1. Introdução
A imagiologia forense reúne a ciência forense com a imagiologia, e o seu objetivo é, através da aplicação dos diferentes métodos de imagem médica, resolver problemas forenses.1 A autópsia virtual é um método recente que tem vindo a ganhar notoriedade, nas últimas décadas. Na literatura, a autópsia virtual assume outras designações como virtópsia, necrópsia virtual, autópsia digital, autópsia minimamente invasiva ou não invasiva.
O termo virtópsia é derivado de “virtus” que significa útil e eficiente, que é conjugado com “autos” e “opsis” que se refere a “ver com os próprios olhos”.2 Constitui uma metodologia que fornece elementos periciais relevantes para a Patologia Forense, podendo ser empregue como um complemento da forma clássica de autópsia, nomeadamente em situações em que existe um elevado risco infeto-contagioso.3
Na autópsia virtual realizam-se técnicas de imagem médica no exame post mortem, como por exemplo a tomografia computorizada post mortem (TC-PM), a angiografia por tomografia post mortem (AngioTC-PM) ou a ressonância magnética post mortem (RM-PM), com o intuito de esclarecer a causa e as circunstâncias da morte, a identificação do cadáver, a realização de estudos tanatológicos e antropológicos. Esta inovação no campo da medicina forense recolhe, analisa e processa as informações obtidas nos exames realizados, de forma não invasiva, preservando a integridade do corpo.1
A pandemia COVID-19 evidenciou a importância do controlo da transmissão de um agente infecioso, numa realidade de grande proximidade entre o profissional e o cadáver. Esta necessidade forçada de mudança demonstrou a possibilidade de consolidação da virtópsia, sem colocar em causa a finalidade maior da Medicina Legal. Objetivou-se a ascensão desta realidade com o incremento do número de pedidos de exames post mortem e maior disponibilidade de dados, o que originou um aumento de publicações nesta área.1,4
Assim, é importante perceber se esta ferramenta poderá substituir a autópsia convencional ou se será considerada apenas meio complementar, ou até se poderá ser usada unicamente como um “screening”. Outra questão importante é se o seu uso trará acréscimo ao conhecimento na área da Medicina Legal ou se simplesmente será considerada desnecessária a sua utilização.
O objetivo principal deste trabalho é realizar uma revisão narrativa da literatura, com a finalidade de expor os alcances, limitações e aplicabilidade no âmbito forense da autópsia virtual. Como complemento, serão também caracterizadas as técnicas da imagem médica post mortem como a TC-PM e a RM-PM.
2. Material e Métodos
A estratégia de pesquisa consistiu no levantamento de artigos completos a partir de 1 de janeiro de 2015 até 31 de novembro de 2023, tendo sido incluído conteúdo que se mostrou pertinente fora desse espaço temporal, publicado em português ou inglês, nas plataformas digitais. Como outros critérios de inclusão evidenciaram-se estudos realizados na espécie humana, de âmbito forense (exclusão de artigos de âmbito hospitalar), da área da medicina ou radiologia forense e com foco na potencial aplicabilidade da técnica. Os artigos que não cumprissem os critérios mencionados foram excluídos da revisão de literatura. A análise do “Tratado de Medicina Legal” e de capítulos de livros publicados do tema foi também efetuada.
A pesquisa na PubMed baseou-se nos termos MeSH: “postmortem imaging” e “forensic imaging”. Para a formalização da equação de pesquisa, completou-se com as palavras “autopsy” e “virtual autopsy”. As bases de dados Web of Science, ÍndexRMP e Acta Médica Portuguesa foram, igualmente, consultadas.
O processo de seleção dos estudos publicados é explicado na Figura 1, evidenciando-se como referências pertinentes 44 estudos.
