosme (Trindade & Cosme, 2010, p. 30) identificam como “paradigma da instrução” que “corresponde à emergência do modelo de educação escolar que visava responder às necessidades e exigências de um tempo onde se anunciava uma nova era, fundada, agora, no primado da Razão, do Indivíduo e do Estado”. Não obstante a crítica que se produziu sobre os impactos da adoção hegemónica e quase exclusiva de um paradigma instrucionista da educação escolar (cf. Trindade & Cosme, 2010), importa salientar que a transmissão do conhecimento é um enorme desafio com que a escola se debate no seu dia-a-dia ao longo da sua existência. Com efeito, é um dos pilares que assegura a estrutura escolar até hoje e que, no nosso entender, prevalece como significativo. Nesta linha, concordamos com Young (2007, p. 1294), quando salienta as consequências nefastas de “negar as condições de adquirir ‘conhecimento poderoso’ para os alunos que já são desfavorecidos pelas suas condições sociais” e acrescentamos, que tal seria desvincular o propósito da escola e da educação escolar com as finalidades a ela associadas pelos inquiridos na nossa pesquisa.
Promover a educação integral
Nas respostas dadas pelos inquiridos sobre a temática da educação escolar emergiu outra categoria que, no decorrer da análise de conteúdo, designamos por promoção da educação integral. A distinção entre a anterior (transmissão de conhecimento) e esta categoria prende-se com a amplitude com que os inquiridos retrataram as finalidades da educação escolar, destacando, essencialmente, aquelas que se prendem com a formação do indivíduo, do trabalhador e do cidadão. Por um lado, estas finalidades estão contempladas na LBSEE: “assegurar uma formação harmoniosa e integral de qualidade que permita o desenvolvimento das capacidades intelectuais, laborais, artísticas, cívicas, morais, éticas, estéticas e físicas” (artigo 25.º, alinha a). Por outro, elas também são visadas pelas palavras dos inquiridos alunos(as) ao referirem “formação completa”, visando a “formação académica”, “técnico-pedagógica”, “moral e cívica”. A título de exemplo, um dos inquiridos refere que “a educação escolar entendo-a como formação integral do homem”; ou, como salienta outro, “para mim a educação escolar é muito importante porque é a formação completa que me garante um bom futuro” ou ainda “é base (…); onde adquirimos a nossa formação, educação moral e cívica”.
A promoção da educação integral foi requerida por 32,1% dos(as) alunos(as) e 30,7% dos professores(as) inquiridos, taxas que nos remetem para o que Gonçalves (2006) identifica como o desígnio da “multidimensionalidade” no processo educativo. Atendendo ao “sujeito em sua condição multidimensional, não apenas na sua dimensão cognitiva, como também na compreensão de um sujeito que é sujeito corpóreo, tem afetos e está inserido num contexto de relações” (Gonçalves, 2006, p. 129).
Também no grupo dos(as) docentes inquiridos se encontram frases em que emergiu esta categoria: “(…) formação da personalidade intelectual, académica e profissional”; e “(tem) como objetivo educar e instruir crianças, jovens e outros e prepará-los para a vida política, económica e social do país em geral”; “é um processo de transmissão da herança cultural às novas gerações que se reveste em planificação e sistematização de ensino e aprendizagem que visa preparar de forma integral o indivíduo para as exigências da vida pessoal e coletiva”; “é a educação que forma o homem integralmente a nível profissional, ou seja, com conhecimento científico, cultural e familiar para um bom relacionamento social”; e, por fim, “é a educação para formar o homem de modo integral para atender as exigências das sociedades atuais”.
A ideia de educação integral associada à educação escolar é referida por António Nóvoa, em 2009, discorrendo criticamente sobre um dos seus entendimentos enquanto “conceito que melhor traduz o projeto da modernidade escolar” na medida em que procura “marcar o desejo de alargar o esforço educativo ao conjunto das atividades do indivíduo em formação, revela[ndo] a desmedida da ambição pedagógica” (Nóvoa, 2009, p. 53).
