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Sisyphus - Journal of Education

versão impressa ISSN 2182-8474versão On-line ISSN 2182-9640

Sisyphus vol.12 no.1 Lisboa jun. 2024  Epub 01-Maio-2024

https://doi.org/10.25749/sis.32609 

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Identidade Profissional e Prática Docente no Ensino da Língua Gestual Portuguesa em Portugal

Professional Identity and Teaching Practice on Teaching Portuguese Sign Language in Portugal

Identidad Profesional y Práctica Docente en la Enseñanza de la Lengua de Signos Portuguesa en Portugal

Veronica Lima da Fonseca Almeidaa 
http://orcid.org/0000-0002-5331-7736

aDepartamento de Ensino Superior de Licenciatura em Letras - Língua Espanhola, Campus Ceilândia, Instituto Federal de Brasília, Brasil


RESUMO

Partindo de uma perspetiva antropológica, pretende-se refletir sobre a educação de surdos e a formação da identidade profissional dos professores surdos e as suas práticas no ensino da Língua Gestual Portuguesa (LGP), em Portugal. Adotou-se a metodologia qualitativa exploratória, através de estudos de caso, em instituições do sistema de ensino público das cidades de Coimbra, Porto e Lisboa, realizando-se entrevistas e observação. Analisou-se práticas discursivas pela ótica da narrativa de posicionamentos que informaram o processo socio-histórico da identidade profissional e da prática docente no ensino de LGP, na atualidade. Os resultados mostram a formação da identidade profissional constituída por uma identidade relacional que articula as trajetórias de vida e o desenvolvimento da formação do professor de LGP, e apresenta práticas pedagógicas com diferentes formas de pedagogias no ensino de LGP com implicações políticas e institucionais do ensino formal da LGP.

PALAVRAS-CHAVE: ENSINO; LÍNGUA GESTUAL PORTUGUESA; FORMAÇÃO; TRABALHO; IDENTIDADE PROFISSIONAL.

ABSTRACT

From an anthropological perspective, it is intended to reflect on the education of the deaf and the formation of the professional identity of deaf teachers and their practices on the teaching of Portuguese Sign Language (LGP) in Portugal. The exploratory qualitative methodology was adopted through case studies, in institutions of the public education system of the cities of Coimbra, Porto and Lisbon, carrying out interviews and observation. Discursive practices were analysed from the perspective of the narrative of positions that informed the socio-historical process of professional identity and teaching practice on the teaching of LGP today. The results show the formation of the professional identity constituted by a relational identity that articulates the life trajectories and the development of the LGP training teacher and presents pedagogical practices with different forms of pedagogies on the teaching of LGP with political and institutional implications for formal LGP teaching.

KEY WORDS: TEACHING; PORTUGUESE SIGN LANGUAGE; FORMATION; WORK; PROFESSIONAL IDENTITY.

RESUMEN

Desde una perspectiva antropológica, el objetivo es reflexionar sobre la educación de las personas sordas y la formación de la identidad profesional de los profesores de sordos y sus prácticas en la enseñanza de la Lengua de Signos Portuguesa (LGP) en Portugal. La metodología cualitativa exploratoria fue adoptada a través de estudios de caso, en instituciones del sistema de educación pública de las ciudades de Coimbra, Porto y Lisboa, realizando entrevistas y observación. Las prácticas discursivas fueron analizadas desde la perspectiva de la narrativa de las posiciones que informaron el proceso socio-histórico de la identidad profesional y la práctica docente en la enseñanza de la LGP en la actualidad. Los resultados muestran la formación de la identidad profesional constituida por una identidad relacional que articula las trayectorias de vida y el desarrollo de la formación docente de LGP, y presenta prácticas pedagógicas con diferentes formas de pedagogías en la enseñanza de LGP con implicaciones políticas e institucionales para la enseñanza formal LGP.

PALABRAS CLAVE: ENSEÑANZA; LENGUA DE SIGNOS PORTUGUESA; FORMACIÓN; TRABAJAR; IDENTIDAD PROFESIONAL.

INTRODUÇÃO

Este artigo baseia-se na investigação realizada no âmbito de um doutoramento que tinha como foco a educação de surdos2. Trata-se de um estudo em que se procurou perceber os sentidos na formação da identidade profissional dos professores surdos e nas práticas no ensino da LGP. Adotam-se as perspetivas antropológica e a narrativa interacional com intuito de apresentar a visão dos professores surdos.

A pessoa surda é compreendida na abordagem socioantropológica como uma pessoa bilíngue, que parte de uma minoria linguística e cultural (Skliar, 1998). No entanto, as pessoas surdas não são mais vistas como fechadas, pois elas já participam de diversas práticas de interações sociais entre surdos e ouvintes, evidenciando que tanto a cultura como as pessoas surdas (Padden, 2004) são constituídas nas ações de interações sociais no mundo moderno (Giddens, 2002).

Interessou-nos olhar para o processo de interação social que os docentes surdos vivenciam na formação da sua identidade profissional e nas suas práticas pedagógicas. Tais aspetos são revelados através da composição das trajetórias de vida e do desenvolvimento da formação do professor de LGP ligado à história da formação e da história do trabalho para a compreensão da formação da identidade profissional na educação de surdos.

A identidade é compreendida como processo de construção social do sujeito historicamente situado em suas relações de interação social. Assume-se a visão antropológica da identidade como relacional constituída por interações que geram múltiplas experiências no interior das trocas sociais, sempre em relação ao outro (Barth, 1976). A questão da identidade, para Geertz (1989), está ligada à cultura, a qual consiste em estruturas de significados socialmente estabelecidas nas relações de interação.

Atualmente, a maioria das pessoas surdas que participam da comunidade surda compreendem-se como possuidores de uma cultura e de uma identidade surda (Gil, 2011), e participam de espaços públicos (escola, trabalho, esporte, culturais, políticos, redes sociais, dentre outros), os quais contribuem para a formação da sua identidade.

A educação de surdos é aqui compreendida como um campo de práticas específicas, estruturada por relações objetivas com posições de agentes e instituições que nele estão situados, determinando as formas de interações sociais (Bourdieu, 2007).

A educação de surdos em Portugal está segue o contexto das políticas internacionais, que indicam diretrizes para políticas linguísticas, inclusivas e bilíngues, sendo também influenciada pelos movimentos associativos mundiais (Almeida & Cruz-Santos, 2022).

A perspetiva da inclusão é adotada com vista a propor uma escola para todos, independente das situações de aprendizagens dos alunos (Decreto Lei n.0 16/2018). Sendo que o paradigma da educação bilíngue se foi consolidando na educação de surdos em Portugal, assumindo-se um modelo de ensino bilíngue que exigiu o aperfeiçoamento de práticas para a sua aplicação efetiva (Carvalho, 2012).

