1. Introdução
A responsabilidade disciplinar das sociedades anónimas desportivas (doravante SAD) e dos clubes desportivos pelo comportamento dos seus adeptos, atenta a relevância social da violência no desporto e a importância da implementação de medidas destinadas à prevenção e ao combate do fenómeno em causa, tem sido um dos temas que com grande assiduidade vem motivando a instauração de processos disciplinares por parte dos Conselhos de Disciplina das Federações Desportivas, com maior destaque da Federação Portuguesa de Futebol (doravante FPF).
Por sua vez, as decisões sancionatórias proferidas pelo referido órgão de disciplina federativa têm sido objecto de frequente impugnação junto do Tribunal Arbitral do Desporto (doravante TAD) por via da interposição do correspondente pedido de arbitragem necessária e, em sede de recurso, junto do Tribunal Central Administrativo Sul (doravante TCA Sul), tendo também merecido a pronúncia do Supremo Tribunal Administrativo (doravante STA), o qual, reconhecendo que a questão se reveste, pela sua relevância jurídica e social, de importância fundamental, tem aceitado o recurso de revista que as partes interpõem das decisões proferidas em segunda instância.
Os pedidos de impugnação das referidas decisões sancionatórias dos Conselhos de Disciplina têm conhecido, quer por parte do TAD, quer por parte do TCA Sul, diferentes entendimentos decisórios, uns no sentido da anulação dos acórdãos dos Conselhos de Disciplina, julgando inverificados os requisitos de que depende a responsabilidade disciplinar das SAD ou dos clubes pelos comportamentos dos seus adeptos, sendo que se impõe sobre o órgão federativo o ónus de provar a existência dos mesmos, outros confirmando as sanções por este aplicadas e julgando improcedente o pedido da sua revogação, entendendo que compete às SAD ou aos clubes - para alguns apenas quando na qualidade de visitados - tendo por base a ocorrência dos comportamentos e a presunção de veracidade do relatório do jogo, a demonstração, no âmbito do dever in vigilando e do dever in formando, que sobre eles incide, de terem adoptado todas as medidas destinadas a evitar os comportamentos dos adeptos capazes de integrarem as infrações previstas nos respetivos regulamentos disciplinares federativos, tendo em vista criar dúvidas no julgador sobre o facto presumido.
Por sua vez, o STA tem tido, até esta data, um entendimento uniforme no sentido de considerar que, quer na qualidade de visitado, quer na qualidade de visitante, incide sobre as SAD ou clubes o referido ónus de provar a implementação das referidas medidas. A jurisprudência tem sido, contudo, unanime quanto a entender que se trata de uma responsabilidade subjetiva e, portanto, dependente de culpa.
Temos, na qualidade de árbitros do TAD, sido chamados a decidir diferentes pedidos de arbitragem necessária destinados à impugnação de sanções disciplinares aplicadas pelo Conselho de Disciplina da FPF a SAD ou clubes, como sucede no caso das infracções previstas e punidas pelos artigos 183.º, 186.º e 187.º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante RDLPFP), pelo que julgamos, com base na experiência que vimos adquirindo ao longo dos últimos anos, poder dar um contributo privilegiado - mas não exaustivo, atendendo às limitações que naturalmente se impõem com o objetivo pretendido com o presente texto - na exposição do entendimento seguido pelas referidas correntes jurisprudenciais quanto à responsabilidade disciplinar das SAD ou dos clubes desportivos pelos comportamentos dos seus adeptos, enunciando e destacando os principais argumentos em que vêm sustentando as suas posições.
2. As três orientações jurisprudenciais
Tomaremos, por facilidade de exposição e por ser aquele que com mais frequência tem suportado o sancionamento disciplinar das SAD e dos clubes por comportamentos dos seus adeptos e a sua consequente impugnação junto do TAD, o RDLPFP como base de referência na nossa exposição, muito concretamente os seus artigos 183.º, 186.º e 187.º.
Nos termos do disposto no artigo 183.º, «(1) o clube cujos sócios ou simpatizantes arremessem para dentro do terreno de jogo objetos, líquidos ou quaisquer outros materiais que pela sua própria natureza sejam idóneos a provocar lesão de especial gravidade aos elementos da equipa de arbitragem, agentes de autoridade em serviço, delegados e observadores da Liga, dirigentes, jogadores e treinadores e demais agentes desportivos ou qualquer pessoa autorizada por lei ou regulamento a permanecer no terreno de jogo e que, dessa forma, determinem que o árbitro, justificadamente, atrase o início ou reinício do jogo ou levem à sua interrupção não definitiva é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 50 UC e o máximo de 100 UC. (2) Em caso de reincidência o clube infrator é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 100 UC e o máximo de 200 UC. (3) Se, no decurso da mesma época desportiva, o clube já tiver sido punido nos termos do número anterior, é punido com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de um e o máximo de três jogos e, acessoriamente, com a multa de montante a fixar entre o mínimo de 100 UC e o máximo de 200 UC».
Segundo o artigo 186.º, «o clube cujos sócios ou simpatizantes arremessem para dentro do terreno de jogo objetos, líquidos ou quaisquer outros materiais que pela sua própria natureza sejam idóneos a provocar lesão de especial gravidade aos elementos da equipa de arbitragem, agentes de autoridade em serviço, delegados e observadores da Liga, dirigentes, jogadores e treinadores e demais agentes desportivos ou qualquer pessoa autorizada por lei ou regulamento a permanecer no terreno de jogo sem todavia dar causa a qualquer perturbação no início, reinício ou realização do jogo é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 50 UC e o máximo de 100 UC».
Já o artigo 187.º dispõe que, «fora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC.»
Nos termos já acima enunciados a jurisprudência tem-se dividido quanto ao tema da responsabilidade disciplinar das SAD e dos clubes pelos comportamentos dos seus adeptos, concretamente quanto ao entendimento sobre os pressupostos de que depende o seu sancionamento, circunstância que tem conduzido, por um lado, à revogação das decisões proferidas pelo Conselho de Disciplina da FPF assente no facto de este não ter logrado fazer prova de a conduta dos adeptos ter origem num comportamento culposo do clube, sobre o mesmo recaindo o dever de averiguar o que fez - ou não fez - o clube para impedir o ocorrido, por outro lado, à improcedência do pedido formulado pela SAD ou clube e à consequente confirmação das sanções aplicadas por se entender que, em face do recurso a presunções judiciais, é sobre estes que pende o ónus de demonstrarem que, no âmbito do dever in vigilando e in formando a que estão adstritas, praticaram todos os actos destinados a evitar os ditos comportamentos, ou, por outro lado ainda, uma versão mitigada desta última orientação, segundo a qual tal obrigação apenas se impõe ao clube visitado.