3. Discussão e Conclusão
A imagem post mortem tem sido explorada na prática forense, dado o aumento do reconhecimento e aceitação na comunidade científica.5 Reúne técnicas não invasivas como a radiologia convencional, a ecografia, a tomografia computorizada (TC), a ressonância magnética (RM) e técnicas minimamente invasivas, como a angiografia e a biópsia.6
Muitas instituições já possuem instalações dedicadas ao exame imagiológico forense e o uso das imagens post mortem já integra o processo de investigação da morte.7 No entanto este uso depende da disponibilidade e facilidade de integração da abordagem com o fluxo de trabalho da autópsia tradicional. Exemplificando, em Melbourne, a TC-PM é realizada em todas as admissões antes da autópsia tradicional, resultando em cerca de 5000 exames por ano. Já em Berlim, é realizada apenas em determinados casos, como homicídios, resultando em 250 exames por ano.5
Atualmente, a virtópsia inclui a fusão ou uso individual das técnicas como a TC-PM e a RM-PM e o recurso à digitalização de superfícies óticas através de fotogrametria tridimensional.6,8,9,10
A imagiologia é particularmente atraente pois produz evidências de alta credibilidade diagnóstica e de poder documental. Contudo, a escolha da técnica adequada requer conhecimentos técnicos de cada método, bem como as vantagens e desvantagens da sua utilização em cada caso.
A autópsia virtual recorre a várias técnicas, no entanto, incidiu-se nas mais utilizadas no âmbito forense: TC-PM e RM-PM.
3.1 Tomografia Computorizada Post Mortem
A TC-PM já é parte essencial dos exames post mortem de rotina nos institutos de medicina forense,11 sendo a TC-PM de corpo inteiro sem contraste a base para a maioria dos exames.5,8 É uma técnica objetiva usada para documentação e armazenamento de evidências, garantindo acessibilidade futura.12
Os equipamentos de TC mais utilizados são os multidetetores helicoidais. Para determinadas áreas anatómicas, é considerada a que fornece imagens com melhor qualidade12 e com superior resolução de contraste, permitindo a diferenciação entre tecidos moles e fluidos.10,13
Pelo curto tempo de aquisição14 e processamento da imagem por reformatações multiplanares ou por reconstruções tridimensionais, os resultados ficam disponíveis rapidamente11 e proporcionam uma interpretação mais fácil dos resultados em reuniões e tribunais.11
A TC-PM é amplamente utilizada na área forense, em especial na avaliação da causa de morte, na identificação do indivíduo, na estimativa da idade e do intervalo post mortem.
De forma generalizada, a TC-PM apresenta um melhor desempenho relativamente à autópsia na deteção de lesões craniofaciais, cerebrais, torácicas e ósseas, na presença de corpos estranhos e de coleções de gases patológicas.5,6,15,16,17 A TC-PM é considerada útil como método de investigação preliminar, sendo um potencial guia estratégico para as autópsias.11 No entanto, ao contrário da resolução espacial e excelente contraste particularmente para o osso, possui um baixo poder discriminativo em lesões abdominais, órgãos parenquimatosos e tecidos moles e ainda carece na avaliação da componente vascular, sendo só eficaz em situações de grandes hemorragias.5,15,18,19 Salienta-se que a TC-PM fornece informações decisivas para a determinação da causa de morte quando o hábito externo é realizado em vez da autópsia invasiva completa.20 Ademais, tem grande relevância na análise prática de lesões traumáticas e, portanto, na avaliação da morte traumática.11,17,21 Na melhor prática forense, é importante na distinção entre os achados relacionados com o trauma e as alterações post mortem consideradas normais.15 A TC-PM é usada, especialmente, em trauma contuso, estudos de balística e investigação de cadáveres carbonizados ou putrefactos.8 Usando a reconstrução tridimensional é possível identificar fraturas complexas e a sua orientação, sem o risco de deslocação através de manipulação direta.10 Em politraumatizados, como nos acidentes rodoviários, a análise morfológica das fraturas fornece informações sobre a dinâmica das forças aplicadas, permitindo uma melhor reconstrução do acidente.22