No entender de Nóvoa (2009), a educação integral surge como
um termo mais amplo do que o de espaço escolar, um espaço de redes e de instituições no qual se concretiza a “educação integral” das crianças e dos jovens, seja no que diz respeito à formação religiosa ou cívica, ou à aquisição de um conjunto de “competências sociais”, ou ainda à preparação do momento de transição entre a escola e o trabalho. (Nóvoa, 2009, p. 63)
O autor interpreta este conceito em três momentos: “num primeiro, a referência à educação integral consagra a necessidade de articular a educação física, intelectual e moral. Na viragem do século XIX para o século XX, este movimento adquire uma segunda dimensão, racional”, que tem por fim “criar em cada criança, não um ser mutilado, mas um indivíduo socialmente completo, conhecedor de todos os seus direitos, tendo uma consciência social integral”. Nesta mesma época, insiste-se cada vez mais na atenção à vida física e à vida psíquica, ao bem-estar material e ao equilíbrio afetivo dos alunos. Estamos perante uma terceira aceção do princípio da educação integral, que legitima a intervenção, no espaço educativo, de um exército de “especialistas da alma” (higienistas, médicos, psicólogos). Apesar de distintas, estas perspetivas fazem parte de uma mesma atitude pedagógica que procura assegurar a socialização plena e o desenvolvimento total dos alunos” (Nóvoa, 2009, pp. 53-54).
Transformação e melhoria social
A última categoria que emergiu nas opiniões dos inquiridos sobre o que se entende por educação escolar, no caso 12% de alunos(as) e 9,4% de professores(as), tem a ver com o seu contributo para a transformação e melhoria social, das pessoas e do próprio contexto regional. Como se pode ler nas opiniões expressas pelos alunos(as) inquiridos: “a educação escolar é a transformação da vida do homem na sociedade e das pessoas da minha comunidade”; “a educação escolar transforma o homem dos seus caracteres negativos promovendo nele os positivos”. E, entre os(as) professores(as): “é instrumento capaz de transformar a consciência do indivíduo preparando-o para a sua adequada inserção na sociedade”; “a educação escolar serve para ajudar a transformar a vida social, moral e económica de muitas pessoas”; “é o processo que visa direcionar o indivíduo a desenvolver-se no aspeto intelectual, moral e físico a fim de inserir-se dignamente na sociedade”, e “a educação escolar é um sistema planificado que serve para formar um indivíduo capaz de responder às exigências da vida coletiva”.
Em síntese, como podemos verificar, quanto às conceções de educação escolar, os discursos dos inquiridos foram interpretados e reunidos em três subcategorias principais revelando que um número significativo de estudantes de docentes considera que: i) a educação escolar é um “processo de transmissão de conhecimentos” (41,42% e 41,73% respetivamente); ii) ela é um meio de “promover a educação integral” (32,11% e 30,71%, respetivamente); iii) e “contribui para a transformação e melhoria social” (12,01% e 9,44%, respetivamente).
Alfabetização das pessoas para diminuição do analfabetismo no território
Nesta secção procura analisar-se os papéis e fins atribuídos à educação escolar segundo os testemunhos dos inquiridos. Não obstante a sua estreita interdependência e associação nos discursos, para efeitos de análise, o papel associa-se a uma ação que se executa, enquanto os fins permitem resgatar o sentido que os inquiridos associam aos efeitos que se identificam como desejáveis em resultados da frequência de processos de educação escolar pelas pessoas das comunidades estudadas.
No que concerne à identificação da alfabetização para a diminuição do analfabetismo como papel primordial e como finalidade central da educação escolar há que assinalar a resposta de 55,39% dos estudantes e de 46,45% dos docentes. Nas respostas do(a)s alunos(as) e do(a)s professores(as), o principal enfoque está na alfabetização ou, a inverso, na erradicação do analfabetismo, de modo a “tirar as crianças e adolescentes do analfabetismo e da miséria” e ainda de “formar o cidadão e a pessoa da comunidade, mostrando-lhe o futuro desejado para a vida feliz”; ou “de equipar indivíduos com várias competências de conhecimentos sociais e científicos capazes de ajudar a servir a sociedade”; “o papel de educação escolar é de formar indivíduos capazes para transformar e potenciar o desenvolvimento da província”, portanto, “o papel da educação escolar é, de facto, o de alfabetizar as pessoas e de equipar os indivíduos com várias competências de conhecimentos sociais e científicos capazes de ajudar a pessoa a servir bem a sociedade”.