O Decreto-Lei n.0 3/2008 organizou a educação de pessoas surdas com a proposta da educação inclusiva e bilíngue estruturando as escolas de referência para educação de surdos, mas o desenvolvimento das práticas na educação para surdos já se vinha concretizando com a implementação de políticas instituídas após o reconhecimento da LGP, em 1997.

No ensino, “o Despacho n.0 7520/98 de 6 de maio, reconhece, pela primeira vez, e implicitamente, a surdez como uma questão sociolinguística-cultural” (Correia & Coelho, 2014, p. 109), ao implementar a criação das Unidades de Apoio à Educação de Crianças e Jovens Surdos/as nos estabelecimentos públicos do ensino básico e secundário.

Posteriormente, o Decreto-lei n.0 03/2008, organiza os espaços educativos e estrutura o ensino bilíngue (Carvalho & Mineiro, 2020). Organiza-se o ensino inclusivo e bilíngue, da pré-escola ao secundário, com a introdução de áreas curriculares específicas com a Língua Gestual Portuguesa, como primeira língua (L1), e Língua Portuguesa para Surdos, como segunda língua (L2).

A legislação define, assim, que a educação de crianças e jovens surdos, seja realizada em ambientes bilíngues com a LGP como primeira língua e o português escrito como segunda língua, com um atendimento aos alunos surdos que favoreça o desenvolvimento linguístico, adequação ao currículo e a inclusão escolar.

A didática no ensino de LGP deve priorizar ações para que o estudante adquira a língua gestual e o conhecimento de si e do mundo, considerando a imersão linguística como fundamental (ME, 2008). O professor de LGP deve considerar as condições de aprendizagem, na aquisição e desenvolvimento da LGP, relativas às situações da heterogeneidade linguística, à avaliação adequada ao aluno surdo, ao uso de recursos utilizados, aos ambientes visuais, dentre outros.

O trabalho em sala de aula deve promover o desenvolvimento de competências em LGP e a educação bilíngue explorando as experiências de aprendizagem e as competências gerais, transversais e específicas (ME, 2008). A didática da língua (Santos, 2019) indica que o ensino de língua deve contemplar as práticas sociais de linguagem na organização das situações de ensino. Logo, o ensino e a aprendizagem precisam estar ancorados no ensino da LGP como primeira língua abrangendo as situações reais da vida dos alunos explícitas nos contextos da comunidade surda e da sociedade.

Por seu turno, o Decreto-Lei n.0 54/2018, de 6 de julho, não apresenta novas normativas, mas valoriza o atendimento aos alunos surdos em espaços de referência e reforça a questão da formação especializada para os docentes na área da educação especial, surdez e LGP (Almeida & Cruz-Santos, 2022). Assim, a formação de profissionais em LGP organizou-se por processos formativos orientados por políticas, iniciadas com o Despacho n.0 7520/98, que considerou a existência de técnicos especializados em LGP. Sendo que a formação inicial no ensino superior foi formalizada com a Portaria n.0 595/2005 que institui a Licenciatura em LGP (Freitas, 2019). Seguidamente, temos o Decreto-lei n.0 16/2018 que cria o grupo de recrutamento da Língua Gestual Portuguesa (LGP), definindo no artigo 50 a habilitação profissional para a Língua Gestual Portuguesa com a Titularidade ao grau de Mestre em ensino de LGP pelo Processo NCE/18/1800027 e Despacho n.0 5452/2020, e ainda indica aos profissionais em exercício qual a formação a realizar para fazer a profissionalização em serviço.

O ensino de LGP é visto como um fenômeno recente no ensino formal (Vaz, 2013), sendo a língua gestual compreendida como um sistema linguístico viso-espacial da comunidade surda portuguesa (Correia, 2020). Neste contexto, a introdução da LGP como disciplina curricular e o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua requer elevados níveis de competência em LGP por parte dos docentes (Decreto-lei n.0 16/2018, de 11 de março).

Atualmente, o ensino de LGP é desenvolvido por práticas pedagógicas que se efetivam por professores surdos e ouvintes, seja na formação de profissionais ou no ensino em escolas (Freitas, 2019).

As práticas pedagógicas vão para além da prática didática, uma vez que integram as circunstâncias da formação, os espaços-tempos escolares, a organização do trabalho docente, as parcerias e as expectativas dos docentes (Franco, 2016). Para Maurice Tardif (2002), as práticas pedagógicas de professores constituem saberes profissionais que envolvem conhecimentos especializados e formalizados. Estes saberes profissionais do magistério, resultam da aprendizagem do trabalho que passa por uma escolarização para fornecer aos futuros professores conhecimentos teóricos e técnicos que os preparam para o trabalho.

Assim, o desenvolvimento profissional docente é constituído por processos formativos que permitem ligar as dimensões pessoais e profissionais (Nóvoa, 2009) contribuindo com saberes profissionais para o exercício da sua prática de ensino.

No ensino de línguas, o linguista Almeida Filho (1997) afirma que os professores nas práticas de ensino se apoiam em várias competências que vão sendo construídas e desenvolvidas ao longo da formação e atuação profissional. As competências implícitas, teóricas, aplicadas, linguístico-comunicativas e profissionais estão inter-relacionadas na história do desenvolvimento profissional e intelectual do professor de línguas.

No contexto da educação de surdos, temos um ensino de língua gestual como uma nova demanda para consolidação das práticas pedagógicas atuais, o que requer a estruturação de formação de professores com saberes e competências para atuar no ensino desta língua.

A formação e desenvolvimento profissional dos docentes de LGP foi pontuado por Freitas (2019) ao enfatizar que o processo de formação de formadores em LGP foi iniciado pela Associação de Surdos do Porto e a Associação Portuguesa de Surdos e, depois, no ensino superior. Antes da licenciatura em LGP da Escola Superior da Educação de Coimbra (ESEC), a maioria dos formadores era surda e a formação no ensino superior permitiu a abertura à comunidade ouvinte. Com a formação no ensino superior, os docentes de LGP devem dominar saberes e competências específicas e considerar os níveis de atuação (Freitas, 2019). A formação no ensino superior em LGP atua como um dos requisitos da formação profissional, constituindo uma identidade com representação docente específica.

Então, para o professor ensinar a LGP é necessária a formação profissional no ensino da LGP e a consolidação das práticas educativas instituídas nos espaços educacionais. Desta forma, as mudanças decorrentes da formação inicial da licenciatura em LGP, agora para surdos e ouvintes, implicaram uma reafirmação da identidade do professor surdo (Freitas, 2019).

O professor surdo atua como um mediador linguístico, um modelo de adulto que coloca a língua em funcionamento, propiciando uma plena dialogia (Martins, 2000). Este docente é percebido como um profissional que compreenderá melhor as necessidades dos estudantes surdos. O programa curricular de LGP (ME, 2007) evidencia que a disciplina terá de ser lecionada por modelos linguístico-culturais, adultos surdos falantes nativos de LGP e possuidores de uma identidade intrínseca às pessoas surdas com formação adequada às exigências do ensino.

