INTRODUÇÃO
Quando pensamos no termo ciborgue, logo nos remetemos a um cenário de ficção científica em que seres não humanos, desenvolvidos por meio de avançada tecnologia, passam a se fazer presente no ambiente humano. Robôs, máquinas que nunca descansam ou dormem, enfim, seres imortais, que na maioria dos casos, são representados mais como ameaças do que como aliados.
No momento histórico que vivemos, ainda não é possível vislumbrar esse cenário fora do plano ficcional, no entanto a presença ciborgue há muito tempo já paira entre nós, manifestada nos termos de Green e Bigum (2005) pela ampliação dos jovens por meio das “próteses das novas tecnologias” (Gree & Bigum, 2005, p. 230). Baseados em Haraway (1991), os autores mencionados utilizam o termo ciborgue para identificar a hibridação entre os jovens e a máquina, o que a primeiro momento pode causar certo pasmo, estranheza, esta que logo se esvai quando reconhecemos que estamos cada vez mais dependentes/ligados a equipamentos tecnológicos que estendem nossas atividades de lazer, educação, trabalho, convivência, formação, saúde entre tantas outras.
Loveluck (2018) bem demonstra a condição ciborgue em nosso meio, a identificando nos implantes, próteses, cirurgias, vacinas, intervenções genéticas, bem como por meio do uso de artefatos que de algum modo aceleram e expandem a capacidade humana, como óculos ou computador. Para o autor
Todos somos, enquanto indivíduos, mais ou menos ciborgues - na medida em que nossa ‘natureza’ é transformada pela ‘cultura’, compreendida como um conjunto de alterações prostéticas, começando pelo uso da ferramenta e da linguagem, cuja continuidade se faz mediante as tecnologias-ciborgue. (Loveluck, 2018, p. 85)
A mesma ideia é acompanhada por Sales (2014). Para a autora (2014, p. 233), seríamos todos ciborgues, pois fazemos uso de “telefones, calculadoras, computadores, automóveis, diversos tipos de próteses e mais uma enorme variedade de artefatos tecnológicos que tende ao infinito”. Assim como Gree e Bigum (2005), a autora apresenta, ainda, importantes estudos (Sales, 2010, 2014; Sales & Paraíso, 2011) que apontam as juventudes como ícones desse tipo de interação entre máquina e humanos, devido ao vasto uso que esses sujeitos fazem das tecnologias.
Nas pesquisas de Sales (2010, 2014), assim como em Sales e Paraíso (2011), é possível constatar que essa interação entre juventudes e tecnologia influencia a produção, orientação do comportamento e a condução da própria existência dos jovens, sendo as tecnologias digitais um elemento crucial na formação das juventudes, assim como “um importante elemento constitutivo da cultura juvenil, afinal, esse grupo está cada dia mais ciborguizado” (Sales, 2014, p. 234). Considerando o cenário escolar, não seria tão complexo perceber a ciborguização nos jovens que constituem esse ambiente, identificando nesses sujeitos íntima relação entre eles e o seu aparelho celular, já que este se trata de um “artefato bem presente entre as juventudes” Sousa & Vargas, 2023, p. 253).
JUVENTUDES CIBORGUE DO ENSINO MÉDIO
Com base em Pais (2003), entendo que as juventudes são socialmente construídas, sendo diversas as formas de se ser jovem, estando inclusive, sujeitas a transformar-se com o passar do tempo. De acordo com o autor
A juventude tanto pode ser tomada como um conjunto social cujo principal atributo é o de ser constituído por indivíduos pertencentes a uma dada fase da vida, principalmente definida em termos etários, como também pode ser tomada como conjunto social cujo principal atributo é o ser constituído por jovens em situações sociais diferentes entre si. (Pais, 2003, p. 44)
Tanto Prates (2021) quanto Margulis e Urresti (2000) nos ajudam a perceber que a juventude não ocorre da mesma forma a todos os jovens, estando esta sujeita a vários aspectos culturais e sociais como idade, geração, crédito vital, classe social e gênero. Desse modo é mais produtivo entender esta categoria, juventude, no plural “juventudes” (Sousa & Vargas, 2022; & Carrano, 2007; Vargas et al., 2020), uma vez que são diversas as dimensões que caracterizam as juventudes e múltiplas as possibilidades de vivenciá-las.
Essas diversas juventudes povoam as salas de aula e, em certa medida, interagem mais com a máquina, seu celular, do que com o próprio ser humano ou em muitos casos, a maioria das interações com os seres humanos por elas realizadas, são mediadas por este artefato eletrônico, que parece funcionar como uma prótese destes alunos, praticamente implantada em suas mãos, e incorporada a quase todas as suas práticas culturais, ao ponto de identificarmos seus aparelhos celulares “como parte dos seus corpos”, ou quem sabe, como um transporte de suas mentes. Essa interação entre natureza e cultura, como descreve Loveluck (2018), acaba forjando o que aqui nomeio, com base em Sales (2010, 2014), de Juventudes Ciborgue do Ensino Médio.