Há, no entanto, uma questão que tem sido consensual entre a jurisprudência: a responsabilidade disciplinar dos clubes por comportamentos dos adeptos é subjetiva, portanto, dependente da sua actuação culposa, pelo que, interpretadas à luz do referido princípio, as referidas normas do RDLPFP não merecem reparo de natureza constitucional em face de não assentarem na responsabilidade objectiva dos clubes pela prática de actos de terceiros, em desrespeito do princípio da culpa e daquele que dele emana - a pessoalidade da responsabilidade sancionatória (cfr. n.ºs 2 e 3 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa).
Na realidade, a interpretação judicial de uma norma - qualquer interpretação - deve obediência às regras consignadas para aquela, por vezes árdua, tarefa, nos termos expressamente consignados na lei. Desta forma, o intérprete não se deve cingir à letra da lei “mas reconstituir a partir de textos o pensamento legislativo, tendo, sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (…) Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (cfr. n.ºs 2 e 3 do artigo 9.ºdo Código Civil). Nas palavras de Baptista Machado “a unidade do sistema jurídico (…) este é sem dúvida o mais importante. A sua consideração como factor decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica”(1) (2). Por sua vez, no caso de serem possíveis várias interpretações, deve prevalecer a que melhor se coadunar com as normas e princípios constitucionais, sendo a interpretação conforme à Constituição um meio de impedir violações à Lei Fundamental.
As referidas normas inserem-se inevitavelmente no âmbito das medidas destinadas à prevenção e combate ao fenómeno da violência no desporto, traduzindo a realização da competência normativa atribuída às federações desportivas, na qualidade de entidades privadas de utilidade pública, quanto a esta matéria. O Desporto e, concretamente, a modalidade do futebol, enquanto fenómeno social, cultural e económico, guiado por um conjunto de princípios que o regem e que têm de ser salvaguardados, implicam que a atividade desportiva seja “desenvolvida em observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes” (cfr. n.º 1 do artigo 3.ºda Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro - Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto - LBAFD) (3).
Por sua vez, a ocorrência de actos de violência mesmo que “fora das quatro linhas” é susceptível de potenciar violência entre os demais participantes no fenómeno desportivo. Acresce que, aqueles mesmos princípios abrangem também uma vertente activa, por via da imposição ao Estado da incumbência de adoptar “as medidas tendentes a prevenir e a punir as manifestações antidesportivas, designadamente a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo, a xenofobia e qualquer forma de discriminação” (cfr. n.º 2 do artigo 3.ºda LBAFD). A violência no desporto encontra tratamento legal (e expressão doutrinal) no que se refere à violência praticada por agentes que não praticantes desportivos (maxime: adeptos), nomeadamente no que diz respeito aos crimes de dano qualificado no âmbito de espetáculo desportivo, participação em rixa na deslocação para ou de espetáculo desportivo, arremesso de objetos ou de produtos líquidos, invasão da área do espetáculo desportivo, ofensas à integridade física atuando com a colaboração de outra pessoa, crimes contra agentes desportivos, responsáveis pela segurança e membros dos órgãos da comunicação social (cfr. Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, com a redacção introduzida pela Lei n.º 113/2019, de 11 de Setembro - estabelece o regime jurídico dasegurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos).
O legislador português tem mostrado intenso e atento empenho na prevenção e combate ao fenómeno da violência no desporto, razão certamente pela qual “ao contrário do que sucedeu em muitos ordenamentos jurídicos por nós tidos em conta, em sede de análise de Direito Comparado, em Portugal são parcos os registos de situação de violência associadas ao desporto em larga escala (…) a aposta precoce feita na prevenção de um fenómeno que nunca atingiu, entre nós, proporções que atingiu noutros estados surtiu efeitos positivos (…) cifrando-se em ocorrências isoladas as decorridas no nosso país. (4) O referido regime jurídico estabelece um conjunto de deveres dirigidos aos organizadores da competição desportiva (federações e ligas) através da aprovação de regulamentos em matéria de prevenção e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos e sua punição, bem como aos promotores, organizadores e proprietários de recintos desportivos, fixando-se, ainda, regras para acesso e permanência naqueles recintos (cfr. artigos 5.º, 8.º e 23.º da Lei n.º 39/2009). Acresce, ainda, que as federações desportivas estão obrigadas a elaborar regulamentos que regulem matérias relacionadas com a violência no desporto (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 52.ºdo RJFD), bem como a colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos (cfr. artigo 79.º da Constituição da República Portuguesa).
É, portanto, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como de combate a manifestações que se traduzem na violação daquele princípio angular do Desporto, que incidem sobre aquelas entidades, designadamente sobre os clubes, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando relacionados com a temática da violência no desporto. Desse modo, a violação daqueles deveres não assenta necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infractor, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, pelo que o mesmo poderá ser sancionado por via da contribuição omissiva, causal ou cocausal que tenha conduzido a uma infracção cometida por terceiros, designadamente os sócios ou simpatizantes do clube.
É, portanto, por mor do cumprimento daquelas imposições legais que emergem das referidas normas - os artigos 183.º, 186.º, nº 1, 187.º, nº 1 al. b), do RDLPFP - que deve ser interpretado o seu conteúdo e, consequentemente, os pressupostos normativos daqueles preceitos à luz do princípio constitucional da culpa, que serve também de travejamento ao Estado de direito democrático, que tem como pressuposto que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta que seja considerado socialmente relevante e que tenha sido prévia e legalmente imposto ao agente, pois, de outra forma, estaríamos perante uma responsabilidade objetiva, que não é aceitável por falta de sustentação legal, no domínio sancionatório, mesmo que meramente disciplinar. Neste caso, e por via da interpretação extensiva, ter-se-á que concluir que é elemento do tipo subjetivo da norma em causa a conduta culposa do clube consubstanciada na violação (culposa) de um ou mais dos deveres que no âmbito da prevenção e repressão da violência do desporto lhe são impostos por via de disposição legal ou regulamentar (cfr. artigo 8.º da Lei n.º 39/2009; artigo 6.º do Anexo VI do RCLPFP). Deste modo, nos casos em que o clube actue com culpa - e só nesses casos - incumprindo, por acção ou omissão, aqueles seus deveres, conduta essa que permite ou facilita a prática pelos seus sócios ou simpatizantes de actos proibidos ou incorrectos, o mesmo poderá ser sancionado pela violação do disposto n.º 1 dos artigos 183.º, 186.º n.º 1 al. b) ou 187º. do RD, que têm por pressuposto o respeito pelo princípio constitucional da culpa.