No ensino para crianças e jovens surdos, o docente surdo é visto como uma representação notória, ao serem compreendidos como aquele que expressa a experiência próxima. A sua identidade surda é importante por revelar-se como aquele profissional que “(…) usaria naturalmente e sem esforço para definir aquilo que seus semelhantes veem, sentem, pensam, imaginam etc. e que ele próprio entenderia facilmente, se outros o utilizassem da mesma maneira” (Geertz, 1997, p. 87).

Os professores surdos muitas vezes são vistos com a representação da experiência próxima devido à associação que fazem das formas semelhantes relativas às práticas sociais da comunidade surda. O professor surdo ao assumir as suas funções influencia o espaço educativo ao transpor acções que correspondam às práticas pedagógicas de ensino.

A presença do professor surdo é marcante e a sua identidade é vista como importante para o desenvolvimento das práticas pedagógicas no ensino de LGP, mas não basta ter apenas a identidade de uma pessoa surda para ensinar.

Questiona-se, então, quais os sentidos que constituem a formação da identidade profissional dos professores surdos e das suas práticas no ensino de LGP.

Assim, propomos verificar no ensino de LGP a formação da identidade profissional ligada às múltiplas experiências dos professores surdos relativas ao desenvolvimento profissional e identificar a constituição das práticas pedagógicas no ensino em escolas e na formação de profissionais em LGP. Para cumprir os objetivos propostos, utilizamos a narrativa interativa para compreendermos os sentidos da identidade profissional e das práticas docentes, a partir das narrativas de posicionamentos dos professores de LGP, uma vez que as experiências vividas constituem formas de narrativas e posicionamentos dos sujeitos que mostram a sua relação de interação social no mundo.

ASPETOS METODOLÓGICOS

Ao propormos a metodologia qualitativa (Ludcke, 1986) através de uma investigação3 de natureza exploratória e por meio do estudo de caso (Yin, 2001), buscou-se a compreensão dos sentidos que constituem a formação da identidade profissional dos professores surdos e as suas práticas no ensino de LGP.

A investigação priorizou entender a questão da identidade profissional, desenvolvendo-se a pesquisa em instituições de ensino público de referência na educação de surdos, em duas escolas e em uma instituição de formação de profissionais de LGP, em contextos distintos no país: Contexto I (Coimbra), Contexto II (Porto) e no Contexto III (Lisboa). Também definiu como critério, a participação de professores surdos no ensino de LGP, um total de nove (09) docentes, homens e mulheres, com idade entre os 33 e 48 anos, que atuavam nos contextos investigados. Destes total de nove docentes, dois (02) professores (Contexto I e II) participaram apenas na entrevista e uma (01) professora (Contexto III) participou apenas na observação.

Na pesquisa de campo, realizada entre 2017 e 2019, desenvolveu-se a recolha de dados com entrevistas semiestruturadas e observação de turmas, decorrendo em simultâneo. A recolha decorreu com a participação de sete (07) professores nas entrevistas realizadas de forma presencial em LGP com o trabalho de profissionais intérpretes, gravadas em áudio e transcritas (com verificação dos participantes) e uma (01) com envio por correio eletrónico.

Já na observação e registros das aulas de LGP, tivemos a participação de sete (07) professores com um total de 52 horas, sendo: no Contexto I na formação de profissionais de LGP dois (02) professores nas três (03) disciplinas: LGP I, LGP IV e Didática do ensino da LGP I; no Contexto II no ensino de LGP em escola de referência para alunos surdos com quatro (04) professores no 10 ciclo (10 e 40 anos), no 2º ciclo (50 e 60 anos), e no 3º ciclo (7 0, 80 e 90 anos) da educação básica; e no Contexto III em uma escola com alunos surdos com um (01) professor no 10 ciclo nas aulas de LGP e de LGP+LP (10, 20, 30 e 40 anos) da educação básica.

Para fins analíticos das informações empíricas, analisamos as práticas discursivas por meio da análise da narrativa de posicionamentos em pequenas histórias (Bamberg, 2007), que são eventos ocorridos e contados na prática interativa (Bamberg & Georgakopoulou, 2008). A narrativa é uma prática de interação em que os sujeitos informam nos eventos os posicionamentos por marcadores linguísticos ao descreverem as situações de interacção (Bamberg, 2016). Esta narrativa interativa baseia-se na teoria do posicionamento introduzida por Davies e Harré (1990) e adaptada à situação de pequenas histórias por Bamberg (1997) pela compreensão de que as práticas discursivas dos sujeitos são socialmente interativas. A análise fundamenta-se em De Fina (2012) e Bamberg (1997) ao compreenderem a narrativa interativa como o ato de fazer uma construção de si mesmo, pelo uso do dispositivo linguístico que descreve o contexto social por meio da ferramenta analítica nos três Níveis de Posicionamentos (NP)4: no PN1 trata-se do Eu-outro; no PN2 o Eu - público; e no PN3 evidencia o Eu-self. Os posicionamentos são vistos como construções sócio-discursivas em que os falantes assumem, rejeitam, refletem, reivindicam ou negociam na prática interativa. Os posicionamentos são constituídos pelos sentidos manifestos da ação no tempo e no espaço através de dispositivos discursivos (personagens, tempo-espaço e acção), e articula os contextos micro e macro revelando o processo socio-histórico dos sujeitos (Bamberg, 1997).

Organizou-se os dados transcritos dos relatos dos sujeitos referenciados como personagens situados em relação ao tempo-espaço e às suas acções. Também identificou-se as atividades discursivas particulares dos participantes, localizando as visões dos sujeitos, da sociedade e da cultura que podem evidenciar o contexto macro e micro em que narram (De Fina, 2012).

Cada narrativa foi compreendida como parte de uma grande narrativa composta por muitos relatos, sendo todos interligados pelos contextos social e cultural envolvendo as identidades individuais e coletivas (Bamberg, 1997). Posteriormente, dividimos e agrupámos as narrativas, localizando os posicionamentos que mostram aspetos semelhantes e diferentes, dentro do cenário discursivo dos participantes em relação à formação da identidade profissional e as práticas docentes.

Inicialmente analisámos os resultados das entrevistas narradas pelos sujeitos sobre a construção da identidade profissional e, seguidamente, as narrativas constituídas pela observação e registos das aulas revelando as acções docentes.

Obtivemos discursos linguísticos que geraram as seguintes unidades de sentidos: a formação da identidade profissional e as práticas docentes no ensino de LGP.

RESULTADOS

A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL

A figura 1 apresenta os resultados sobre a formação da identidade profissional através das trajetórias de vida e do desenvolvimento da formação do professor de LGP.

Fonte: Dados elaborados pela investigadora em 2021.

Figura 1: Processo socio-histórico da identidade profissional 

A formação da identidade profissional é compreendida a partir do processo sócio-histórico dos sujeitos surdos, pelas suas trajetórias de vida e pelo desenvolvimento da formação enquanto professor de LGP.