Na verdade, ao problematizar a ciborguização das juventudes, fica difícil dizer onde acaba o corpo e começa a mente, ou como problematiza Tomaz Tadeu (2009, p, 10) “onde termina o humano e onde começa a máquina?”. Quando falamos de ciberespaço, estas questões podem levantar ainda mais curiosidades: o que é “transportado” para as redes sociais, para os jogos virtuais, para os ambientes virtuais? Seria a mente, o pensamento desse aluno? Estaria este aluno presente na “realidade física” ou na “realidade virtual”?
Witmer e Singer (1998, p. 225, tradução nossa) respondem a essas polêmicas questões da seguinte maneira: a presença pode ser entendida como “a experiência subjetiva de estar em um lugar ou ambiente, mesmo quando alguém está fisicamente situado em um outro lugar”1. Assim, essa desencarnação poderia muito bem ser um bom exemplo do sujeito pós-moderno descrito por Hall (2020), um sujeito descentrado que assume diversas identidades, muitas contraditórias entre si.
O mesmo autor destacou a centralidade da cultura, atribuindo-lhe singular importância para se entender o funcionamento social (Hall, 1997). Se pensarmos que a tecnologia é tão “antiga” quanto a cultura, não é difícil também identificarmos no nosso meio, e especificamente no meio das juventudes, a centralidade da tecnologia. Isso ocorre porque a ideia de cultura na qual estamos inseridos está tão atravessada pelo tecnológico, que a tecnologia tem se tornado (já se tornou) central em nossas vidas, ao ponto de, assim como declaram Haraway (2009) e Kunzru (2009), não conseguirmos mais determinar as fronteiras entre o humano e as máquinas devido à “relação tão íntima” que existe entre os sujeitos e a tecnologia (Kunzru, 2009, p. 22).
Quase tudo funciona conectado à internet: serviços em órgãos públicos, supermercados, tramitações financeiras, compras, práticas cotidianas, de lazer, de trabalho. Grande parte das atividades da maioria dos jovens estão atreladas à tecnologia e ao ciberespaço. As interrelações entre sociedade e mídia estão tão amalgamadas, que não é mais possível imaginar uma sociedade sem interações virtuais e tecnológicas.
Ponto este explorado ao máximo pelas grandes empresas de serviços on line e redes sociais, que cada vez mais investem substancialmente na coleta de dados que circulam nesse meio. Essa acumulação de dados, definida por Zuboff (2018) como capitalismo de vigilância, tem como finalidade “prever e modificar o comportamento humano como meio de produzir receitas e controle de mercado” (Zuboff, 2018, p. 18). Nesse sentido, cada vez que um jovem ou qualquer pessoa utiliza uma plataforma (busca online, música, rede sociais, fotos, videochamadas, transações financeiras, curtidas, vídeos, visualização de páginas) ele deixa rastros digitais: os dados, pelos quais “é possível construir perfis individuais detalhados” (Zuboff, 2018, p. 30).
Independente do tipo de busca ou acesso que os jovens realizam ou dos sentidos que eles atribuem às buscas, os dados estão sendo acumulados. Essa indiferença formal, no momento da coleta, tem importante papel na missão de “extrair sinais de subjetividades individuais” (Zuboff, 2018, p. 30), não importando o que busquem, desde que continuem consumindo e assim gerando dados (Zuboff, 2018).
Dados estes que, após minucioso tratamento, produzem ações, ou melhor, governanças, sobre os comportamentos de seus usuários como: antecipação de comportamentos, deferimento/indeferimento de crédito, sugestões de compras online personalizadas, visitas a páginas online direcionadas, entre outros. Essa condução de comportamentos por meio dos tratamentos de dados é identificado por Rouvroy e Berns (2018) como Governamentalidade Algorítmica. Conceito este que, de acordo com os autores, se trata de uma racionalidade que “repousa sobre a coleta, a agregação e análise automatizada de dados em quantidade massiva, de modo a modelizar, antecipar e afetar, por antecipação os comportamentos possíveis” (Rouvroy & Berns, 2018, p. 116).
Na maioria das vezes, quando pensamos em cruzamento de dados, nos reportamos a órgãos de controle externo e fiscalização, que, por meio do tratamento de dados, efetuam auditorias para confirmar ilegalidades, ou a órgãos de segurança pública, que utilizam os dados para identificar pessoas suspeitas em atos ilícitos. Pouco paramos para refletir sobre o impacto causado pela mineração dos dados deixados pelos usuários das redes virtuais, ou no produto resultante desses dados a grandes empresas digitais. Considerando que a maioria (quase todos) dos alunos do ensino médio estão mergulhados na internet por meio de seu celular, podemos inferir que estes jovens estão constantemente atualizando as bases de dados e já participando de interações personalizadas em suas buscas on line.
Nesse sentido, chega a ser assustador pensar o modo como as Big datas conseguem cruzar dados ao ponto de individualizar modos de consumo e, como observam Rouvroy e Berns (2018), conduzir sujeitos a esses consumos, como se esses produtos fossem o que eles precisassem. Por outro lado, não é difícil imaginar esse cenário uma vez que “grande parte da cultura digital está voltada para a cultura do consumo” (Kirchof & De Bem, 2008, p. 115).