Finalmente, as pessoas coletivas só podem ser objeto de responsabilidade disciplinar nos mesmos termos em que são penalmente responsabilizadas, ou seja, quando os factos são cometidos em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança ou por quem aja sob a autoridade daquelas pessoas, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem - a pessoalidade da responsabilidade disciplinar (cfr. artigo 12.º do Código Penal).
Feito este telegráfico enquadramento constitucional das referidas normas regulamentares, vejamos, agora, os argumentos em que assentam cada um dos distintos entendimentos que a jurisprudência do TAD, do TCA Sul e do STA vem manifestando sobre a verificação dos pressupostos da responsabilidade disciplinar dos clubes por comportamentos dos seus adeptos e o fundamento para o seu sancionamento.
2.1. O sancionamento dos clubes e das SAD por via do princípio “quem acusa tem o ónus de provar”
O direito disciplinar diferencia-se do direito processual penal e contraordenacional, mas muitas das regras e princípios processuais penais têm aplicação direta no âmbito de processos disciplinares, sendo que, no que concerne à matéria probatória - sua obtenção e valoração - entende-se que não existe qualquer excepção: quem acusa tem o ónus de provar, sendo esse o entendimento que vem sendo sufragado pelo Tribunal Central Administrativo Sul na generalidade dos Acórdãos que tem proferido no âmbito de recursos interpostos de decisões do TAD sobre esta matéria.
Deste modo, no caso de o titular da acção disciplinar não provar a prática pelo arguido dos factos constitutivos do ilícito disciplinar, deverá o mesmo ser absolvido, uma vez que no âmbito de processos sancionatórios o ónus da prova recai sobre o primeiro, sem nunca perder de vista o princípio da presunção de inocência. Por conseguinte, para que o Tribunal possa condenar o arguido pela prática de uma infração disciplinar, o mesmo tem de ter formulado um juízo de certeza sobre o cometimento dessa infração, derivada da prova concreta apresentada pelo acusador. Poderá esse mesmo juízo decorrer da produção de prova “de primeira aparência”, isto é, a mera circunstância de a infração ter ocorrido, por exemplo, numa bancada maioritariamente afecta a adeptos ou simpatizantes de um clube? Será tal constatação suficiente para fazer impender sobre o acusado o ónus de provar que não foram os seus adeptos que arremessaram o petardo ou que insultaram a equipa adversária? E será o uso dentro do recinto de jogo de um objecto proibido ou a adopção de comportamento incorreto suficiente para imputar ao clube a violação culposa de determinadas obrigações impondo-lhe a prova do contrário?
É entendimento desta orientação jurisprudencial que, no âmbito do processo sancionatório - penal, contraordenacional e disciplinar - não há - não pode haver - lugar a um esforço probatório aliviado por via do recurso a presunções, como sucede em outras áreas do direito . A prova em sede disciplinar, designadamente aquela assente em presunções judiciais, tem de ter robustez suficiente, tem de ir para além do início de prova, para permitir, com um grau sustentado de probabilidade, imputar ao agente a prática de determinada conduta, tendo sempre presente um dos princípios estruturantes do processo sancionatório que é o da presunção de inocência - “o processo deve assegurar todas as necessárias garantias práticas de defesa do inocente” e “que todo o acusado tenha direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular” (5).
“Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [...] ou de uma prova de primeira aparência». (cfr, v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, nº 112 pág, 190). Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207). A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção. A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Vaz Serra, ibidem). Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros. A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável. Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões” .
Deste modo, entende-se que a mera circunstância de, por exemplo, uma bancada na qual teve origem a deflagração de um petardo estar ocupada por adeptos do clube, sem sequer se fazer menção à exclusividade dessa afectação - “ocupada” não é sinónimo de “afecta” - não permite concluir que o seu autor tenha efetivamente sido um sócio ou simpatizante do mesmo, pois são dois factos autónomos, em que, de forma alguma, o segundo é uma consequência direta do primeiro e único facto conhecido e provado. Tendo sempre presente o princípio da presunção de inocência, Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam que “como conteúdo adequado do princípio apontar-se-á: (a) proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; (…) (h) princípio in dubio pro reo, implicando a absolvição em caso de dúvida do julgador sobre a culpabilidade do acusado” (6).
“E, juridicamente, há que distinguir sempre e em geral algo que parece simples:
- por um lado, (i) “dever a cargo das SADs de formação de cidadãos livres, maiores e imputáveis, e dever de vigilância desses mesmos cidadãos”;
- por outro lado, (ii) “ações violentas ou desordeiras praticadas por esses cidadãos”.
O primeiro postulado lógico-natural-jurídico é o de que aqueles dois polos, para relevarem, necessitam de um ponto de conexão, uma ligação natural ou jurídica entre os dois, de uma causalidade natural ou jurídico-normativa entre os dois. Ligação causal, remota ou não, que não se demonstra existir. São duas realidades ilícitas distintas. Pode haver uma sem a outra. E, como se disse, quanto às SADs, o que está em causa são aqueles deveres de formação e de vigilância, e não o que seja praticado por outrem. O mesmo o entende o TC para concluir haver aqui responsabilização subjetiva e não a inconstitucional responsabilização sancionatória objetiva. Caso não estivesse em causa a violação voluntária daqueles deveres, o TC nunca teria podido concluir que se tratava de responsabilização culposa. O que quer dizer que “a violação daqueles deveres” é o essencial do tipo legal de ilícito disciplinar aqui em causa, segundo o Supremo Tribunal Administrativo, o TC e segundo a Constituição. O que implica que o acusador tem o dever constitucional de afirmar e de demonstrar a violação daqueles deveres por parte do agente indiciado.”