As trajetórias de vidas resultam da narração de um conjunto de eventos decorridos na história de vida das pessoas, contadas pelos próprios, que se desvelam através do relato de acontecimentos, espaços e tempos ao longo das suas vivências. As trajetórias de vida revelam, assim, parte da história pessoal por meio da formação inicial do sujeito surdo apresentando informações sobre a origem da surdez, a origem familiar, a aquisição da LGP e a convivência em associações de surdos. Já o desenvolvimento da formação do professor de LGP apresenta dados da história da formação e da história do trabalho constituídos no desenvolvimento da profissão de professores de LGP.

As trajetórias de vida5 narram as histórias pessoais da formação inicial do sujeito surdo no reconhecer-se como uma pessoa surda. Para a maioria dos professores surdos, a surdez é de natureza adquirida, seus familiares são ouvintes, a aquisição da LGP consolidou-se de modo informal na escola, e o convívio com a comunidade surda se efetivou na escola e principalmente na fase da adolescência. Uma minoria nasceu com surdez, tem familiares pais + irmãos surdos, a sua aquisição da LGP ocorreu de forma natural no contexto familiar, e a convivência em associações se efetivou precocemente, desde bebé e na convivência com surdos de todas as idades.

O desenvolvimento da formação profissional do professor de LGP decorreu por processos formativos para a profissão envolvendo a história da formação e a história do trabalho, ambas se constituíram pela implementação de políticas para melhorar a qualidade da educação de surdos.

A história da formação dos professores decorreu por processos envolvendo a formação de formador em LGP, a formação inicial no ensino da Licenciatura em LGP e, posteriormente, temos a profissionalização em serviço e a titularidade ao grau de mestre.

As narrativas mostram que a princípio a oferta do primeiro Curso de Formador de LGP realizado por associações de surdos teve o intuito de criar condições para pensar as práticas pedagógicas no ensino. As associações tiveram um papel significativo ao estimularem a participação das pessoas surdas no curso, visto que nesta época muitos surdos não pensavam que a língua poderia ser ensinada no contexto formal de ensino.

Tal formação permitiu aos surdos assumirem o trabalho como Formador de LGP atendendo a demanda do Despacho n.0 7520/98 com a criação das unidades de apoio educacional às crianças e jovens surdos. A formação profissional em LGP foi se constituindo impulsionada por processos formativos para o desenvolvimento de uma profissão.

A oferta no ensino superior da formação inicial do curso da licenciatura em LGP oficializa-se com a Portaria n.0 595/2005. Na altura, a maioria dos participantes também tinha o curso de Formador em LGP e já trabalhavam nas escolas com crianças surdas, sendo o estágio supervisionado algo que já fazia parte da prática. Também discutiam as suas experiências buscando estruturar as suas práticas pedagógicas atuando como técnicos especializados no ensino de LGP.

Outro fator importante foi a criação da AFOMOS6 , promomota de maiores discussões sobre as questões de ensino e necessidades de mudança no estatuto da profissão, com organização de movimentos na luta pela docência de LGP.

A mudança no estatuto ocorreu pelo Decreto-Lei n.0 16/2018 de 7 de março, com a criação do grupo de recrutamento 360, concretizando-se a carreira docente de LGP e a habilitação profissional. Os professores em exercício participaram da formação da Profissionalização em Serviço, e, atualmente, temos a oferta de curso para obtenção da Titularidade de Grau de Mestre em Ensino da Língua Gestual Portuguesa pelo Processo NCE/18/1800027. Ressalta-se que muitos professores já haviam participado ou estavam participando de outras formações em cursos de especialização, mestrado e outras na área ou próximas.

Na história do trabalho percebe-se as formas de acesso ao trabalho e os papéis assumidos pelos professores. O primeiro papel assumido foi o de Formador Autónomo de LGP/Monitor de LGP7 ao atuarem como recursos humanos na educação de crianças surdas com a criação do Despacho n.0 7520/98, e na formação em instituições de ensino para a sensibilização e uso da LGP com adultos ouvintes. Com a criação do Decreto-Lei n.0 03/2008, normatiza-se a contratação de técnicos especializados para o ensino de LGP8. Na atualidade, estes profissionais são enquadrados pelo Decreto-Lei n.0 16/2018 de 7 de março, que cria o grupo 3609, regulamentando a sua atuação como docentes de LGP.

As políticas instituídas na implementação da formação e do trabalho promoveram o desenvolvimento da formação e do trabalho dos professores de LGP, trazendo mudanças para a educação de surdos ao organizar espaços educativos para o ensino em escolas e para a formação de profissionais em LGP. Tais alterações proporcionaram o desenvolvimento de práticas pedagógicas nos espaços de ensino de LGP, o currículo de LGP, os saberes envolvendo os processos de formação e as experiências profissionais adquiridas ao longo do trabalho.

O desenvolvimento na educação de surdos em Portugal, em escolas ou na formação de profissionais em LGP, contribuiu para a formação da identidade profissional do docente de LGP. A formação da identidade profissional do docente de LGP tem, assim, se constituído por um processo socio-histórico abrangendo as trajetórias de vida e o desenvolvimento da formação do professor de LGP, ao envolver as histórias pessoais, os processos formativos para a profissão e os processos de trabalho.

O desenvolvimento do ensino de LGP é constituído por formas distintas que contribuem para a formação da identidade profissional e as práticas docentes.

AS PRÁTICAS DOCENTES NO ENSINO DE LGP

Os contextos I, II, e III revelam o desenvolvimento das pedagogias organizadas como as práticas no ensino da LGP, em escolas e na formação de profissionais de LGP, sendo que ambas resultam das observações e registos das aulas.

Quadro 1: As pedagogias no ensino de LGP: Contextos I, II e III 

Fonte: Dados elaborados pela investigadora em 2021.

Na Quadro 1 identificamos as pedagogias que revelam as práticas pedagógicas dos três contextos investigados.

O Contexto I refere-se às práticas pedagógicas no ensino de LGP na formação da licenciatura em LGP, nas aulas das disciplinas de LGP I, LGP IV e Didática do Ensino da LGP I. Neste, observou-se três disciplinas quando o curso ainda apresentava a estrutura inicial de licenciatura em LGP, não havendo ainda a oferta para a titularidade ao grau de mestre.

As práticas docentes são identificadas como a Pedagogia para formação de profissionais bilíngues. Desta forma, há o ensino de LGP como L2, pois a maioria dos estudantes são ouvintes e a LGP atua como meio de instrução e comunicação nas aulas teóricas e práticas no desenvolver das competências linguísticas, culturais, políticas e pedagógicas. A abordagem do ensino orienta ao desenvolvimento de competências voltada para a formação de profissionais bilíngues, intérpretes e docentes em LGP.