Igualmente, a TC-PM é o método ideal para a deteção de corpos estranhos radiopacos como projéteis, explosivos, implantes médicos, corpos estranhos engolidos ou aspirados,8,11,16 e permite a orientação rápida para extração direcionada durante a autópsia.10 Esta técnica não permite apenas a localização tridimensional do projétil, mas também a consideração de lesões de tecidos moles, órgãos e ossos ao longo do trajeto, contribuindo para a previsão correta do trajeto.12,17,22,23 Pelo contrário, a TC-PM apresenta uma baixa sensibilidade para detetar lesões em órgãos sólidos na ausência de contraste, sendo difícil demonstrar o trajeto de um ferimento perfurante por arma branca.16,21,22
Recentemente, a TC-PM tem sido utilizada em queimados, permitindo a diferenciação entre as alterações post mortem fisiológicas e as relacionadas com a ação do calor. Nas mortes relacionadas com o fogo, a TC-PM mostra sinais típicos de lesões por calor como fraturas térmicas, retração muscular, hematoma epidural térmico e destruição térmica de tecidos. Permite ainda a avaliação de lesões ocultas de processos patológicos ante mortem.22 A TC-PM não só é capaz de identificar um corpo gravemente queimado com sinais de fraturas traumáticas ou provocadas pelo calor mas também permite a localização de corpos estranhos nas vítimas queimadas.18
A TC-PM pode fornecer achados que, embora não específicos, são altamente sugestivos de afogamento como a hemodiluição, enfisema aquoso e coleção de líquido paranasal, traqueal e seios frontais.24,25 Na literatura sugere-se que seja realizada antes da autópsia, dado que ajuda a compreender se a vítima estava viva ou morta quando ocorreu a submersão.26
Nas causas naturais de morte tem limitações devido à fraca capacidade em diferenciar as interfaces de tecidos moles e na documentação de alterações vasculares.27 Em casos de morte súbita cardíaca, a sensibilidade da TC-PM é baixa no reconhecimento de estenoses coronárias ou zonas de enfarte, mas é significativa na identificação de calcificações das artérias coronárias, válvulas cardíacas e cardiomiopatia hipertrófica/dilatada.22
A TC-PM permite estimar o intervalo post mortem, já que as alterações post mortem identificadas podem fornecer um índice para uma estimativa objetiva do intervalo. No entanto, os parâmetros propostos, entre os quais a diminuição de gás intrarretal e um aumento do gás intrahepático, precisam de ser padronizados para que tenham um papel concreto.22,28
A identificação pessoal de um corpo baseia-se na comparação das imagens post mortem com exames ante mortem. Também os seios perinasais são usados para comparação imagiológica pela alta variabilidade interpessoal. Para a estimativa da idade, a TC-PM pode fornecer informações na erupção dos dentes, no crescimento do esqueleto e na fusão metafisária, sendo a ossificação da clavícula útil em indivíduos entre os 10 e 35 anos.22
Na determinação do sexo do cadáver, a TC-PM tem uma palavra no estabelecimento do dimorfismo esquelético, particularmente no crânio e pélvis.22,28
Em acréscimo, é relevante saber que o erro e deficiências da própria imagem podem ocorrer, como o mau posicionamento do corpo, que levaria a artefactos de imagem.29 Para reduzir a incidência de artefactos metálicos dos projéteis, podem ser usados algoritmos para redução dos artefactos metálicos como o Interative Metal Artifact reduction (iMAR, Siemens ®).11