METODOLOGIA
Para gerar os dados aqui apresentados, foi realizado um questionário semiestruturado aos alunos do 1º ano do ensino médio de uma escola pública e uma conversa por meio de Grupo de Discussão2. O Grupo de Discussão é um método de entrevista qualitativa, no qual um grupo pequeno de pessoas, em um local específico, é convidado a falar sobre um tema proposto pelo moderador, que, na maioria das vezes, é o pesquisador. Este, de posse de um guia de perguntas, lança questionamentos aos entrevistados, intervindo o mínimo possível nas respostas. As discussões duram, em média, entre uma hora e uma hora e meia. Geralmente são registradas por meio de gravador, câmeras ou outros equipamentos com essas funções.
Nas palavras de Fabra e Domènech (2001, pp. 33-34, citados em Santos, 2009, p. 94), o Grupo de Discussão pode ser assim explicado:
O grupo de discussão é constituído por um conjunto reduzido de pessoas, reunidas com o propósito de interactuar numa conversa sobre temas objecto de investigação, durante um período de tempo que oscila entre uma hora e hora e meia. É precisamente essa interacção que distingue o grupo de discussão e o que proporciona o seu interesse e a sua força. A discussão, efectivamente, não tem como objectivo a busca de consenso entre os participantes; o que permite é recolher um grande leque de opiniões e pontos de vista que podem ser tratados extensivamente.
Por meio dos Grupos de Discussão é possível ter acesso ao modo como os sujeitos se relacionam no dia a dia, como vivem, o que pensam sobre determinado tema, o que sentem, suas motivações, suas crenças, suas expectativas, seus discursos cotidianos, como agem em determinada situação, como são percebidas suas experiências.
Considerando que a pesquisa foi desenvolvida em sete turmas do 1º ano, das quais quatro eu não era o professor, meu primeiro passo foi entrar em contato com os professores das turmas que eu não ministrava aula para que eu pudesse utilizar o tempo desses docentes para me apresentar aos alunos, apresentar a pesquisa e em seguida e aplicar os questionários. Nas turmas nas quais eu era professor, utilizei meu tempo de aula para os trabalhos de apresentação e aplicação do questionário.
Nos dias combinados estive presente nas salas de aulas para iniciar a aplicação do questionário por meio do Google Forms. Dos 245 discentes convidados a participar, 168 alunos responderam ao questionário. A redução do número de participantes se deu principalmente pela não autorização dos responsáveis e pela ausência dos alunos no dia da aplicação do questionário. Além disso, alguns alunos optaram por não participar (os alunos que não quisessem participar poderiam informar sua decisão durante o momento da própria pesquisa).
Todas as aplicações dos questionários ocorreram na sala de aula dos alunos e foram realizadas por mim, durante as aulas dos discentes. Para a realização da pesquisa, eu disponibilizei, por meio do grupo de WhatsApp da turma, o link do questionário (elaborado na plataforma Google Forms). Também disponibilizei a todas as turmas que participaram internet roteada por meio do meu celular, assim todos os alunos poderiam ter acesso ao link por meio de seus celulares. Aos alunos que solicitaram, eram fornecidas cópias impressas do questionário. É válido mencionar, que mesmo com a disponibilidade de internet e posse de celular, alguns alunos não conseguiam acessar ao formulário devido à incompatibilidade do sistema. A esses alunos, também eram disponibilizadas versões impressas dos questionários.
Para selecionar qual turma participaria dos Grupos de Discussão, consultei publicamente as turmas para saber quais alunos teriam interesse em participar dos Grupos. Desse modo, a turma que atingisse no mínimo 8 participantes seria convidada a participar. Apenas uma turma da manhã e uma turma da tarde responderam a esse critério, sendo estes grupos formados por jovens que voluntariamente se disponibilizaram a fazer parte do grupo, após consulta pública, tendo sido desse modo possível formar dois Grupos de Discussão. Para este artigo foram considerados os dados gerados em apenas um dos Grupos de Discussão.
Assim, no dia determinado para a conversa, no próprio horário da aula, convidei os alunos a se dirigirem para o auditório da escola. Como não era professor da turma, previamente conversei com o professor que estaria na sala para liberar os alunos para a pesquisa.
O auditório disponibilizava um ambiente muito atrativo para conversa: local amplo, distante das salas de aula, com ar-condicionado e cadeiras móveis. Ao chegar lá, os alunos se depararam com um ambiente agradável, limpo e com as cadeiras arrumadas em forma de círculo. Lá, ao sentar junto com eles no círculo, expliquei a dinâmica do grupo, na qual se tratava basicamente de uma conversa sobre suas práticas de rotina e sobre seu envolvimento com o uso do celular. Expliquei e pedi autorização para gravar a conversa por meio de aplicativo de celular. Eles concordaram sem nenhuma dificuldade.
De posse de um “roteiro guia” formulado com base nas respostas do questionário anteriormente aplicado no 1º movimento da pesquisa, eu lançava perguntas aos alunos que ficavam à vontade para responder. Participaram do Grupo de discussão 10 alunos, sendo 7 meninas e 3 meninos, entre 14 e 16 anos. O tempo total de realização do Grupo de Discussão foi 1h30min. Logo em seguida à realização do grupo, todas as falas foram transcritas para análise.