A expressão quantitativa deste papel e finalidade atribuídos à educação escolar não pode ser dissociada da realidade deste contexto territorial (em absoluto e por comparação com outras regiões de Angola) marcada por baixas taxas de alfabetização. O sistema educativo enfrenta, pois, complementarmente os desafios da escolarização das gerações mais novas, mas igualmente o de proporcionar essa oportunidade a gerações anteriores que não tiveram oportunidade de serem alfabetizadas. Importa, no entanto, refletir sobre o sentido que nestes testemunhos se associa a este processo. Como salientam Vóvio e Kleiman (2013),
a alfabetização é apontada como processo fundamental para a construção de um projeto de sociedade inclusiva e democrática, constituindo-se como requisito necessário para dar continuidade à escolarização, processo que compreende o acesso a bens culturais construídos ao longo da história e a modelos culturais de ação, fundados em saberes, valores e práticas socialmente prestigiados. (p. 177)
Mas, importará igualmente ter em consideração a abordagem de Paulo Freire que releva a alfabetização dos adultos, pela sua “natureza da aquisição da linguagem”, mas sem jamais a dicotomizar perante o “processo político de luta pela cidadania”, pois como refere Freire (1997, pp. 102), “a leitura e a escrita das palavras (…) passa pela leitura do mundo”.
Formação individual para a preparação dos cidadãos
Esta categoria emergiu quando os inquiridos deste estudo associaram a educação escolar ao papel desempenhado na formação de cidadãos e de capacitação de recursos humanos, no quadro de processos de desenvolvimento económico relacionados com o contexto do Estado angolano. Assim, a temática de formação de cidadãos está presente em 53,67% das respostas dadas pelo(a)s alunos(as) e em 54,33% dos(as) docentes. Nas palavras de alunos(as) e professores(as) podemos verificar que se insiste essencialmente em duas finalidades para a educação escolar: produzir cidadãos e capacitar recursos humanos a serviço de processos de desenvolvimento, tendencialmente equacionados por relação ao contexto do estado-nação angolano. Importa realçar que na maioria dos testemunhos as duas finalidades coexistem. A este respeito são exemplos as afirmações de que “a educação escolar serve para formar o indivíduo intelectualmente de modo a prepará-lo para desenvolver a sociedade”; “(…) formar quadros capazes de levantar e desenvolver suas aptidões em prol de uma nação forte e estável”; “a finalidade própria é autonomia - educação escolar tem finalidades próprias, isto é, orienta-se para realizar em cada aluno um determinado papel ideal de cidadão dotando-o dos saberes e do saber fazer”; “a educação escolar serve para formar o cidadão para ser um excelente profissional, ensinando-lhes os valores cívicos e morais”; “a educação escolar tem como fins formar o homem para o mercado de trabalho”; ou “a educação escolar instrui o indivíduo a fim de estar capaz de enfrentar o mercado de trabalho e servir a sociedade”.
Pelas respostas dadas pelos inquiridos, conclui-se que há coincidência e estabilidade entre as opiniões manifestadas pelos mesmos e a letras da LBSEE, tal como referido na secção sobre “Educação Escolar”deste trabalho.
Socialização para a integração social
Uma terceira tendência nas respostas dos inquiridos enfatizou o papel socializador da educação escolar, para o qual identificamos as respostas dada por 27,45% dos(as) alunos(as) e de 41,49% dos(as) docentes.
Nas suas respostas, os inquiridos entendem que a educação escolar tem como fim socializar as pessoas no seio das suas comunidades: “a educação escolar serve para educar nas boas maneiras de convivência na sociedade”; “ a educação escolar serve para educar as crianças e para tirá-las de mau caminho”; “a finalidade da escola é de: instruir, socializar e estimular o indivíduo”; “instruir para transformar o indivíduo (ser humano) para servir a sociedade”; “para melhor socialização da juventude, com base sua integração no mercado de emprego”; e “serve para mudar o homem no modo de pensar, agir, falar e estar, de modo a mudar o comportamento”.
A socialização, como encontrada nos discursos dos inquiridos, aproxima-se do sentido que lhe foi atribuído por Durkheim (1895, p. 37 e seguintes), enquanto processo de constituição de uma maneira de agir, de pensar e de sentir que apresenta a notável propriedade de existir fora das consciências individuais; assim, a execução de tarefas individuais, a assunção de compromissos e deveres sociais, a observação de usos e costumes, e o cumprimento de obrigações profissionais, não seriam mais do que fruto do processo de socialização. Nessa ótica encontra-se igualmente Borsa (2007, p. 1) quando reforça que a socialização é um “processo interativo, necessário para o desenvolvimento através do qual a criança assimila a cultura, ao mesmo tempo que, reciprocamente a sociedade se perpetua e se desenvolve (…) ao longo de todo o ciclo de vida”.