O exame post mortem da tomografia computadorizada pode ainda ser complementado com outras técnicas como a biópsia guiada por TC-PM e a TC-PM com ventilação pulmonar, sendo a mais impactante a AngioTC-PM.5 A técnica de angiografia foi desenvolvida como técnica complementar da virtópsia, de modo a aumentar o poder diagnóstico da TC-PM.8,30,31,32 A sensibilidade da TC-PM em relação aos órgãos sólidos aumentou até 81% após a injeção do contraste, tornando-a comparável à autópsia clássica.10 O sistema vascular post mortem está vazio ou parcialmente preenchido com coágulos sanguíneos, logo, é necessária a perfusão de um volume sob uma determinada pressão. Contudo, a pressão de injeção deve ser monitorizada para evitar um extravasamento para os tecidos adjacentes.5 Realiza-se uma injeção venosa após a injeção arterial, exceto no caso de suspeita de patologia venosa em que primeiramente é feita a injeção venosa.33
Os locais de injeção usados são vasos do pescoço, femorais, axilares ou subclávios. A administração pode ser realizada manualmente, por máquina cardiopulmonar modificada, por procedimentos de reanimação cardiopulmonar como as compressões torácicas ou por dispositivos de perfusão com pressão controlada (e.g. Virtangio®).22 As substâncias injetadas são divididas em 6 grupos: preparações corpusculares em gelatina ou ágar, preparações corpusculares em solução aquosa, contraste hidrossolúvel, contraste oleoso, gessos e formulações diversas.5 O contraste oleoso permanece dentro do lúmen, mesmo nos vasos fortemente modificados em cadáveres putrefatos.10 Recomenda-se a colheita de amostras de fluidos corporais para análises microbiológicas e toxicológicas antes da injeção do contraste.10 A abordagem caracteriza-se por múltiplas aquisições sequenciais, com um varrimento de corpo inteiro e três fases angiográficas (arterial, venosa e dinâmica), sendo que um achado identificado em duas fases é considerado significativo.8,10
Noutro protocolo, com origem japonesa, o meio de contraste é administrado num vaso venoso periférico e a circulação é por uma técnica de ressuscitação cardiopulmonar com compressões torácicas, imediatamente após a morte.7,8 Em Inglaterra, pela causa cardiovascular ser a principal indicação para a autópsia, a angiografia coronária direcionada é mais utilizada.8,10 A punção percutânea e administração direta do contraste no ventrículo esquerdo é outra alternativa.13
A AngioTC-PM demonstra maior sensibilidade na identificação de lesões esqueléticas e vasculares, enquanto a autópsia tradicional fornece mais informações sobre a anatomia e patologia macroscópica do órgão.8,22 Assim, a AngioTC-PM tem como objetivos principais identificar a fonte da hemorragia, a quantificação da perda sanguínea, a deteção de variações anatómicas e patológicas vasculares.32 É recomendada em casos de morte por trauma contuso, acidentes rodoviários, quedas de altura, na suspeita de morte de causa cardiovascular, morte após intervenção cirúrgica e ferimentos penetrantes ou balísticos.32
Em casos de morte cardiovascular, permite a análise do miocárdio e das artérias coronárias, com identificação de estenoses, placas intravasculares e calcificações,8 demonstrando ser útil em casos de morte súbita cardíaca, doença isquémica e tromboembolismo pulmonar.13 O contraste oleoso mimetiza uma embolia pulmonar gordurosa, sendo recomendada uma biópsia do tecido pulmonar guiada por TC-PM antes da injeção do contraste.10
Recentemente, esta técnica mostrou-se útil na caracterização de ferimentos por arma branca e arma de fogo. Com a verificação de contraste a nível extravascular, documenta-se a direção e a profundidade do golpe perfurante13 e o trajeto do projétil, podendo ser compreendido por profissionais não médicos.8,10
O estado avançado de putrefação pode levar a artefactos e à não visualização de vasos sanguíneos, sendo difícil a interpretação entre coágulos sanguíneos post mortem e trombos intravasculares.13
As técnicas angiográficas são mais demoradas, facto que justifica não terem ainda sido adotadas nas instituições forenses.33 Embora, no futuro, esta modalidade possa substituir a autópsia, atualmente deve ser apenas considerada como complementar na patologia forense.13
De forma sucinta, os alcances e as limitações da TC-PM e AngioTC-PM anteriormente descritos são mencionados nas Tabelas 1 e 2, respetivamente, assim como a sua aplicabilidade no âmbito forense.