DISCUSSÃO DOS DADOS
Em minha pesquisa, foi possível verificar quão potente é essa relação entre o jovem aluno do Ensino Médio e o celular, bem como este artefato acompanha os jovens em muitas de suas práticas, sendo possível identificá-lo como um instrumento que já foi incorporado à condição juvenil desses estudantes. Após aplicar o questionário a 168 jovens do 1º ano do ensino médio, pude constatar até o presente momento que: entre os 168 participantes, apenas 1 não utiliza o aparelho celular; “utilizar o celular” é a atividade mais realizada pelos alunos quando não estão na escola (148 alunos - 88,1%), sendo essa prática, incontestavelmente também presente no espaço escolar, e; “ouvir música” (142 alunos - 84,5%), “visitar e interagir em redes sociais” (136 - 81%), “interagir por meio do WhatsApp” (134 - 79,8%) e “assistir YouTube” (118 - 70,2%) foram as práticas culturais mais apontadas como realizadas pelos jovens por meio do celular.
Outras práticas realizadas pela maioria dos alunos também foram identificadas como: “assistir séries” - 112 alunos, 66,7%; “tirar fotos” - 103 alunos, 61,3%; “jogar” - 95 alunos, 56,5%. A atividade “falar com alguém por ligação” apareceu em 9º lugar, apontada por 72 alunos (42,9%), ou seja, quase a metade dos alunos não utilizam o celular para realizar a prática que “originou sua criação”, mas para satisfazer o consumo voltado a sua cultura juvenil.
Os dados acima apresentados podem ser mais bem acompanhados na figura 1:
Esse “outros”3 modos de utilizar o celular, que para os jovens não se configuram como “outros”, mas sim como a maneira convencional de uso, se devem ao avanço tecnológico, que acaba disponibilizando na palma da mão das juventudes deste contexto histórico acessos que antes só eram possíveis (de forma precarizada) às gerações anteriores por meio do computador de mesa, fixado em “ambientes próprios” para o seu uso, sendo este desligado após cumprir sua missão.
Mas, afinal, o que pode possibilitar a fusão entre os jovens do Ensino Médio e seus celulares, ou que tipo de sujeitos estão sendo fabricados por meio desta união? Apesar de várias respostas serem possíveis a esses questionamentos, após a análise do questionário e das falas do Grupo de Discussão, foi possível categorizar na tabela 1 abaixo, pelo menos três tipos de sujeitos que estão sendo forjados: “Jovens Multiletrados”, “Jovens que se relacionam de múltiplas formas” e “Jovens envolvidos em práticas de consumo”. Óbvio que essas categorizações não são conclusivas e não pretendem representar a totalidade das juventudes que utilizam celular, mas, apesar de provisórias, são úteis para entender certas práticas voltadas às culturas dos jovens, bem como determinados tipos de alunos.
JOVENS MULTILETRADOS
Ao verificarmos que a maioria dos jovens que responderam ao questionário transitam por meio de músicas, redes sociais, WhatsApp, Youtube, séries, games, percebemos que estes sujeitos estão amplamente envolvidos com múltiplas formas de uso da linguagem (visual, sonora, espacial, comportamental, cultural). Nesse sentido, os jovens que hoje frequentam nossas salas de aula estão sendo formados, enquanto sujeitos letrados, em um contexto de múltiplos letramentos, ou, conforme os pesquisadores identificados como “Grupo Nova Londres” (New London Group, 1996), estão sendo formados em um contexto de “Multiletramentos”. Ou seja, em contextos em que diferentes recursos semióticos são acionados para ler, significar, compreender e participar de práticas sociais contemporâneas que demandam esses tipos de linguagens (acesso a textos, transações financeiras, mensagens instantâneas/por meio digitais, plataformas, aplicativos, entre tantas outras).
Nas falas dos alunos, abaixo, foi notória a onipresença dos celulares em muitas de suas práticas sociais:
Aluno 01: Tudo que eu faço, as minhas pesquisas, os meus estudos, é pelo celular.
Aluna 02 : A gente usa o celular pra fazer tudo, professor.
Por isso, como defende o New London Group (1996), é necessário que a escola revise sua estrutura curricular para incluir os novos letramentos presentes na sociedade contemporânea, assumindo assim a responsabilidade de garantir que todos os alunos se beneficiem da aprendizagem e desenvolvam habilidades para atuar nos três grandes campos de ação da comunicação: trabalho, cidadania e vida comunitária. Sendo imprescindível a essa instituição de ensino estabelecer conexões significativas com a realidade ao seu redor e com as culturas (das quais a cultura juvenil está incluída), para cumprir sua missão de formar cidadãos capazes de praticar seus deveres e desfrutar de seus direitos, de maneira consciente e efetiva.
Não podemos esquecer que as plataformas virtuais e o celular foram amplamente utilizados pelas escolas e visitadas pelos alunos durante o período da Pandemia do Covid-19, para fins educativos. Mesmo que o acesso à internet ainda se realize de forma assimétrica no Brasil, a maioria dos jovens informou que o acesso, por meio de seus celulares, a plataforma online Google Meet, bem como as vídeos aulas do Youtube, possibilitaram a continuidade dos seus estudos, estando ainda presente no meio escolar o uso de algumas dessas práticas com objetivos escolarizados, mesmo após a pandemia, como ressaltam as seguintes falas:
Aluna 03: até hoje faço algumas revisões da escola, assisto vídeo aula, usando o celular. A gente tem usado bastante nas aulas da escola, a gente tem o grupo de whatsapp da turma e por ele passa os assuntos, exercícios, trabalhos, pergunta coisas para os professores.