Caso assim não fosse, estar-se-ia a fazer impender sobre o arguido um dever de fazer a prova de um facto (de que o autor do acto não era seu sócio ou simpatizante) que se revela praticamente impossível (desde logo porque a acusação não identifica o autor do facto), o que, desde logo, afastaria a possibilidade legal dessa imposição. A condenação do arguido com base na prova indirecta só nos casos acima descritos é legítima, de outra forma configura a violação do princípio da presunção de inocência, quedando aquele limitado no exercício do seu direito fundamental de defesa, garantido nos termos do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa. O Conselho de Disciplina da FPF decidiu até que “todo o complexo normativo sugere, com segurança, a aplicação das normas que regulam o processo penal. Por um lado, o facto das normas processuais penais serem, naturalmente, aquelas que se colocam como mais garantísticas dos direitos de defesa dos arguidos, com as necessárias adaptações, em alguns casos, o processo penal pode e deve representar a matriz de, pelo menos, todo o direito sancionatório público criminal, contraordenacional e disciplinar” .
Por sua vez, a norma que reconhece presunção de veracidade ao relatório do jogo (alínea f) do artigo 13.º do RDLPFP), consentindo o sancionamento apenas com base no mesmo, é, desde logo, suscetível de se revelar materialmente inconstitucional, desde logo em face de configurar uma verdadeira presunção inilidível, que é constitucionalmente inadmissível por traduzir a violação do direito de defesa e dos princípios da culpa, da presunção de inocência e do contraditório, todos eles constitucionalmente protegidos (cfr. artigos 32.º, n.º 10, 20.º, n.º 4 e 269º, nº 3 da CRP) - “Tal entendimento normativo afronta diretamente e de forma intolerável o princípio da presunção da inocência, já que o que tal norma determina é precisamente uma presunção inabalável de culpabilidade” (cfr. Acórdão n.º 338/2018 do Tribunal Constitucional).
Para além disso, no caso do relatório do jogo não significa que se esteja perante uma prova subtraída à livre apreciação do julgador, admitindo-se que até possa ter tratamento idêntico ao que é dado a um auto de notícia, a cujos elementos, recolhidos pela autoridade, é atribuído um especial valor probatório, sem que com isso se possa inferir um início de prova ou a inversão do ónus de prova. O relato constante do relatório do jogo não pode ser omisso quanto às circunstâncias de lugar, por exemplo, não identificando as bancadas como estando exclusivamente ocupadas por adeptos do clube ou que o(s) autor(es) estavam identificados com elementos que o(s) ligavam ao clube (v.g. cachecol, camisola, boné). A realização da prova da qualidade de “sócio ou simpatizante” por via da presunção retirada do facto de o(s) agente(s) se encontrar(em) numa determinada bancada do estádio, não encontra, salvo o devido respeito, apoio na letra das referidas disposições regulamentares. Na realidade, o Regulamento não pune o arremesso “proveniente das bancadas x ou y”, mas o arremesso “feito por sócios ou simpatizantes do clube”, pelo que, presumir que possuem a categoria de sócios ou de simpatizantes aqueles que se encontram em bancadas a eles afectas, sem qualquer outro apoio, é entendido, para efeitos do direito sancionatório e do reforçado esforço probatório que legalmente se impõe nesta área do direito, uma solução infundada, não sendo suficientemente robusta para ancorar o eventual recurso a presunções judiciais, designadamente por via da prova indirecta, quer quanto a terem sido adeptos da SAD ou do clube a praticarem tais actos, quer quanto a ter havido actuação culposa - por via activa ou omissa - daqueles para a ocorrência de tais práticas .
Por outro lado, quanto a esta última questão, que constitui um elemento do tipo dos referidos ilícitos em decorrência do princípio da culpa, não há razão alguma que pudesse permitir presumir o comportamento inadimplente do clube visitante, portanto sem nenhuma intervenção na adopção de medidas para acesso ao recinto e para a segurança no espetáculo, que está a exclusivo cargo das entidades organizadoras e promotoras do jogo (cfr. artigo 3.º, al. f) do RCDLPFP, artigo 6.º do Anexo VI do RCDLPFP e artigos 3.º al. k) e 8.º da Lei n.º 39/2009). (7) Um dos pressupostos essenciais é a culpa do agente, leia-se, do clube, pelo que, não se provando a mesma, não poderá ser aplicada uma sanção, sob pena de se violarem de forma inequívoca os princípios estruturais de direito penal e das normas constitucionais que versam sobre esta matéria, concretamente o princípio da culpa, sendo que impor ao agente, tendo por base uma primeira aparência, a obrigação de fazer contraprova seria uma forma evidente de lhe reduzir ou coartar as suas garantias de defesa. Além disso, não poderia impender sobre este um ónus de prova, dificultada ou mesmo impossível, uma vez que a teria que fazer pela negativa, concretamente demonstrando não ter sido um sócio ou simpatizante seu o autor dos factos ou que não adoptou nenhum comportamento culposo. Entende-se, pelas razões que acima se enunciaram, que compete ao titular do poder disciplinar o ónus de fazer a prova da prática das condutas que preencham todos os elementos do tipo de ilícito previstos na referidas normas regulamentares - ou seja, para além de que o autor do comportamento censurado é sócio ou simpatizante da SAD ou do clube, que esta(e) tenha violado culposamente os deveres a que legal ou regularmente estava obrigada(o), dessa forma tendo permitido ou facilitado as condutas previstas nas normas incriminatórias.