3.2 Ressonância Magnética Post Mortem
A RM-PM foi introduzida em investigações forenses nos anos 90, tendo sido proposta como uma técnica pré-autópsia, com resultados promissores.7
O contraste entre estruturas anatómicas é devido a diferenças no sinal da RM, que está diretamente relacionado com as propriedades intrínsecas dos tecidos, como a densidade protónica, e especificidades de relaxamento tecidular.10
A intensidade de sinal está, também, dependente da temperatura corporal,5 ou seja, a redução da temperatura corporal dos cadáveres leva à redução dos sinais T1 e T2, o que afeta o contraste da imagem e requer ajustes das sequências para se adequar às condições post mortem.13
O papel da RM-PM como alternativa viável à autópsia invasiva tem sido investigado. Contudo, ainda é relatada pela vasta maioria dos estudos apenas como exame complementar,34 sendo necessários mais estudos, especialmente na população adulta.18
O protocolo ideal consiste em sequências ponderadas em T1 e T2 adquiridas em três eixos diferentes, com aquisição tridimensional e reconstrução multiplanar.8
Em 2017, a primeira RM com alta intensidade de campo magnético de 7 tesla (T) obteve autorização para uso clínico e tem sido usada no âmbito forense. Uma maior intensidade do campo magnético tem o potencial de fornecer uma maior relação sinal-ruído, melhorando a qualidade da imagem e a resolução espacial.35 A relação contraste-ruído máxima alcançável aumenta à medida que a relação sinal-ruído e a intensidade do campo aumentam. Logo, a RM-PM de alto campo é benéfica na análise de pequenas lesões, incluindo microhemorragias, e na visualização da anatomia cerebral e do crânio.34,35
A RM-PM oferece alta resolução espacial e permite uma visualização superior na avaliação precisa de lesões e patologias dos tecidos moles,18,36,37 sobretudo das regiões da cabeça e pescoço, coluna vertebral, abdómen, extremidades e sistema cardiovascular.5,13,17 Por esta razão, a RM-PM é importante no diagnóstico de morte natural e na avaliação de lesões traumáticas de tecidos moles.10,17 Em oposição, lesões traumáticas ósseas são pouco visíveis na RM-PM.38 Assim, a RM-PM tem sido recomendada nos casos de trauma contundente e penetrante, erros médicos e na estimativa da idade.10
Um importante interesse da RM-PM é a imagem cardiovascular, especialmente em casos de morte súbita,10 sendo superior à TC-PM no diagnóstico de anomalias cardíacas, como enfarte ou isquemia do miocárdio, hipertrofia/dilatação ventricular, tamponamento e contusões cardíacas.5,13,39
Ao nível do sistema nervoso, oferece resultados sensíveis na deteção de lesões craniocerebrais, medulares ou ligamentares.34 Acresce na diferenciação entre origens traumáticas e não traumáticas de hemorragias cerebrais, com sensibilidade aumentada na RM-PM de alto campo magnético.39 A deteção de lesões de golpe e contragolpe permitem a descrição do impacto, levando ao diagnóstico de lesões por aceleração e desaceleração. A RM-PM cerebral de 7T é capaz de excluir lesões cerebrais por cisalhamento.35
A RM-PM tem sido proposta para casos de enforcamento e de estrangulamento manual devido à sua sensibilidade para detetar hemorragias na musculatura do pescoço, edema regional intramuscular e adenopatias neste tipo de morte, destacando-se os hematomas localizados em redor das fraturas das estruturas laríngeas.8,10,18,38
É também a modalidade de primeira escolha em imagem post mortem neonatal e pediátrica5,8,13 e tem especial valor na avaliação do abuso infantil, pela deteção de lesões de tecidos moles ou órgãos parenquimatosos.10,35 Ainda assim, refere-se a baixa sensibilidade desta técnica na deteção de lesões torácicas não cardíacas, especialmente a nível pulmonar.40