Aluna 08: a gente usou muito, professor, o Google Meet, trabalhos com Google Forms. A gente assistia aula por lá e postava lá os exercícios.
Durante a pandemia, muitos alunos tiveram que se adaptar ao ensino remoto para continuar tendo aulas. Nesse contexto, o Google Classroom e Google Meet se mostraram ferramentas eficientes, permitindo que os jovens participassem de aulas virtuais síncronas e assíncronas, bem como se comunicassem em tempo real com seus professores, mesmo à distância. Com o Google Classroom, os alunos tinham acesso a aulas remotas, documentos, chats, além de outros recursos digitais (possíveis apenas no ambiente virtual). Algo interessante que os alunos compartilharam foi a possibilidade de gravação de aula pelo Google Meet, recurso que permitia aos alunos retorno às explicações dos professores para “tirar dúvidas”.
Merece atenção também as falas, abaixo destacadas, que apontam que as aulas nesses tipos de ambiente não representaram algo alheio às suas práticas, por já ser comum a eles o trânsito e interações por ambientes virtuais como redes sociais, Youtube, Instagram, entre outras plataformas de relacionamentos ou que façam uso de upload e download de documentos, sendo esta mudança entendida mais como uma adaptação à “sala de aula virtual” do que algo novo que precisava ser aprendido “do zero”, para ser posto em funcionamento.
Aluna 03: (...) não senti muita dificuldade em usar o google classroom, (...) só precisou acostumar com algumas coisas.(...) tinha os problemas com internet (...).
Aluno 06: Outros cursos que eu tinha feito já eram parecidos com a sala virtual, então foi de boa. A dificuldade maior era a internet.
O mesmo já não poderia ser dito em relação à maioria dos professores, que, durante o ano de 2020-2021, tiveram que passar pelas mais diversas formações e aprendizagens para dar conta das salas virtuais e dos letramentos que estas salas demandam saber (além de que grande parte dos docentes se viu obrigado a instalar internet em suas casas ou buscar por melhores fornecedores desse serviço, para lecionar de forma remota).
Para finalizar essa seção, destaco outro interessante achado desta pesquisa: a presença da língua inglesa nas práticas relatadas pelos jovens, por meio de seus celulares. Costa (2006) demonstra que os “jovens do século XXI” que hoje ocupam nossas escolas, estão inseridos em ambientes e em práticas de linguagens e de consumo bem diferentes das gerações anteriores, como: séries, filmes, uso de aplicativos, jogos eletrônicos, mangás, revistas, leituras on-line, músicas, redes sociais, vídeos, clipes, mensagens instantâneas, consultas em sites entre tantos outros espaços virtuais.
Como boa parte dessas mídias são produzidas em inglês e por estarem endereçados especificamente aos jovens, elas acabam promovendo o encontro do aluno com a língua inglesa, fornecendo além do(s) Letramento(s) propriamente dito, intensa produção de discursos e representações, que associam os jovens ao uso do inglês, ao uso da tecnologia, a certos tipos de consumos, comportamentos, além de continuamente ensinar “lições de como são ou deveriam ser os sujeitos” (Ignácio, 2015, p. 177). Nesse sentido, apresento as seguintes falas:
Aluna 02: Eu comecei a seguir (nas redes sociais) pessoas que falavam inglês, ator, artista, pessoas famosas e por causa disso me veio interesse pelo inglês. Um dia, vagando pelo Instagram, eu vi um livro que era em inglês, aí eu me perguntei: será que rola, porque quando eu chegava na escola vinha verbo to be, como traduzir. Eu queria saber a tradução das coisas, aí já escutava as músicas em inglês, e eu queria saber a tradução delas, vendo essas músicas, eu fui meio que querendo entrar nessa carreira de línguas. Os livros, as músicas, os filmes com as legendas foi ajudando mais.
Aluno 06: Tudo que eu faço no celular, nas redes sociais, é tudo em inglês, meu celular é em inglês. As músicas que eu escuto, eu entendo bem, filme, eu vejo a legenda e o filme, jogos eu jogo tudo em inglês, quando eu tô jogando aí eu vou me comunicar com alguém (de outro país), aí eu falo em inglês com a pessoa.
Aluno 09: Eu sou uma pessoa que gosta de pesquisar sobre as coisas, sei lá, jogos, eu pesquiso, aí apareciam resultados em inglês e tinham haver com o que eu tava buscando, aí eu ia lá e via se eu conseguia aprender alguma coisa. Conforme eu ia pesquisando na internet, no Youtube, em sites, ia ficando natural (...), aí eu comecei a consumir mais o inglês: escutar músicas, ver séries, filmes, jogos.