No Contexto II trata-se do ensino em uma escola, no 1.0 ciclo e 2.0 ciclo, com a Pedagogia para formação do sujeito surdo bilíngue nas formas das experiências surdas.

A Pedagogia se efetiva com o ensino da LGP para crianças e jovens surdos, como L1, com um ensino para surdos ligado às vivências, perceções e ações do ser surdo na sua relação com o mundo. A LGP é a língua de instrução e comunicação no contexto do ensino, sendo valorizada no desenvolvimento da aprendizagem dos estudantes e na interação entre si, afirmando a identidade surda. As aulas propiciam aprendizagens que se centram na prática de uso da LGP e na valorização das experiências visuais e comportamentais das pessoas surdas, explorando experiências e vivências como práticas culturais e identitárias. A abordagem de ensino visa a formação de sujeitos bilíngues, consolidadas nas experiências relativas à cultura, à língua e à identidade surda.

No Contexto III trata-se da Pedagogia para formação do sujeito surdo bilíngue nas formas simbólicas. O ensino de LGP, no 1.0 ciclo, para crianças surdas em que a LGP desenvolve-se como a língua de instrução e comunicação, como L1, utiliza práticas de uso da LGP ligadas à vida das pessoas surdas em suas diversas formas de interação social com o mundo. Nas aulas são desenvolvidas propostas de aprendizagem com práticas de uso da LGP, explorando os conhecimentos sociais presentes no nosso modo de vida. Além disso, revela uma abordagem de ensino que se foca na formação do sujeito surdo como bilíngue nas formas simbólicas na vida social.

Valoriza-se a LGP por meio de práticas de ensino ao buscar promover a aquisição da língua, mas também o despertar das crianças para o mundo da linguagem presente nas diversas formas de interação social. Situa-se a importância do acesso ao português escrito para se perceber os seus sentidos e significados, necessários nas relações de interação no cotidiano da vida social e moderna. Trata-se de uma pedagogia voltada para a formação do sujeito surdo bilíngue constituída por processos de aprendizagens apoiadas nas formas simbólicas, as quais estão presentes nas múltiplas experiências das pessoas surdas em sua interação com o mundo.

DISCUSSÕES

EDUCAÇÃO DE SURDOS E IDENTIDADE PROFISSIONAL

A educação de surdos na atualidade está alinhada ao modo de vida moderno com orientações internacionais. As pessoas surdas e ouvintes participam de espaços públicos de diversas formas e tecem interações em um contexto de globalização (Giddens, 2002).

Ao olharmos para a educação de surdos em Portugal, vemos uma organização baseada em orientações internacionais (Rodrigues, 2004) e implicada por definições políticas que estruturam o ensino da LGP em escolas e para profissão.

No ensino da LGP, temos a presença de professores surdos no espaço escolar como uma representação associada à identidade surda.

A formação da identidade profissional dos professores surdos, mostra-se constituída por múltiplos fatores ligados às experiências dos sujeitos surdos na atualidade, tratando-se de uma identidade relacional ao revelar-se por um processo socio-histórico resultante das relações sociais vivenciadas pelos sujeitos.

As múltiplas experiências dos sujeitos surdos mostram-se por meio das suas trajetórias de vida e do desenvolvimento da formação do professor de LGP pelo processo socio-histórico da formação do sujeito surdo com o mundo e como docente de LGP.

A identidade dos sujeitos surdos resulta de um processo ligado a relações de interações sociais constituídas pelas múltiplas experiências com os familiares, nas escolas, na comunidade surda, no processo de formação e de trabalho, dentre outras, consolidando a identidade como relacional (Barth, 1976). Estas experiências constituem processos formativos que abrangem as relações de interações desde a infância até à formação e atuação profissional (Silveira et al., 2017). A identidade surda está ligada à cultura da pessoa surda como um processo em que a pessoa se reconhece como surda.

A relação da identidade surda e o seu reconhecimento dentro do grupo social é vista na narrativa da professora identificada como História Surda. O Entrevistador apresenta as questões: Quem é você? Como você se define?

Professora: História Surda

(...) Eu vivo na comunidade surda, portanto identifico-me com a comunidade surda, sim, claro. Será que me reconhece a 100% como surda ou se tem algumas…

“Ah, ela é surda parcial…” “Sim, é surda, mas…” Aí o “mas”!!! E eu não sou a única a sentir isto. (...).

A narrativa enfatiza a identidade como relacional através de um Eu que se relaciona com o outro nós, constituindo a identidade relativa a uma autoidentificação, atribuída pelo próprio sujeito. Mas, também, a autoatribuição interligada ao reconhecimento dos outros pela sua integração em práticas culturais das suas relações sociais de convívio na comunidade surda.

Esta forma de reconhecimento da pessoa surda associada à sua participação na comunidade surda é relevante, não só para a autoidentificação de um Eu da identidade constituída por ter práticas que enfatizam as suas vivências no grupo, mas também para o reconhecimento do ser como parte do grupo, ou seja, as relações de interação propiciam a confirmação e o reconhecimento da identidade surda ou a negação da atribuição pelo grupo.

A formação da identidade do sujeito surdo, identidade surda, vai se constituindo a partir das relações de interação do sujeito surdo ligada aos aspectos das trajetórias de vida, seguindo com as demais formas de relações sociais. Os dados indicam que a formação inicial do sujeito surdo contribui para que estes possam se reconhecer como pessoa com identidade surda e não deficiente (Gil, 2011), demonstrando o pertencer ao grupo.

A professora, História Surda, declara que os aspectos relativos à característica da surdez parecem indicar uma aceitação da identidade surda como inquestionável no interior das relações na comunidade surda. Para Barth (1976), todo grupo social gera uma identidade e cria fronteiras. No caso da narrativa, observa-se a questão de a identidade ser abolida ou confirmada, conforme critérios, do ser surdo 100% ou parcial, que são aspetos que permitem ou não a aceitação satisfatória ao grupo. Tal situação mostra que há dentro do grupo social formas de estabelecer limites e critérios para informar o que pode ou não ser a identidade, indicando a existência de fronteiras, que não são fixas (Barth, 1976).

A identidade, aqui, é entendida como um produto da interação social resultado das relações constituídas ao longo da formação inicial que possibilitou ao sujeito surdo se perceber como surdo, e se identificar como membro de um grupo ao partilhar valores culturais e identificar-se como integrante igual, diferenciando-se daqueles que o julgam díspar. A questão do reconhecimento pelo outro é importante na constituição das relações no interior do grupo, pois determina que há um posicionamento de aceitação do outro como igual ou parcial.

A formação da identidade profissional resulta das múltiplas experiências constituídas pelas trajetórias de vida e pelo desenvolvimento da formação do professor de LGP, através dos diversos fatores que interagem entre si (Garcia, Hypóliti & Vieira, 2005), abrangendo as dinâmicas do ambiente externo e a construção profissional (Mockler, 2011), consolidando as experiências profissionais com dimensão pessoal e profissional (Nóvoa, 2009).