Outra área investigada é o poder diagnóstico da RM-PM de alto campo em ferimentos por arma de fogo.34 Em tiros craniocerebrais, a energia transferida pelo projétil pode causar lesões hipointensas no parênquima circundante do trajeto da bala, na sequência de T2.34 No entanto, permanece restrito o seu uso na avaliação imagiológica de ferimentos deste tipo.37
Adicionalmente, conclui-se que projéteis ou fragmentos ferromagnéticos apresentam movimentos significativos, enquanto os projéteis não ferromagnéticos não sofrem alteração espacial. Além disso, estes últimos dificilmente causam artefactos na RM-PM,36 ao contrário dos objetos metálicos, que podem causar perda de sinal e artefactos pronunciados. Caso necessário, recomenda-se testar a atração magnética com um fragmento de bala semelhante às munições encontradas no corpo.8,37
Por outra perspetiva, algumas publicações discutiram o uso da RM-PM na avaliação da idade óssea, nomeadamente em regiões anatómicas como as cristas ilíacas, joelhos, clavículas, dentes, punhos e tornozelos.8
Como artefactos mais específicos, evidencia-se a influência da temperatura no contraste da imagem ponderada em T1 e T2 e a estase vascular, em particular a estase venosa, já que pode mimetizar uma hemorragia na sequência de ponderação T2.5
As limitações práticas baseiam-se na relação custo-efetividade,18 com alto custo de aquisição e manutenção e tempos de aquisição longos. Caracteriza-se pelo grau elevado de dificuldade e de conhecimentos necessários, que motivam a dependência de pessoal médico e técnico com formação específica na área.13 Além disso, pelo acesso limitado, apenas poucos institutos de Medicina Legal têm a possibilidade de realizar a RM-PM como primeira linha de atuação.5,8,34,36,37,39
Na literatura e apesar das escassas publicações,33 é descrito o uso de contraste na RM-PM, com a designação de angiografia por RM-PM (AngioRM-PM).6
Os alcances, limitações e a aplicabilidade da técnica da RM-PM referidos anteriormente estão sintetizados na Tabela 3.
3.3 TC-PM versus RM-PM
A TC-PM apresenta uma resolução de contraste, em tecidos moles, inferior à RM-PM, logo não será a técnica ideal para lesões de órgãos parenquimatosos.8,41,42 É valiosa em casos de morte de causa neurológica, gastrointestinal e não natural, sendo mais direcionada para a deteção de lesões ósseas. Nas lesões traumáticas de órgãos a sensibilidade não é elevada.22 Quando comparada com a RM-PM, a TC-PM exige menos tempo de aquisição, é amplamente disponível e menos dispendiosa.39
A RM-PM é útil em mortes de indivíduos jovens com problemas cardíacos ou neurológicos. A RM-PM é realizada principalmente numa região anatómica específica e não como um método de triagem, como acontece com a TC-PM.8 Relativamente às lesões ósseas, o uso de determinadas sequências na RM-PM pode produzir uma visualização igualmente boa e permite a diferenciação dos ferimentos de entrada e saída e a deteção de lesões ósseas características em ferimentos por arma de fogo.34 Numa outra perspetiva, a RM-PM permite o exame da cartilagem que não pode ser feito com a TC-PM, útil na estimativa da idade óssea do cadáver. Apesar da abordagem de eleição para corpos cadavéricos ser a TC-PM, a RM-PM produz dados valiosos para a identificação10 e preservação de detalhes anatómicos do cérebro em decomposição, ao contrário da liquefação cerebral observada na TC-PM.5,13
A combinação de ambas as técnicas post mortem mencionadas anteriormente pode ser benéfica na deteção de hemorragias43 ou em casos de enforcamento e estrangulamento manual, em que é descrita como uma possibilidade de substituição da autópsia invasiva.