Quando o libelo acusatório assenta exclusivamente na ocorrência do comportamento objectivo previsto nas referidas normas e no facto de o mesmo ter sido praticado por alguém situado numa bancada destinada a adeptos do clube, daí retirando duas presunções - (i) que o facto foi praticado por sócio ou simpatizante do clube arguido e (ii) que este incumpriu os deveres que sobre si impendiam - sem descrever, em primeiro lugar, o que fez, ou deixou de fazer, o clube, por referência a concretos deveres (legais ou regulamentares) que identifica, e, em segundo, por que forma essa atuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado dos sócios ou simpatizantes, a acusação terá que soçobrar. Caberá, portanto, à entidade promotora do procedimento disciplinar a prova de todos os elementos típicos (objectivo e subjectivo) do tipo de infração, ou seja, de que o clube infringiu, com culpa, os deveres, legais ou regulamentares, a que estava adstrito, que esse comportamento permitiu ou facilitou determinada conduta proibida, que esta ocorreu, e que a mesma foi realizada por sócios ou simpatizantes seus. Impor ao agente a obrigação de fazer prova de tudo ter feito para evitar aqueles comportamentos seria bulir com as suas garantias de defesa, em contravenção, entre outros, com o disposto no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Terão sempre que ficar provados factos relativos à materialização de uma imputada violação pelo clube dos deveres de prevenir e reprimir eventuais condutas incorretas dos sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores, que se deve abster, em termos efetivos (e não presumidos), da prática de determinadas ações, comportamentos ou atividades, como é exemplificativamente o caso (i) da omissão de certas e determinadas medidas de segurança, (ii) da não emissão de regulamentos internos que punam os sócios quando incorretos e violentos, (iii) da omissão de medidas concretas relativas à proteção dos outros utentes dos recintos desportivos, (iv) da falta de cooperação com as forças de segurança ou da não requisição e/ou pagamento do policiamento ou, ainda, (v) do incitamento à violência ou à intolerância por via de qualquer concreto comportamento que tenha sido adotado, antes, durante ou depois do jogo, enfim da omissão de algum concreto comportamento do clube que concorresse para a prevenção da violência dos adeptos, sócios ou simpatizantes. Quanto à entrada de objectos proibidos no recinto desportivo uma decisão condenatória há-de estar motivada, por exemplo, (i) na revista na entrada do estádio não ter sido correctamente efectuada ou sequer efectuada, (ii) nos stewards, colaboradores de uma empresa prestadora de serviços, não terem evidenciado a atenção que lhes era exigida para assegurarem o decurso do jogo em segurança, ou por qualquer outra conduta que pudesse permitir evidenciar não ter o clube ou a SAD cumprido, por acção ou omissão, os deveres in vigilando a que se encontra obrigada.
Há um conjunto de comportamentos praticados por adeptos do clube e susceptíveis de preencherem a infracção p.p., por exemplo, no artigo 187.º, n.º 1 al. b) do RDLPFP desde que se conclua ter aquele violado culposamente os deveres regulamentares e legais a que se encontra adstrito. Para o efeito terá que no processo disciplinar ser averiguado pelo Conselho de Disciplina o que fez - ou não fez - o clube para não impedir, por exemplo, que fossem arremessados objectos para o terreno de jogo , deflagrados petardos, exibidas tarjas com determinados dizeres, deixando provado que aqueles ocorreram por acção ou omissão do clube. Quanto aos cânticos e ao conteúdo dos mesmos não pode o clube ou qualquer outra entidade, designadamente policial, num Estado Democrático, exercer controle sobre manifestações vocais - com ou sem palavrões - de uma multidão durante um evento desportivo. Na realidade, não há revista ou apreensão que possa valer naquele caso, pelo que não há dever in vigilando que, neste caso, possa ser imposto ao clube.
Em conclusão, a orientação jurisprudencial, cuja fundamentação argumentativa acima se deixou descrita, assenta o seu entendimento no princípio segundo o qual compete ao órgão disciplinar reunir, na qualidade de acusador, os elementos de prova (os factos) capazes de permitir sustentar ter o clube ou a SAD agido, por acção ou omissão, culposamente, não tendo evitado determinados comportamentos dos seus adeptos no recinto desportivo.
2.2. O sancionamento dos clubes e das SAD por via de presunções judiciais
A responsabilidade disciplinar dos clubes por comportamentos dos adeptos é subjectiva, dependendo da sua actuação culposa. A questão está em saber se determinados daqueles comportamentos, designadamente o rebentamento de petardos e a deflagração de fumos e flash lights na zona do estádio em que os adeptos se situavam é suficiente para julgar incumpridos ou imperfeitamente cumpridos os deveres de vigilância e de formação, bem como as garantias de segurança a que a lei e os regulamentos obrigam o organizador do evento desportivo.
Sobre a responsabilidade disciplinar de agentes desportivos, em particular dos clubes, pronunciou-se o Tribunal Constitucional a propósito das alegadas inconstitucionalidades imputadas a algumas das normas do diploma que continha o regime jurídico de prevenção e repressão de práticas associadas à violência no desporto e disposições de regulamentos federativos com a mesma finalidade. No Acórdão n.º 730/95, proferido no âmbito do Proc.º n.º 328/91, a propósito da norma que previa a sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes em causa, submetida à fiscalização concreta de constitucionalidade por aquele Tribunal, entendeu este o seguinte:
“Não é, pois, uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres. Afastada desde logo aquela responsabilidade objetiva de o artigo 3.º exigir, para a aplicação da interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas por espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes (…). Por fim, o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”.
A prova de primeira aparência tem por base as presunções naturais ou judiciais, assentes nas regras práticas da experiência, delas retirando o julgador ilações de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. As presunções naturais consistem em tirar ilações pelo juiz de um para outro facto que se encontram ligados por uma especial e particular relação. Estamos perante um juízo de probabilidade em relação ao facto presumido, pelo que as presunções naturais podem ser ilididas mediante simples contraprova. Enquanto as presunções legais, para serem ilididas, carecem de prova do contrário, já as presunções judiciais podem ser ilididas mediante a criação de dúvida sobre a realidade do facto presumido no espírito e mente do juiz. Assim sendo, se a simples contraprova é bastante para colocar em crise o juízo de probabilidade do juiz relativamente ao facto presumido então não se verifica qualquer inversão do ónus da prova, sendo que esta apenas ocorre quando haja uma presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei assim o determine.
O rebentamento de petardos e o deflagrar de fumos e flash lights na bancada afeta às claques de um clube é inelutavelmente sinónimo de que os objetos entraram no estádio e de que esses comportamentos tiveram origem em adeptos do referido clube, pois, perante a prova disponível - o relatório do jogo - os actos ocorreram naquela bancada e naquela concreta zona da mesma, é legítimo presumir, com base na experiência de vida (presunções naturais), que os atos foram praticados por adeptos daquele clube e de que não foram cumpridos os deveres de vigilância e formação. Tratando-se de uma presunção natural, cabe ao clube criar dúvidas no julgador sobre o facto presumido, de forma a não ser sancionado disciplinarmente.