Em síntese, na análise às respostas dos inquiridos encontram-se características que atribuem à educação escolar o papel de alfabetização das pessoas, da formação do cidadão e da capacitação de recursos humanos e entre as finalidades desejáveis para a educação escolar implementada pelo Estado angolano é relevada, sobretudo, a diminuição do analfabetismo na população da região e a preparação dos cidadãos para a sua integração na vida da sociedade.
Mudança na vida das pessoas com a educação escolar
No que respeita às principais mudanças verificadas com a educação escolar, naquele contexto regional, os participantes deram especial relevância ao facto de a mesma permitir uma: i) melhoria no conhecimento e competências académicas individuais, como foi referido por uma maior proporção de alunos(as) e de professores(as) respondentes - 53,18% e 47,24%, respetivamente -; e ii) formação adequada para fazer face a questões de ordem social e cívica - 47,30% dos alunos e de 52,76% de professores (Quadro 3).
Indicadores | Alunos(as) | Professores(as) | ||
---|---|---|---|---|
Nº | % | Nº | % | |
Melhoria no conhecimento e competências académicas individuais | 217 | 53,18% | 60 | 47,24% |
Formação em questões de ordem social e cívica | 193 | 47,30% | 67 | 52,76% |
Melhoria de acesso ao emprego | 22 | 5,39% | 7 | 5,51% |
Fonte: elaboração própria.
A melhoria de acesso ao emprego não parece representar uma mudança relevante segundo o baixo índice de referência que lhe foi atribuído tanto por alunos(as) (5,39%), como por docentes (5,51%). Este menor interesse poderá explicar-se por a região em estudo ser caracterizada por uma estrutura económica assente numa agricultura de subsistência assegurada pelas famílias, em pequenas lavras, e de serem poucos os indivíduos com a aspiração ao desempenho de trabalho dependente, nos serviços ou nos ofícios.
Nota-se uma especial incidência dos respondentes na melhoria de comportamentos sociais e cívicos em resultado da educação recebida e ministrada. É uma constatação que vem ao encontro do que diz a Lei n.º 13/01, de 31 de dezembro, artigo 18, alínea b): “aperfeiçoar hábitos e atitudes tendentes à socialização”, assim como, da importância em “desenvolver harmoniosamente as capacidades físicas, intelectuais, morais, cívicas, estéticas e laborais da jovem geração de maneira contínua e sistemática, e elevar o nível científico, técnico e tecnológico, a fim de contribuir para o desenvolvimento socioeconómico do país” (INIDE, 2009, p. 42). E, também, o que sugere Libâneo (2008, p. 60), quando afirma a importância “que os objetivos escolares e a organização curricular reflitam os interesses e necessidades formativas dos grupos sociais existentes na escola”.
Veja-se, a título de exemplo, como os inquiridos foram exprimindo as suas ideias, onde se destaca a relevância do conhecimento e competências académicas individuais, assim como da formação em questões de ordem social e cívica: “muita coisa mudou na minha vida, por exemplo, eu não sabia ler e escrever”; “mudou a minha maneira de ser e de interagir com as pessoas”; “a maior mudança é a redução do analfabetismo no leste de Angola particularmente na minha província”; “mudou o comportamento e atitude. O comportamento da pessoa que estuda é diferente com o da pessoa que não estuda, a maneira de como se expressar”.
Os inquiridos salientaram ainda:“Na minha vida mudaram vários aspetos, como a posição social; graças à educação, hoje, me tornei um funcionário público”, “mudou muita coisa, consegui emprego e trabalhar e aprendemos várias habilidades“, “Consegui ser funcionário público, tenho hoje capacidade de poder ajudar a minha família”, “quanto a mim e outras pessoas a educação escolar trouxe grandes mudanças, facilitou-nos a obtenção de título académico para assegurar o emprego”, “o que mudou na nossa vida é a visão, já tenho emprego já me tirou na pobreza”.
Essa perspetiva transmitida por alguns dos docentes da região, que já obtiveram emprego mercê da sua formação académica, encontra respaldo no que refere Charlot (2013, p. 96) ao afirmar que “o facto de ter ido à escola, e ter obtido resultado até certo nível de escolaridade, ter obtido um diploma, abre perspetiva de inserção profissional e ascensão social. Estudos e diplomas permitem conseguir empregos gerados pelo desenvolvimento económico e social e pela expansão da própria escola”.