JOVENS QUE SE RELACIONAM DE MÚLTIPLAS FORMAS
Com a presença onipresente dos smartphones, as opções de comunicação se expandiram enormemente. Os jovens de hoje têm acesso a uma ampla variedade de aplicativos de mensagens instantâneas, redes sociais e outras plataformas que tornam a comunicação mais rápida, fácil e acessível. Com o uso dessas tecnologias, os jovens agora podem se comunicar com amigos e familiares em qualquer lugar do mundo, em tempo real, por meio de vídeo, voz ou texto.
O celular que os jovens carregam nunca está desligado, nunca descansa e por pouco não toma as 24h que dispõem esses discentes, mas consegue algo próximo a isso, uma vez que não são poucos jovens que atravessam a madrugada em claro utilizando seus dispositivos, sendo este, o sono, talvez o único momento que este aparelho ainda não conseguiu capturar completamente (Crary, 2014). Excetuado este momento, os celulares sempre os acompanham estão presentes em muitas de suas atividades: ouvir música, visitar redes sociais, sites, trocar mensagens instantâneas, namorar, jogar, assistir séries, tirar/passar fotos, assistir e gravar vídeos, estudar assuntos escolares, ou apenas olhar aleatoriamente seu dispositivo, que sempre está a disposição para satisfazer seus interesses de acesso, sejam eles práticas individualizadas, como:
Aluna 04: Assisto muitos filmes e ouço música. (...) vejo Instagram.
Aluna 05: Dá de ler muita coisa, como mangás e livros. (...) Instagram (...) TIK TOK.
Aluna 08: Ouvir música é viciante, e é mais fácil ouvir por causa do celular. Passo muito tempo ouvindo música, (...) Instagram, Youtube, gosto muito de assistir clipes.
Aluno 09: Vejo muitos vídeos de consertar coisas.
Aluna 10 : É tipo o momento que a gente tá passando, assim o que a gente tá a fim naquela hora. Às vezes eu to com vontade de assistir série em vez de ficar no Instagram, mas tem coisas que dá de fazer uma logo depois a outra como vê o Instagram rapidinho, aí já liga a série. No celular dá de fazer essas coisas. Dá de usar toda hora.
Ou colaborativas, do tipo:
Aluno 01: Eu gosto de entrar nas redes sociais, tipo Instagram para conhecer, descobrir coisas sobre pessoas, estauquear, postar foto.
Aluna 03: (...) mandar mensagem para os amigos.
Aluna 08: (...) também vejo muito as redes sociais tipo WhatsApp, (...) jogos e de jogar.
Aluno 09: Eu gosto muito de jogar RPG, assistir séries, geralmente faço isso a noite e sigo pela madrugada (...).
Aluna 10: (...) tem as coisas da igreja, tipo eventos (...).
Nesse sentido, percebo que a constante frequência do uso redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas nas práticas realizadas pelos jovens possibilita a conexão em tempo real com outras pessoas, independentemente da distância geográfica (inclusive em outros países). Em certa medida, a ausência das redes sociais ou do meio virtual por um determinado período, pressupõe algum tipo de anormalidade, como se houvesse algum tipo de pressão pela constante presença online, como relatado pelos alunos:
Aluna 05: Professor, tem vezes que eu fico sem postar nada por um tempo, sem mandar nada, aí o pessoal já pergunta o que que aconteceu comigo.
Aluno 09: (...) quando eu não entro pra jogar, me mandam mensagem no privado, ou depois perguntam o que tava acontecendo.
JOVENS ENVOLVIDOS EM PRÁTICAS DE CONSUMO
Várias formas de uso do celular relatadas pelos alunos demonstraram o consumo como uma prática frequente, quase que “associada” a presença desse dispositivo. Primeiramente, pela “necessidade” de se ter e manter em pleno funcionamento o celular. Em segundo lugar, por meio da “exigência” de dados móveis, já que a maioria das atividades realizadas no ambiente virtual demandam conexão com a internet, como assistir vídeos, utilizar serviços de streaming de músicas, filmes, além do constante acesso a conteúdos das redes sociais. Foi possível detectar também o consumo de produtos e serviços oferecidos pelos aplicativos, como jogos, assinaturas de serviços, compras online, bem como compras para aumentar a memória de armazenamento do celular.
Destaco que a relação de consumo que os alunos possuem com as redes sociais esteve presente em diversos aspectos, tanto para apresentar sua vida, como para “consumir a vida dos outros”. Ao interagirem com as redes sociais ou com os canais de influencers, os alunos acabam consumindo não apenas seus conteúdos, mas padrões de sujeitos que, muitas vezes, se pretendem modelos a serem seguidos, em muitos casos, indivíduos bem sucedidos, bonitos, felizes, financeiramente realizados, que venceram na vida.
Os excertos abaixo demonstram alguns casos nos quais os alunos acabam sendo expostos a ensinamentos e informações que extrapolam os conteúdos dos canais consumidos:
Aluna 02: Bom, normalmente, são pessoas bem-sucedidas (que apresentam o canal).
Aluna 04: São pessoas bem arrumadas, parecem ser mais estudadas e terem mais condição financeira.