A prova dos factos constitutivos da infração cabe à acusação, sendo que as dificuldades, por parte do órgão de disciplina da federação desportiva, de identificar o concreto individuo autor dos actos podem e devem ser diminuídas com o recurso a esta figura técnica probatória - presunção natural, judicial ou prova prima facie - sem se tornar necessário proceder à inversão do ónus da prova.
Em caso de verificação dos referidos actos sem que resultem, da investigação, circunstâncias que criem dúvidas no julgador sobre a existência e a origem dos mesmos ou sobre o cumprimento dos deveres de vigilância e formação dos adeptos, deverá haver lugar a sanção disciplinar. Se da investigação, composta por qualquer meio de prova legalmente admissível, resultar a certeza no julgador da inexistência das infrações por parte dos adeptos do clube, o processo disciplinar deverá ser arquivado. Por fim, se da investigação resultar uma dúvida insanável (por o clube ter apontado alguma causa bastante provável de os atos não terem sido praticados por seus adeptos ou de o clube ter cumprido com os seus deveres) o processo disciplinar deverá igualmente ser arquivado pela aplicação do princípio in dubio pro reo.
Apesar do exposto, não deixa de ser verdade que se o clube não conseguir criar no espírito do julgador a dúvida insanável sobre quem foi o agente do acto ou sobre ter havido violação dos deveres de formação e vigilância dos adeptos, aquele deverá ser punido disciplinarmente, mesmo não se tendo feito prova direta e absoluta da ilicitude e/ou da sua culpa. A utilização de provas indiretas e de presunções judiciais em direito penal é hoje pacificamente aceite pela jurisprudência e tem como fundamento as regras práticas da experiência, que consentem um juízo de probabilidade em relação ao facto presumido, partindo de um facto certo, inferindo-se, por dedução lógica, um facto desconhecido, podendo aquelas presunções ser ilididas mediante simples contraprova, criando a dúvida sobre a realidade do facto presumido no espírito do julgador. Assim sendo, se a simples contraprova é bastante para colocar em crise o juízo de probabilidade do juiz relativamente ao facto presumido, então não se verifica qualquer inversão do ónus da prova. Na verdade, a inversão do ónus da prova apenas ocorre quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.
As presunções de facto - judiciais, naturais ou hominis - fundam-se nas regras da experiência comum. Pelo exposto e a fortiori entende-se não se vislumbrar qualquer razão para se afastar as presunções judiciais do âmbito do direito disciplinar sancionatório. De um lado encontra-se o interesse público de combate à violência associada ao desporto e, do outro lado, o interesse do clube desportivo em não ser sancionado disciplinarmente por comportamento dos adeptos nos casos em que não haja a certeza absoluta de merecer um juízo de censura.
O combate à violência associada ao desporto nos estádios só pode aspirar alcançar os objetivos a que se propõe mediante um regime jurídico severo, duro, através de uma maior responsabilização dos clubes. Como confirma o Código da Ética Desportiva do IPDJ, “a sociedade e o indivíduo só poderão aproveitar plenamente as vantagens potenciais do desporto se o fair play deixar de ser uma noção marginal para tornar-se uma preocupação central”, e que “a este conceito deve ser concedida prioridade absoluta por todos aqueles que, directa ou indirectamente, influenciam e promovem a experiência vivida pelas crianças e adolescentes no desporto”. As condutas consideradas antidesportivas influenciam negativamente a opinião pública, descredibilizam o desporto, levam à perda de público, o que, por sua vez, conduz ao afastamento da publicidade, que, como sabemos, é um dos motores financeiros desta indústria.
De acordo com o n.º 2 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que tem como epígrafe, direito a um processo equitativo, “qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.” O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos foi bem claro ao concluir que “… does not therefore regard presumptions of fact or of law provided for in the criminal law with indifference. It requires States to confine them within reasonable limits which take into account the importance of what is at stake and maintain the rights of the defence.”
O significado e interpretação dos princípios constitucionais penais, aquando da sua aplicação a matérias disciplinares, podem, perante uma justa ponderação de interesses, sofrer alguns desvios, desde que dentro de limites razoáveis. No que ao regime disciplinar em causa diz respeito, todos os interesses em jogo são dignos de salvaguarda e não há dúvidas de que a consagração do regime em análise, nos termos já expostos, pode levar à condenação de um clube por comportamento dos adeptos nos casos em que aquele não consiga provar, by a balance of probability, a ausência de ilicitude e/ou culpa. No entanto, entende-se que é bastante difícil, senão mesmo impossível, para a entidade desportiva competente identificar, beyond a reasonable doubt, quem foi o concreto agente dos atos e, consequentemente, a culpa do clube. In casu, se os clubes não fossem sancionados pelos comportamentos dos seus adeptos mediante a aplicação de presunções judiciais as medidas que visam combater a violência associada ao desporto nos recintos desportivos, aquelas não passariam de meras intenções teóricas inexequíveis, comprometendo-se verdadeiramente o alcance dos tão proclamados objetivos.
É evidente que o princípio da presunção da inocência impõe a proibição de o administrado ser “prejulgado”, acusando-o e condenando-o sem a apresentação de provas sobre a configuração, da infração ou sem lhe ser dada a oportunidade de apresentar provas justificativas dessa mesma infração ou do cumprimento da diligência devida. Mas a verdade é que, por via de uma presunção natural de culpa, o clube não tem que fazer prova absoluta da não verificação dos pressupostos legalmente exigidos, bastando-lhe efetuar a contraprova, fundada num mero juízo de probabilidades, não se devendo, em sede disciplinar e após tomar conhecimento da acusação que lhe é dirigida, o clube arguido remeter ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento.