Perceção sobre o papel do Estado na promoção da educação escolar
No que respeita ao que os participantes pensam sobre o papel do Estado na promoção da escolarização/educação escolar das pessoas nas comunidades da região leste (Quadro 4), uma notável percentagem de 53,43% de alunos(as) e de 43,31% de professores(as) refere que a ação das autoridades oficiais dedica atenção à educação escolar em termos de construção de infraestruturas escolares naquela região, com a construção de novas escolas e o seu apetrechamento em carteiras e outro material escolar: “o Estado preocupa-se porque apoia as escolas com carteiras, bancos, quadros, giz, apagadores e outros instrumentos”; “preocupa-se, pois construiu escola nos municípios”; “o Estado está-se a preocupar com a escolarização ao construir as escolas e com a colocação dos novos docentes”.
Indicadores | Alunos(as) | Professores(as) | ||
---|---|---|---|---|
Nº | % | Nº | % | |
A preocupação do Estado angolano com a educação escolar manifesta-se no aumento de infraestruturas escolares, de recursos educativos e, consequentemente, na diminuição do analfabetismo na região | 218 | 53,43% | 55 | 43,31% |
Perceção de alunos(as) e professores(as) manifesta insuficiência de recursos educativos e humanos nas escolas da região leste angolana | 259 | 63,48% | 76 | 59,84% |
População estudantil da região leste angolana com perceções sobre o papel do Estado na promoção da educação escolar em vista à sua empregabilidade | 113 | 27,69% | 6 | 4,72% |
Fonte: elaboração própria.
Uma percentagem assinalável de 63,48% de alunos e alunas, e de 59,84% de professores e professoras, considera que o Estado, para além das parcas instalações escolares construídas, não parece preocupar-se muito com as condições do processo educativo em si, apresentando como razão a insuficiência de recursos educativos e humanos nas escolas daquela região, como se apresenta nas seguintes respostas dos inquiridos: “porque na nossa comunidade há poucas escolas, há muitas pessoas que querem estudar, mas as escolas são poucas”; “na minha área de residência existem poucas escolas, são cerca de 100 a 120 alunos nas salas de aula, e as mesmas não estão bem equipadas”; “porque o próprio governo não visita a infraestrutura para se fazer a manutenção da mesma”; “porque as escolas são poucas ao nível da região leste”; “hoje eu vejo muitas escolas estragadas, assim não teríamos crianças a estudar debaixo de árvores, por isso digo que o Estado se preocupa pouco”; e “porque não temos cantina escolar, não temos a prática mas a teoria, nós queremos os avanços técnicos na nossa escola do município do Alto Zambeze”.
Os(as) professores(as), particularmente, salientaram muito o facto de o seu envolvimento na educação escolar lhes (dever) permitir uma valorização e um reconhecimento pessoal e receberem uma retribuição (mais moral, social e pecuniária) e uma habitação por parte da entidade empregadora: “quem dá o seu contributo na sociedade … espera mérito ou reconhecimento fruto de seu empenho”; “ser reconhecido pelo meu trabalho, melhorar as condições de trabalho e salário condigno”; “no Cazombo sentimo-nos mais desvalorizados por parte das autoridades que não nos incentivam como profissionais”; “gostaria receber respeito pela minha função dentro da minha comunidade e ter uma habitação condigna”; “espero um dia ver os meus esforços a serem reconhecidos”; “sim, moralmente espero ver retribuir-me respeito na comunidade como educador”; e “valorização dos professores através de salários dignos e melhores condições de trabalho”.
Por fim, uma significativa percentagem de alunos e alunas, que corresponde a 27,69% dos inquiridos (sendo de ínfima expressão de professores e professoras, correspondendo a 4,72%), revelou que as pessoas alfabetizadas na região procuram emprego. As falas dos(as) alunos(as) assim demonstram: “espero que um dia consiga trabalhar e ajudar a minha família que tanto espera o fruto dos meus estudos”; “espero um bom emprego e dar a mesma educação aos meus filhos”; “espero ser um trabalhador e organizar o meu futuro”; “espero ter um emprego para sustentar a minha família”; “espero ter bons êxitos no final do ano e obter o primeiro emprego”; “o que eu espero é emprego”.
De notar que são, sobretudo, os estudantes os mais preocupados com a situação da procura do emprego (os docentes já estão inseridos no Ministério da Educação). Pelo facto de os estudantes inquiridos se encontrarem a terminar o 2º ciclo do ensino secundário e ansiosos por conseguirem uma habilitação literária que lhes dê acesso ao mercado de trabalho, estarão muito interessados em procurar o seu primeiro emprego e começar a trabalhar, mais do que a dar continuidade aos estudos no ensino superior.