Aluna 07: Às vezes o/a Youtuber começa simples, mas depois que vai ganhando seguidor, vai tendo patrocínio, já fica com um canal mais elaborado, com filmagem melhor, melhora a edição do vídeo. (...) A gente vê ele/ela com umas roupas de marca, muda até o cenário.
Aluna 08: Tem umas que falam como é em casa, as coisas que ganhou, que comprou, aí mostra como foi algum evento, tipo aniversário (...).
Aluno 09: Eu vejo uns vídeos de exercício de academia, que mostra como fazer os exercícios de musculação (...), como ele (o influencer que ensina) é ‘grandão’, eu experimento no meu treino.
Aluna 10: Geralmente são influenciadores com muitos seguidores.
Esse entendimento de educação como algo que ocorre além dos espaços escolares, estudado no campo dos Estudos Culturais por meio do conceito “Pedagogias Culturais” (Andrade & Costa, 2015), nos ajuda a perceber que os jovens não possuem apenas a sala de aula como ambiente de aprendizagem e de formação de suas identidades e subjetividades (Ignácio, 2015); pelo contrário, muitos desses jovens também são educados nos demais espaços sociais que frequentam, assim como por meio dos mais diversos artefatos culturais que têm acesso.
É interessante destacar que mais do que satisfazer algum desejo ou interesse, ao consumir os conteúdos, comportamentos e produtos de determinados sujeitos ou canais, o aluno escolhe “a quais significados quer ser associado e (re)identifica sua identidade social” (Ignácio, 2015, p. 164).
Acrescento, ainda, que as redes sociais podem ser um meio para os anunciantes atingirem os jovens de forma mais direta e eficaz, utilizando, para esse fim, técnicas de publicidade personalizada e segmentação de público. Além disso, como já mencionado, as interações online realizadas pelos jovens podem ser utilizadas para coletar dados e pôr em operação a governamentalidade algorítmica, com base nas informações deixadas por eles, em meio às suas buscas e passagens nas redes sociais ou em demais sites. Nesse sentido, destaco interessantes excertos que parecem demonstrar a governamentalidade algorítmica em funcionamento, em meio aos frequentes acessos realizados pelos jovens:
Aluna 02: Leio muitos livros e mangás, sempre vem muitas opções pra mim.
Aluna 08: (...) vai aparecendo músicas, vídeos, ai eu só escolho as que eu gosto.
Aluno 09: Eu abro o jogo e aí depois já aparece outras sugestões para mim jogar.
Além disso, os jovens também registraram suas percepções em relação aos cuidados e segurança de seus dados e rastros digitais deixados em sistemas de buscas, nas redes sociais ou em demais consumos de plataformas virtuais:
Aluno 06: tem vezes que eu coloco meu email, ou tipo faço uma inscrição (...) hoje em dia, pra tudo tem que cadastrar email, telefone (...), depois que eu colocava email em um site, não demorava muito, já começava chegar emails de propaganda pra mim, do site que eu coloquei e até de outros lugares.
Aluna 07: Fica chegando mensagem pra mim no meu celular, no email ou instantânea do celular mesmo, dizendo que eu fiz uma compra de tanto, aí é pra eu responder à mensagem ou ligar para o número que eles dão, pra eu confirmar a compra, (...) tem vezes que na mensagem diz que é de banco, dizendo pra eu resgatar algum dinheiro ou milha (...), mas a gente sabe que é golpe, né?.
Aluna 10: Ligam de outro estado me oferecendo planos de celular, até cartão de crédito.
Nessa esteira, parece que as buscas digitais, que esses jovens realizaram poderiam estar indo além de seus próprios interesses, sofrendo interferências das empresas digitais e dos algoritmos, que, com base na análise e cruzamento dos dados já deixados anteriormente por eles, poderiam estar os direcionando a bolhas de perfil de consumo ou a fraudes. Por isso, é importante que os estudantes tenham consciência do seu consumo e de que, embora as práticas online estendam suas possibilidades de interação, elas podem conduzir esses sujeitos a propostas orientadas para o lucro de determinados sujeitos, empresas ou marcas.
Em contrapartida, pude perceber que o mesmo dispositivo, o celular, que facilita práticas de consumo, também viabiliza “estratégias de economia”, na qual os jovens de forma “consciente” e “independente”, utilizam seus aparelhos para evitar certos gastos ou economizar. Vejamos nas falas dos alunos:
Aluna 03: (...) assisto no Youtube vídeos aulas dos assuntos da escola, também dos assuntos que vão cair no ENEM4 (...).
Aluna 04: (...) a maioria dos exercícios que eu faço na academia, eu peguei na internet. Tem até aplicativo que monta os planos, as séries, mostra as posições do exercício (...).
Aluna 05: agora dá de usar o Pix, para fazer os pagamentos das coisas. A gente não precisa esperar fila, nem sair, faz tudo na hora.
Aluna 07: minhas buscas são muito sobre vídeo de comida, de maquiagem.
Aluna 08: (...) com os motoristas de aplicativo ficou mais fácil, só chamar eles pelo aplicativo, sai até mais barato.
Aluno 09: (...) eu entro também em vídeos que ensinam consertar coisas (...).
Nesse sentido, podemos inferir que os alunos não são sujeitos passivos no uso das tecnologias, mas de forma criativa, as utilizam para resolver diversificadas situações do seu cotidiano.