Uma nota quanto ao princípio da proibição do excesso que, por sua vez, se decompõe em três subprincípios: a) princípio da conformidade ou adequação de meios; b) princípio da exigibilidade ou da necessidade; c) princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
Segundo o princípio da conformidade ou adequação, a medida adoptada para a realização do interesse em vista deve ser apropriada à prossecução dos fins a ele subjacentes. Constituirá o regime em análise um meio adequado/idóneo para combater a violência associada ao desporto nos estádios? A resposta é afirmativa, tratando-se de um meio destinado a promover os bens jurídicos referidos, porquanto, para além de constituir uma ameaça sobre os clubes, desincentiva os adeptos a levar a cabo os comportamentos em causa. Apesar de tudo, este meio não é, por si só, bastante para que se alcancem esses objetivos, ou seja, o combate à violência associada ao desporto nos recintos desportivos não depende apenas da aplicação de coimas aos clubes por comportamento dos seus adeptos com recurso às presunções judiciais. É necessária não só a repressão, mas também a prevenção do fenómeno em causa. Não significa isto, porém, que o regime estabelecido seja desadequado ou inidóneo para se atingir aqueles objetivos, existindo uma relação medida-fim adequada, contribuindo aquela para este. Não deixa de ser verdade que com a consagração de um regime menos exigente os adeptos são mais tentados a praticar determinados comportamentos reveladores de violência, como lançar foguetes, deflagrar potes de fumos e rebentar petardos.
Quanto ao princípio da exigibilidade ou necessidade, também conhecido por princípio da menor ingerência possível, esse impõe que para a obtenção de determinados fins não seja possível adoptar outro meio menos oneroso. As normas vertidas nos artigos 183.º, 186.º e 187.º do RDLPFP, juntamente com a consagração de presunções naturais, pode ser um meio idóneo à promoção dos objetivos referidos. Presumindo-se o clube culpado, e invertendo-se o ónus da prova, dificultar-se-ia substancialmente o modo pelo qual este se pode eximir à sanção disciplinar. Contudo, a consagração de uma presunção legal de culpa, que tem como consequência a inversão do ónus da prova, atenta contra o princípio da presunção de inocência - in dubio pro reo - consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, aplicável às sanções disciplinares também por via do princípio do Estado de Direito. Não se torna difícil também avançar hipóteses menos lesivas para os clubes, que não seja por via do recurso a presunções. No entanto, tendo em consideração a dificuldade em identificar os concretos agentes e o modo como os objetos entraram no estádio, a não aplicação de presunções judiciais levaria à não aplicação de qualquer sanção na maioria dos casos o que impossibilitaria alcançar os objetivos propostos, pelo que o regime probatório em análise não é desnecessário aos fins em vista.
Cumpre ainda questionar se o regime legal em análise está de acordo com o princípio da proporcionalidade, em sentido estrito. A luta pela defesa dos referidos objetivos subjacentes ao combate à violência no desporto não pode ser colocada num patamar ou estatuto divino. O fenómeno em causa é hoje complexo, organizado, tendo que beneficiar de medidas educacionais, preventivas e de consciencialização de toda a comunidade. Da mesma forma que é impossível erradicar da sociedade práticas criminosas ou que atentam contra outras regras e bens jurídicos, jamais se poderá aspirar à completa erradicação de práticas violentas do desporto, sendo que o seu combate e prevenção deve deixar respeitados determinados limites por forma a que não se ofendam outros princípios e direitos, também eles fundamentais à luz do nosso ordenamento jurídico.
O combate à violência no desporto tem dignidade constitucional, nos termos do disposto no artigo 79.º da CRP: “Incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e colectividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto.” Por outro lado, as sanções em causa são de natureza não privativas da liberdade aplicadas a pessoas coletivas e não singulares, não se deixando dessa forma beliscado o princípio da presunção de inocência como princípio estruturante e basilar da dignidade da pessoa humana. Por último, os factos dados como provados resultam de um relatório do jogo que goza de uma presunção de veracidade. Assim sendo, os poucos ou quase inexistentes danos eventualmente causados com o recurso às presunções judiciais aplicadas não são desproporcionais aos ganhos que se podem obter no combate à violência associada ao desporto nos recintos desportivos.
Deste modo, para evitar a prática, por parte dos adeptos, de comportamentos antidesportivos torna-se necessário implementar um regime não só de prevenção, mas também de repressão ao fenómeno da violência no desporto. O sancionamento das condutas em causa com a aplicação de coimas aos clubes desincentiva, de alguma forma, a prática pelos adeptos de actos como aqueles acima enunciados. Para os que entendam que o combate à violência associada ao desporto nos recintos desportivos não se encontra, de jure condito, realizado de forma suficientemente eficaz, um caminho possível, de jure condendo, será a previsão de sanções mais severas, como por exemplo, a interdição dos estádios, sendo certo que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre tal matéria e em sentido favorável, conforme acórdão acima citado (Acórdão n.º 735/95).
Por sua vez, a consagração de presunções judiciais apenas pode, eventualmente, “beliscar” a segurança jurídica nas escassas situações em que o clube não conseguiu criar no julgador a dúvida sobre a ilicitude ou a sua culpa. Tal limitação torna-se, no entanto, bastante razoável tendo em consideração a eficácia na promoção do combate à violência associada ao desporto que estas medidas podem alcançar.
"I - A verdade a que se chega no processo não é a verdade verdadíssima, mas uma verdade judicial e prática, uma «verdade histórico-prática e, sobretudo, não [é] uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida». Tratar-se de uma verdade aproximativa ou probabilística, como ocorre com a toda a verdade empírica, submetida a limitações inerentes ao conhecimento humano e adicionalmente condicionada por limites temporais, legais e constitucionais. Assim, numa indagação racional sobre o mundo e o homem, a verdade material consiste na conformidade do pensamento ou da afirmação com um dado factual, material ou não.
II - A doutrina tem agasalhado e compactado o critério operante de origem anglo-saxónica, decorrente do princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência (cf. n.º 2 do artigo 32.º da CRP) e com base no qual o convencimento do tribunal quanto à verdade dos factos se há-de situar para além de toda a dúvida razoável.
III - A dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given) poderá consistir na dúvida que seja “compreensível para uma pessoa racional e sensata”, e não “absurda” nem apenas meramente “concebível” ou “conjectural”. Nesta óptica, o convencimento pelo tribunal de que determinados factos estão provados só se poderá alcançar quando a ponderação conjunta dos elementos probatórios disponíveis permitirem excluir qualquer outra explicação lógica e plausível.
IV - Contrariamente ao que acontece v.g. com o n.º 2 do artigo 192.º, do Código de Processo Penal Italiano que estatui que “a existência de um facto não pode ser deduzida de indícios a menos que estes sejam graves, precisos e concordantes” a nossa lei adjectiva penal não regula os pressupostos específicos para a operacionalidade da prova indiciária.