A identidade como relacional permite resultar em uma forma de representação de si que pode envolver vários aspetos. Seguindo a lógica da questão anterior apresentada pelo entrevistador, outro professor narra sobre si.

Professor: Nome Gestual

(...) Eu, nasci surdo, sou filho de pais surdos e tenho uma irmã surda. (…)

Desde os 15 anos, até a data de hoje, que integro o movimento associativo. Sou membro da Comissão para o Reconhecimento da LGP, aliás, fui membro no ano de 1995, fui membro.

Fui também representante do Centro dos Jovens Surdos.

(...) Eu sou licenciado em LGP.

Estou a frequentar o mestrado.

(....) Eu sou professor de LGP.

O professor, Nome Gestual, declara dados relativos às trajetórias de vida, à formação inicial do sujeito surdo envolvendo a sua surdez e origem familiar, seguindo com a afirmação da sua formação na área de LGP e no movimento político, à sua formação acadêmica, e afirma ser professor de LGP. A narrativa mostra o processo de formação da identidade surda em ligação com as formas de interação social desde o nascimento, a origem familiar, dentre outras formas atreladas ao contexto das relações e ações com a comunidade surda, e as suas formas de atuação na vida acadêmica e profissional em continuidade.

Este posicionamento confirma a identidade relacional (Barth, 1976), demonstrando a formação da identidade como um produto da interação social que se inicia com a formação do sujeito surdo. A formação da identidade surda desenvolve-se pela atuação do sujeito social inserido no processo como representação política, na formação profissional e no trabalho, ao participar de um mundo atual constituído por práticas culturais modernas.

Todo esse processo de formação da identidade revela o professor, Nome Gestual, como um sujeito surdo com uma identidade surda assumida por si e reconhecida pelos demais, mas, também, mostra uma identidade profissional constituída e desenvolvida ao longo da formação académica e da atuação profissional na área de LGP.

Enfatiza-se, ainda, a formação da identidade profissional na constituição de competências: implícita, teórica, aplicada, linguístico-comunicativa e a profissional, na área de atuação (Almeida Filho, 1997). A competência profissional é indicada no papel de profissional, político e educador e manifesta-se pelo seu aprimoramento em cursos de pós-graduação e em outras formas de formação continuada que revelam as suas acções acadêmicas visando o seu crescimento ao longo da trajetória profissional. Todo esse processo de socialização legitima a identidade profissional e a profissão docente (Morgado, 2019).

A competência profissional na área tornou-se importante no desenvolvimento da formação do professor de LGP. Segundo Freitas (2019), a licenciatura propiciou formação para que docentes dominassem saberes e competências específicas nos seus níveis de atuação, pois é importante o desenvolvimento linguístico do professor de LGP para demonstrar domínio dos saberes e competências na área.

A identidade profissional está associada à competência profissional e o seu papel profissional pela forma de representação (Goffman, 1985) assumida pelos sujeitos nos espaços interativos, seja como educador, político, académico, etc. Assim, a identidade, ao ligar-se à cultura (Geertz, 1989), constrói-se e se reconstrói por práticas sociais reconhecidas pelos sujeitos, ou seja, nas relações de interações constituídas no nosso modo de vida social.

O contexto de formação da identidade decorre das relações de interações sociais, o que requer a constituição de competências ligadas ao mundo moderno como uma nova condição da cultura e das pessoas surdas no contexto atual (Padden, 2004).

As novas situações que estruturam a educação de surdos sugerem que os profissionais apresentem os requisitos que atendam às exigências ligadas à formação e ao trabalho, ligadas à língua, pois é necessário garantir aos surdos uma educação de qualidade e de oportunidade na vida social (Gesser, 2012).

A formação da identidade profissional do professor de LGP é constituída como relacional não só pelas múltiplas experiências constituídas nas trajetórias de vida, mas também pelo desenvolvimento da formação do professor de LGP. Esta identidade do professor se consolida por competências que constituem uma conjuntura de saberes, práticas e comprometimento com a função da docência, ligando a dimensão pessoal e profissional (Nóvoa, 2009).

AS PRÁTICAS NO ENSINO DE LGP: PLANEAMENTO, SABERES E COMPETÊNCIAS

As práticas de ensino de LGP para a formação de profissionais e para o ensino em escolas diferenciam-se.

A pedagogia no ensino de LGP configura-se como ato de ensinar com discurso (Alexander, 2005). No ensino de LGP, as pedagogias organizam-se em um ensino formal incorporando as perspetivas institucionais e pautadas nas políticas implementadas.

O ensino de LGP é constituído por estruturas e formas desenvolvidas institucionalmente por padrões (Rosen, 2020) que legitimam o ensino influenciado por um contexto internacional que indica a necessidade de implementar as práticas da educação inclusiva e bilíngue do contexto global (Gomes, 2010).

As práticas do contexto I focam a formação de profissionais ao visar desenvolver competências linguísticas, culturais, políticas e pedagógicas. Estas práticas tecem uma abordagem voltada para a formação de profissionais bilíngues com o intuito de desenvolver saberes e competências profissionais na área (Almeida Filho, 1997; Freitas, 2019).

No contexto II, as práticas pedagógicas focam o ensino para crianças surdas, apresentam o ensino de LGP, a língua gestual como L1, proporcionando uma aprendizagem que valoriza a língua, as experiências visuais e comportamentais das pessoas surdas no reconhecimento da identidade surda (ME, 2007). As experiências surdas são compreendidas como práticas culturais e identitárias das pessoas surdas e são exploradas em prol da aceitação do surdo como capaz de atuar no mundo. As experiências do docente são explicitadas visando a formação de sujeitos bilíngues, consolidadas nas práticas sociais relativas à cultura, à língua e à identidade surda.

Dados observados na aula do professor identificado por Associações evidenciam a prática de ensino planeado.

A composição da aula é organizada (...) com ações envolvendo atos de filmagens; pontuam-se as explicações e orientações do professor em torno do ato de fazer, rever e refazer um vídeo desenvolvido pelas estratégias de ensino com exposição de conteúdo, produção de filmagens e construção de cenários. É uma abordagem de ensino com foco nas práticas de uso da LGP valorizando a experiência visual e expressão facial e corporal, ao procurar constituir acções de interpretação e reflexão sobre as práticas para o adequado uso da LGP, recorrendo a recursos visuais como objetos pedagógicos utilizados nas filmagens, tais como vestuário, objetos dos cenários, equipamento de filmagem, sala de filmagem.