Considerações finais
Por meio das análises dos dados foi possível constatar que os celulares acompanham os jovens continuamente, fazendo parte de suas vidas e das atividades relacionadas à sua condição juvenil sendo, em certa medida, determinante na ocorrência de várias dessas práticas. Não que algumas delas não existissem antes da popularização de seu uso, mas, sim, que este aparelho parece estar alterando a forma como algumas dessas práticas são realizadas e, consequentemente, acabam forjando novos tipos de sujeitos, bem como tendem a modificar a forma do jovem se relacionar socialmente.
Springer (1991) já nos alertava desde o início dos anos 90 sobre a influência da tecnologia na constituição do sujeito, de acordo com a autora,
Quando os humanos interagem com a tecnologia do computador em textos da cultura popular, o processo consiste em mais do que apenas adicionar próteses robóticas externas aos seus corpos. Envolve transformar o eu em algo inteiramente novo, combinando tecnologia com identidade humana. (Springer, 1991, p. 306, tradução nossa)5
Ainda que a autora problematize o uso do computador, tecnologia em destaque na época, poderíamos facilmente emprestar sua compreensão apenas substituindo o termo “computador” por “celular”. Assim, mais do que pensar que a integração entre corpo, consciência e máquina aponta para a superação das imperfeições e limitações da natureza humana, como profissionais da educação somos levados a refletir que essa integração pode produzir identidades juvenis diversas, juventudes ciborgues, que ao se fundirem com seu celular encontram as mais diversas formas de interação, subjetivação e constituição de identidades (Ó & Costa, 2007), tendo esses jovens, as novas tecnologias como algo central em sua cultura juvenil.
Os jovens participantes desta pesquisa deixaram evidente que seus celulares lhes possibilitam ter acesso a práticas impensáveis há poucos anos, como participar, em tempo real, de aulas ou aprendizagens/formações institucionalizadas, independentemente da posição geográfica; chamar motoristas de aplicativo; pedir comida; encontrar endereços (GPS); fazer pagamento por meio de Pix; realizar inscrições, matrículas, cadastros; alimentar sistemas; trocar e compartilhar fotos, mensagens instantâneas; gravar/assistir vídeos; ver filmes, séries; ouvir músicas; iniciar leituras por meio de toque em um ícone/imagem em tela; interpretar textos considerando a combinação de som, formas, cor, imagens, escrita; ler textos de forma não linear; continuar leitura arrastando o dedo em tela; traduzir para outros idiomas textos, imagens e áudios (inclusive simultaneamente); se comunicar com uma ou diversas pessoas ao mesmo tempo, em espaços geográficos diferentes, entre tantas outras práticas sociais.
Por isso, como professores devemos estar atentos à centralidade que as tecnologias assumem entre os jovens, uma vez que elas deslocam a escola da posição de lugar único de aprendizagem e proporcionam novas formas de acessar a conhecimentos (e a novos desafios) (Pintassilgo et al., 2023). Precisamos estar dispostos a ver nossos alunos pela “perspectiva do aluno”, aquela que não deprecia as mídias, as tecnologias, as danças do TIKTOK e as redes sociais. Precisamos ter ciência que os algoritmos conseguem personalizar a disposição de consumo de acordo com o interesse de cada jovem, a escola não; uma vez que ela se configura de um jeito que deve “conseguir” dar conta de um coletivo, de uma turma, de uma série.
Precisamos parar de interpretar as mídias e as tecnologias como uma daquelas “coisas do contemporâneo que atrapalham a educação” (Ó & Costa, 2007, p. 113) e vê-los como potentes instrumentos ao exercício da docência. Talvez fosse mais produtivo pensarmos as juventudes, tal como aponta Grossberg (1988, p. 126, tradução nossa)6, “como um campo de práticas, experiências, identidades e discursos diversos e contraditórios”. Quem sabe assim estaríamos mais culturalmente sensíveis a escutar os alunos para saber o que esses jovens fazem e como interagem com suas “próteses tecnológicas”.
Derrick de Kerckhove (1997) já discutia em seu livro “A Pele da Cultura: Uma investigação sobre a nova realidade electrónica”, a ideia de que estamos nos tornando gradualmente ciborgues, evidenciando como cada avanço tecnológico vem expandindo nossas capacidades físicas. Em seu texto, o autor já argumentava que, à medida que adotamos o uso de tecnologias, (citando como exemplo os sistemas de vídeos caseiros), estamos buscando melhorar, cada vez mais, nossas “extensões corporais”, para evitar sentimentos de limitações (humanas). Para Kerckhove (1997, p. 32), isso “sugere que somos perfeitamente capazes de integrar dispositivos na nossa identidade” e “certamente no nosso corpo”.
Assim como Kerckhove previu, essa integração entre dispositivo e identidade torna-se especialmente evidente entre os jovens e seus celulares, na qual esses dispositivos não apenas oferecem múltiplas formas de comunicação, interação e busca de informação, mas também têm se tornado uma extensão virtual do self, estando estes aparelhos presentes em grande parte das práticas culturais desenvolvidas pelos jovens, assim como nos ambientes por eles ocupados.