Assim visto, os resultados qualitativos parecem significar que apesar do(a)s alunos(as) e professores(as) considerarem que é pouca a preocupação do Estado com a escolarização, também consideram que o mesmo se preocupa minimamente com a diminuição do analfabetismo. Da mesma maneira que as opiniões dos docentes se dividem quase por igual entre uma visão positiva e negativa do papel do Estado na escolarização, também nas respostas dos estudantes esta mesma tendência se verificou. Isto é, há exatamente um equilíbrio entre as respostas que se inclinam para uma apreciação positiva e para uma apreciação negativa do papel do Estado na escolarização das populações da região. Há um número maior de docentes que refere que o Estado se preocupa com a escolarização da população e um número muito semelhante de estudantes que não concorda com esta questão.
Também é interessante constatar que quando questionados, abertamente, sobre o que esperam da educação escolar, tanto os(as) alunos(as) como os(as) docentes revelam, na sua maioria, que esperam essencialmente melhorias a nível pessoal e social, no sentido de serem mais reconhecidos e valorizados. Tal facto parece indiciar uma forte necessidade de os participantes terem um maior índice de educação escolar, facto que lhes permitirá obter mais conhecimentos e competências, melhorar o seu estatuto na sociedade, assim como conseguirem uma melhor integração na mesma. Acresce, também, o facto de muitos estudantes esperarem conseguir um bom emprego, o que também parece ser indicador da perceção existente sobre a importância da educação secundária para o futuro profissional e económico.
Tal facto leva-nos a pensar que os participantes do nosso estudo têm uma visão da educação escolar como algo que lhes trará satisfação, reconhecimento e integração social, o que é, sem dúvida, uma das principais funções e papel da educação escolar.
Considerações finais
Nas respostas obtidas quer de alunos e alunas, quer de professores e professoras foi possível verificar que, em geral, a população reconhece a importância da educação escolar e que tem expectativas quanto ao seu papel transformador dos indivíduos e para a região. Com efeito, os resultados apresentados referem os motivos percecionados pelos alunos(as) e professores(as) inquiridos que levam à população daquela região a interessar-se pela escolarização dos seus filhos e filhas onde se releva a procura de boa formação adequada tendo em vista a sua integração social, e a melhoria das suas condições económicas e sociais e a recuperação do tempo e da escolaridade perdidos pelas gerações mais velhas. Complementarmente, é salientado que as alterações resultantes da educação escolar permitiram melhorar o conhecimento e competências individuais dos inquiridos, a sua formação cívica e moral, e melhorar o seu acesso ao emprego. Os papéis e fins atribuídos à educação escolar enfatizam a sua dimensão de transmissora de conhecimentos, a par de uma educação integral, contribuindo para a melhoria do indivíduo e da sociedade, em geral, procurando preparar cada um para o mercado do trabalho e para uma cidadania consciente e diminuir ou erradicar o analfabetismo.
Porém, alguns aspetos merecem um olhar crítico dos inquiridos e são alvo de maior preocupação, em particular o papel do Estado na sua contribuição para a educação escolar. É opinião geral que há manifestações de interesse da parte do Estado na generalização e melhoria da rede escolar, das infraestruturas e equipamentos e na preparação e colocação de pessoal docente e auxiliar, mas que as primeiras ou são insuficientes ou muitas vezes inapropriadas, umas, necessitando de adequação e reparação urgentes, outras, por forma a garantir o acesso da generalidade da população a um ensino com o mínimo de qualidade.
Para esse efeito, o Estado deverá dedicar especial atenção ao ensino, fazendo o levantamento das necessidades de novas infraestruturas escolares por forma a satisfazer as necessidades, tendo em conta que cada turma não exceda o número de alunos recomendado, e reservando nos orçamentos anuais verbas suficientes para encarar o esforço a despender com a construção de novas escolas, e de reparação das que já não satisfazem os objetivos educativos, e que continue o esforço de preparação e colocação de número de docentes e auxiliares em número compatível com as necessidades da rede escolar e proporcionando-lhes, acima de tudo, um salário condigno.
Considera-se fundamental prosseguir com a realização de estudos sobre esta temática da educação escolar, e não só a nível da zona leste angolana, mas também a nível nacional, por ser um aspeto a aprofundar, dada a relevância e impacto social e académico que representa para Angola.