O professor é dinâmico e os alunos participam de forma interativa em pares, grupos e em turma na coletividade, e contribuem no processo de filmagem, que explora práticas de uso da LGP. A organização desta acção foi uma forma de rever e aplicar o que foi aprendido: com o uso da datilologia filmou-se práticas de palavras definidas pela professora com configuração de mão, que é um dos parâmetros que constitui a fonologia da língua (Silva, 2013). Temos aqui o uso de recursos visuais não só na exploração do conteúdo, mas na produção de conteúdo pelo próprio aluno, priorizando práticas de uso da LGP para que os alunos adquiram e desenvolvam a língua e o conhecimento de si e do mundo (ME, 2008). Assim, faz uso de recursos visuais como estratégia de ensino (Lacerda et al., 2013), abrangendo não só objetos pedagógicos, cenário, como o próprio uso do corpo e as experiências do docente como sujeito surdo.

Já no contexto III, o ensino de LGP se desenvolve como L1, com práticas e uso da LGP ligados à vida das pessoas surdas em sua interação social com o mundo, explorando os conhecimentos sociais presentes nas diversas formas no nosso modo de vida. Este ensino foca-se na formação do sujeito surdo bilíngue que acessa as diversas formas simbólicas na interação social com o mundo.

Na aula da professora de LGP identificada por Poesia, observamos que:

A composição da aula mostra uma relação de colaboração entre o professor e os alunos em momentos estruturados do uso da história, revelando a relação entre passado e presente com o uso da língua e as práticas sociais. As estratégias de ensino são demonstradas através da explicação de conteúdo, expressão escrita em LP, frases com uso de imagens e pesquisas ligadas às situações da história. A abordagem de ensino com foco em experiências de aprendizagem nas práticas de uso da LGP e sua relação com o mundo, tendo como uso os recursos visuais: imagens, LP escrita, objetos.

O professor explora o uso da LGP, as experiências bilíngues e as práticas de interações sociais ao promover a ampliação de conhecimentos expostos e discutidos por meio do uso de uma história sobre os meios de comunicação, do uso de pesquisas e de explicações para ampliar a compreensão dos alunos. Aqui, os recursos visuais são utilizados, mas prioriza-se o foco em acções que favorecem maior compreensão do uso da LGP e o desenvolvimento de competências em LGP no ensino bilíngue (ME, 2008), tendo a LGP como língua de instrução e comunicação no entendimento das situações reais da vida dos alunos e suas interações sociais.

Os três contextos mostram a organização de práticas de ensino que buscam desenvolver condições de aprendizagem para que os estudantes adquiram a língua e o conhecimento de si próprio e do mundo por meio de uma imersão linguística pela presença do adulto surdo (ME, 2008).

Os três contextos consolidam aspetos para pensar a educação de surdos como ensino inclusivo e bilíngue recente, assim como a docência em LGP, e articulam aspetos ligados à formação da identidade profissional e às práticas docentes, como: o uso da língua, a pedagogia visual, o uso do português escrito e as experiências das pessoas surdas.

A LGP era a língua de instrução e comunicação dos professores surdos. A questão da língua é relevante não só pelo seu reconhecimento pela política pública, mas pela legitimação da língua como língua de instrução e comunicação (Gesser, 2012) tanto no ensino voltado para competência linguística na formação de profissionais como no processo de aquisição e aprendizagem das crianças nas escolas.

A LGP foi organizada como disciplina com o principal propósito de pôr em prática os princípios que defendem a sua utilização para a promoção da igualdade de oportunidades no acesso à educação (ME, 2008). A língua gestual é vista como uma marca importante da identidade e das relações na comunidade surda e a língua portuguesa será uma segunda língua (ME, 2011).

O uso de recursos visuais nas aulas efetivou-se para explorar as experiências visuais por meio de recursos imagéticos visuais. Tal prática é definida por Campello (2008) como Pedagogia Visual, pois trata-se da experiência visual e a visualidade como aspetos que devem ser considerados no processo de ensino e aprendizagem de estudantes surdos; e, por Lacerda et al. (2013), como uma estratégia metodológica em que a pedagogia busca acompanhar os avanços tecnológicos e sociais considerando os recursos visuais. No entanto, Campello (2008) associa a Pedagogia Visual à Pedagogia Surda, mas Ladd e Gonçalves (2011) define-a como as práticas pedagógicas de educadores surdos como intuitivas e revolucionárias. A Pedagogia Surda é uma discussão com muitas produções no Brasil (Ladd & Gonçalves, 2011; Perlin, & Strobel, 2009; Vilhalva, 2004).

O uso do português escrito foi verificado por Almeida et al. (2020), que destacam a relação na LGP entre a L1 e a L2 nas práticas de ensino dos professores surdos, os quais são bilíngues10. A apropriação da L2 em alguns momentos das aulas é natural, dado que a escrita tem um papel transversal (Carvalho, 2014). Para Supalla (2018), a utilização da L2 no ensino da língua de sinais é uma forma de equivalência das duas línguas usadas na comunicação e expressão da cultura portuguesa. Logo o professor de língua de sinais é um poliglota ao compreender e utilizar diferentes símbolos de diversas maneiras. A escrita faz parte da formação inicial do sujeito surdo e do desenvolvimento na formação do professor de LGP. A escrita é uma variante simbólica (Supalla, 2018), que atua no conjunto dos procedimentos pedagógicos dos professores nas aulas de LGP (Almeida et al., 2020). A L2, ou seja o português escrito, está presente nas práticas pedagógicas de ensino de LGP, seja ao escrever no quadro ou no uso de recursos tecnológicos usados na exposição dos conteúdos, avaliações, atividades, materiais pedagógicos, assim como nos meios de comunicação institucional e pessoal.

A perspetiva socio-antropológica (Skliar, 1998) da surdez contribui para percebermos as múltiplas experiências da pessoa surda confirmada pela sua interação na comunidade surda e na sociedade. Esta interação influencia a formação da identidade como relacional (Barth, 1976) e profissional, contribuindo com elementos no desenvolvimento das práticas pedagógicas.

As múltiplas experiências dos professores surdos são elementos do desenvolvimento profissional com dimensão pessoais e profissionais que atuam na composição das competências profissionais (Almeida Filho, 1997), articulando as experiências de vidas das pessoas surdas, os conhecimentos linguísticos, e as práticas sociais e culturais (Gil, 2011).

Atualmente, o sujeito com identidade surda se relaciona na comunidade surda e com o mundo; e no campo educativo interage favorecendo o capital cultural com as competências profissionais.

Os conhecimentos envolvendo as experiências de vida das pessoas surdas são importantes no processo de ensino e aprendizagem, e permitem compreender as pessoas surdas em suas necessidades específicas, por revelar sob o olhar da experiência próxima em como o outro percebe, sente, pensa, imagina (Geertz, 1997), transpondo aspetos do que pode informar a identidade surda.

As práticas pedagógicas envolvem as múltiplas experiências dos sujeitos surdos nas formas simbólicas e apoiam-se em um sistema de práticas com um olhar maior para a natureza social, coletiva e participativa das pessoas surdas nas suas relações de interação com o mundo social (Duranti, 2000).