3.4 Considerações Finais
As vantagens gerais da virtópsia baseiam-se nas características não invasivas, sendo frequentemente usada quando existem oposições culturais à autópsia invasiva, proporcionando uma alternativa cultural e científica aceitável.2,5,30 Na investigação é aplicada, regularmente, antes da autópsia tradicional para localizar traumas, padrões e alterações patológicas, incluindo áreas não investigadas rotineiramente, como a face e membros.3,6,22 A par, possui a capacidade de armazenar dados permanentemente, passíveis de outras análises e discussão posterior, mesmo após o enterro ou cremação do cadáver. É possível aprimorar a imagem através de reformatações e reconstruções digitais em 2D ou 3D.2 O recurso ao aumento da radiação e uso de contrastes não utilizados na prática clínica não constitui uma questão, dado ser um exame em cadáver.6 A virtópsia auxilia na identificação cadavérica e estimativa da idade óssea, sendo útil em desastres de massa.11 As técnicas post mortem têm, ainda, o potencial de proteger a equipa de profissionais que realizaria a autópsia, em casos de presença de objetos pontiagudos, explosivos e doenças infeto-contagiosas.5,30 Dado o grande volume de casos e o risco de realizar autópsias invasivas, a pandemia Covid-19 foi relevante no desenvolvimento desta abordagem, permitindo funcionar como triagem e investigação nos casos de indivíduos falecidos infetados ou com suspeita de infeção, com a intenção de aumentar o número de casos examinados e reduzir o risco de contaminação e disseminação do agente infecioso.44 Constatou-se o valor social inestimável da imagem forense e o potencial de ser usada numa qualquer pandemia imprevisível no futuro.6
No entanto, pelo custo elevado e não sendo acessível em todas as instituições, não é amplamente utilizada.6 Em adição, a presença de artefactos de imagem prejudica a qualidade e a resolução espacial, evidenciando a necessidade de pessoal qualificado em interpretação de imagens post mortem.18 Do mesmo modo, a virtópsia sendo uma abordagem virtual, impossibilita o recurso dos sentidos tradicionais como são o olfato ou tato.2,6,30
Como última consideração, será que o uso da virtópsia poderá, efetivamente, substituir a autópsia convencional? Ou poderá ser utilizada como um método de “screening”?
Na revisão de literatura realizada, ainda não é unânime a resposta a estas perguntas. Assim, tendo em conta os custos diretos e indiretos, alcances e limitações da autópsia virtual, poderá ser utilizada como método alternativo de diagnóstico post mortem, como método complementar ou como método de triagem apenas em casos selecionados em que possa fornecer informações adicionais relevantes à investigação tradicional.22 Os casos elegidos são, principalmente, mortes traumáticas que envolvem mais do que uma parte do corpo, tais como acidentes de viação, quedas de altura ou ferimentos por arma de fogo,7 dado que a validade da autópsia virtual é maior para este tipo de morte, comparativamente com outras.45
Na área do trauma balístico, a autópsia virtual efetuada antes da autópsia tradicional ajuda a identificar a localização dos projéteis e fragmentos, poupando muito tempo na sua eventual recuperação. A avaliação do trajeto da bala ajuda, igualmente, na reconstrução das posições relativas da vítima e do agressor durante o alegado incidente.13,45
Apesar das vantagens da autópsia virtual na identificação de condições que de outra forma não seriam detetadas a olho nu na autópsia, esta ainda não é capaz de substituir completamente a autópsia convencional por diversas razões, uma das quais a relevância do hábito externo na caraterização de lesões que envolvem a pele, tais como contusões, abrasões e outras feridas.45
Em suma, a virtópsia pode ser recomendada como uma alternativa prática de diagnóstico quando a autópsia convencional não é possível e pode desempenhar um papel como método de “screening” para mortes traumáticas.22,45