As experiências bilíngues no ensino, nas escolas, mostra a importância do adulto surdo e da LGP como língua de instrução e comunicação, as relações de interações entre o professor e os alunos, entre pares e grupos de alunos surdos. O trabalho em equipe entre os professores surdos revela acções de colaboração, mas entre os professores surdos e ouvintes de outras áreas existem entraves, pois muitos não sabem LGP.

Por fim, observa-se que no ensino de LGP as práticas pedagógicas (Franco, 2016) organizaram-se intencionalmente para atender à perspetiva da educação inclusiva e bilíngue, tendo a língua gestual no ensino, e a formação de profissionais em LGP como língua de instrução e comunicação, concretizado um desejo de muitos surdos.

A representação do docente surdo espelha a tradição e atua como construto de transmissão no interior das práticas modernas. Além disso, a sua crescente participação deve-se a processos formativos que visam o acesso ao trabalho, constituindo-se, ao longo do tempo, como caminhos para a formação da identidade profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No campo da educação de surdos, os sentidos que concorrem para a formação da identidade profissional dos professores surdos e das práticas no ensino de LGP são constituídos por ações instituídas nos contextos macro e micro. No contexto macro, temos as mudanças políticas que demandam diretrizes para um ensino inclusivo e bilíngue. No contexto micro, temos as práticas sociais que são constituídas nas relações dos agentes e seus posicionamentos nos espaços educativos.

Na educação de surdos em Portugal, o desenvolvimento do ensino da LGP é recente, assim como a oferta da formação de profissionais em LGP e o ensino em escolas.

A construção da identidade profissional dos docentes surdos resulta de um processo socio-histórico ligado às múltiplas experiências na formação destes como uma pessoa surda, como profissional em formação para docência e como docente de LGP.

Os professores de LGP são vistos como profissionais constituídos por competências e saberes abrangendo os aspetos sociais, linguísticos, culturais e metodológicos no espaço de ensino.

As práticas docentes indicam diferentes formas de pedagogias que são constituídas pelas múltiplas experiências envolvendo o processo socio-histórico da formação da identidade profissional e as abordagens institucionais adotadas no ensino da LGP.

O ensino de LGP não é um conjunto de práticas intuitivas, mas, sim, um ensino organizado, planeado e constituído por saberes e competências relacionados com a formação da identidade profissional e as experiências geradas na profissão no âmbito pessoal e profissional.

Os caminhos revelados pelos docentes surdos mostram que o desenvolvimento profissional na formação docente é importante para a constituição de práticas pedagógicas que constituam saberes e competências como forma de expressar conhecimento educacional no ensino de LGP.

AGRADECIMENTOS

Aos professores surdos, aos intérpretes e aos demais participantes deste estudo.

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1Instituto Federal de Brasília, Campus Ceilândia, QNN 26, área especial, CEP 72.220-260, Ceilândia, Distrito Federal, Brasil

2Tese intitulada: Educação de Surdos em Portugal: os sentidos na construção de identidades, na formação de professores e nas pedagogias no ensino de LGP. Universidade do Porto. https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/139980.

3Ressalta-se que o estudo ocorreu num momento de transição envolvendo as mudanças políticas em detrimento de questionamentos dos profissionais em exercício para alterar a carreira do docente de LGP.

4Níveis de posicionamentos apresentados por Bamberg (1997): PN1 mostra o Eu-outro (como as personagens são posicionadas em relação uma às outras dentro do evento); P1 indica o Eu-público (como as personagens utilizam o espaço de audiência para dar sentido ao revelar constância e mudança em eventos (presente, passado e futuro); e PN3 evidencia o Eu-self (como as personagens constituem um senso de quem são nas relações de navegação da agência) (Bamberg, 2015).

5 Nóvoa (1992) recorre à narrativa ao contar as histórias de vida de professores.

6A Associação de Formadores e Monitores Surdos, atualmente Associação de Profissionais de Lecionação de Língua Gestual (AFOMOS), que, com o apoio da Federação Nacional dos Professores (FENPROF), buscou mudança no Estatuto da Carreira Docente (https://blogdafomos.blogspot.com/).

7“Hoje, uma nova geração, constituída por jovens surdos profissionais, dá os primeiros passos numa carreira emergente. São monitores de LGP, dão cursos aqui e ali, criam “escolas” e, de recibo verde na mão ou contrato de provimento, passam de beneficiários a contribuintes” (Coelho et al., 2004, p. 155).

8“O ensino da LGP tem sido assegurado por técnicos especializados, utilizando as Escolas de Referência, para o seu recrutamento, e o mecanismo de contratação de escola com a publicação de avisos por cada uma delas, nos termos do Decreto-Lei n.0 132/2012, de 27 de junho. Este diploma, seguindo as recomendações do Relatório Final produzido pelo Grupo de Trabalho criado pelo Despacho n.0 2286/2017, de 16 de março, põe, assim, termo a uma situação que era premente corrigir, reconhecendo aos formadores de LGP a integração na carreira docente, mediante a criação, para o efeito, do respetivo grupo de recrutamento.” ( Decreto-Lei n.0 16/2018 de 7 de março).

9“Artigo 5.0 Habilitação profissional para a Língua Gestual Portuguesa - Constitui habilitação profissional para o grupo 360 a titularidade do grau de mestre em LGP, de acordo com o Decreto-Lei n.0 79/2014, de 14 de maio, na redação dada pelo presente decreto-lei (Decreto-Lei n.0 16/2018 de 7 de março).

10Segundo Padden (2004) as pessoas surdas usam duas línguas nas suas interações sociais, pois participam de uma vida linguística que envolve movimentos constantes entre línguas, Língua de Sinais Americana (ASL) e inglês. Assim, em sala de aula, as crianças podem ler parágrafos em inglês e explicar o seu significado em ASL.

Recebido: 12 de Agosto de 2023; Aceito: 12 de Fevereiro de 2024

Veronica Lima da Fonseca Almeida possui um Doutorado em Ciências da Educação (Universidade do Porto). Mestrado em Desenvolvimento Sustentável (Universidade de Brasília). Especialização em Atendimento e Educação de Surdos em Espaços Escolares (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul) e em Língua Brasileira de Sinais (Faculdade Alvorada e Instituto de Estudos e Formação Especializada). Licenciada em Letras-Libras (Centro Universitário Leonardo da Vinci-Uniasselvi) e em Pedagogia (Universidade Estadual da Paraíba). Docente de LIBRAS do Instituto Federal de Brasília (IFB). Membro do grupo de investigação Inclusão Digital e Social para Pessoas Idosas (IFB60+) IFB/CNPq. Coordenadora/orientadora pesquisa PIBIC/FAPDF sobre Educação Bilíngue para surdos no DF no Ensino Superior do IFB. E-mail: veronica.almeida@ifb.edu.br Morada: Instituto Federal de Brasília, Campus Ceilândia, QNN 26, área especial, CEP 72.220-260, Ceilândia, Distrito Federal, Brasil

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