V - Os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados pelo Tribunal de julgamento em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido/acusado, também, quer os indícios da própria inocência, ou seja os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o arguido/acusado e o crime, quer os “contra indícios”, isto é, os indícios de cariz negativo que a partir de máximas de experiência, exaurem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo. Se existe a possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível descoincidente, dever-se-á sempre aplicar a mais favorável ao arguido/acusado, de acordo com o princípioin dubio pro reo."
Entende-se que cabe ao clube ou SAD demonstrar a inexistência dos pressupostos da punição, nomeadamente o que em concreto fez para que os comportamentos dos seus adeptos não tivessem ocorrido, designadamente a entrada de petardos e foguetes no estádio, bem como o que de concreto fez para se poder concluir que o clube não agiu com a culpa evidenciada pelos referidos comportamentos. Ao clube cabe provar que foram efetuados esforços para o cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, é certo, não sendo imune a falhas, levasse à conclusão de que estas ocorrências se teriam verificado a título excecional. Não fazendo o clube essa demonstração devem considerar-se verificados os pressupostos de que depende a aplicação das sanções.
Neste sentido tenha-se presente a jurisprudência unânime do STA, sendo já vários os acórdãos que apontam todos no mesmo sentido acima exposto.
“I - A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos artigos 2.º, 20.º, n.º 4 e 32.º n.ºs 2 e 10 da CRP e os princípios da presunção de inocência e doin dubio pro reo.
III - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no artigo 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
IV - A responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser,in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.”
O regime probatório descrito constituiu um meio de promover e proteger os bens jurídicos referidos, porquanto, para além de constituir uma ameaça sobre os clubes, desincentiva os adeptos a levar a cabo os comportamentos em causa. Apesar de tudo, este meio não é, por si só, bastante para que se alcancem esses objetivos, pois o combate à violência associada ao desporto nos recintos desportivos não depende apenas da aplicação de coimas aos clubes por comportamento dos seus adeptos com recurso às presunções judiciais. É necessária não só a repressão, mas também a prevenção do fenómeno em causa, designadamente por via de ações de formação e sensibilização da população em geral e dos adeptos em particular.
2.3. O não sancionamento dos clubes ou das SAD visitantes
A presente orientação jurisprudencial assenta no acompanhamento mitigado da anteriormente descrita, entendendo que o clube visitante não pode ser responsabilizado por comportamentos dos seus adeptos, desde logo por sobre ele não impenderem deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência enquanto participante no espetáculo desportivo, maxime, no jogo, não sendo o seu organizador e promotor, uma vez que a manutenção da segurança nos recintos desportivos cabe aos clubes visitados - “compete aos clubes na qualidade de visitados ou considerados como tal, assegurar a manutenção do ordem e disciplina dentro do seus recintos e no anel ou perímetro de segurança, antes, durante e após os jogos nele realizados, mediante policiamento e vigilância adequados, tendo em vista que os jogos deverão decorrer de acordo com a ambiente de correcção e lealdade exigível de qualquer manifestação desportiva” (cfr. artigos 3.º, al. f) e 49.º do Regulamento das Competições Desportivas da LPFP; artigos 3.º al k) e 8.º da Lei n.º 39/2009).
Assim sendo, penalizar o clube visitante pelos comportamentos dos seus adeptos configuraria, ao arrepio dos comandos constitucionais, o seu sancionamento por via de uma responsabilização disciplinar objectiva, sem culpa, sem que na sua esfera jurídica incidissem deveres in vigilando para evitar tais condutas ilícitas dos adeptos.
O clube ou SAD apenas pode ser sancionada enquanto visitada quando tenha violado deveres a cujo cumprimento se encontra, nessa qualidade, adstrita.
3. A eficácia do sancionamento dos clubes e das SAD
Aqui chegados, é, obviamente, inquestionável a relevância da implementação das medidas de prevenção e combate à violência no Desporto e, em caso de violação da respetiva lei e dos correspondentes regulamentos federativos, o sancionamento dos seus autores. A aplicação de sanções tem de assegurar as finalidades de prevenção geral e especial que lhes estão subjacentes. Nesse sentido, os autores de comportamentos desviantes do respeito pelas referidas normas devem sentir os efeitos das sanções que sejam aplicadas aos clubes quando provada a prática de determinados actos proibidos por parte dos seus adeptos e a violação culposa dos deveres que a estes se impõem, circunstância que não nos parece que suceda por via da aplicação exclusiva de sanções de natureza pecuniária.
A questão concreta quanto ao sancionamento dos clubes ou SAD pelos comportamentos dos seus adeptos é a de saber se a forma como tem vindo a ser decidida, em última instância e de forma unânime pelo STA, se tem revelado eficaz, concretamente se tem provocado uma redução de tais condutas e do consequente número de processos disciplinares instaurados pelos órgãos federativos de disciplina. Parece que não, circunstância evidenciada, no caso do futebol, até ao momento da presença do público nos recintos desportivos, pelos relatos visionados e escritos de tais ocorrências (petardos, potes de fumos, agressões, arremesso de isqueiros e outros objectos, cuspidelas, entre outros), como também por via do aumento do número de processos disciplinares, conforme registo constante no Relatório do Conselho de Disciplina da FPF 2016-2020 (pags. 16, 19, 27 e 35). Afigura-se, portanto, que as decisões sancionatórias proferidas contra os clubes no âmbito do combate e prevenção à violência do desporto não se vêm revelando eficazes e dissuasoras dos comportamentos antidesportivos dos seus adeptos.
São conhecidas e de aplaudir algumas das medidas em vigor para a prevenção da violência no Desporto, tanto por via da adequação dos normativos sancionatórios a tal desiderato, como sucedeu com as alterações introduzidas, em Setembro de 2019, ao regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos (Lei n.º 39/2009), bem como com a criação da Autoridade Para a Proteção e Combate à Violência no Desporto - APCVD (Decreto Regulamentar n.º 10/2018, de 3 de outubro) - que tem por missão a prevenção e fiscalização do cumprimento do regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos em segurança e de acordo com os princípios éticos inerentes à sua prática - como por parte das entidades federativas e dos clubes/SAD, com o apoio das forças policiais, sensibilizando e formando activa e pedagogicamente os adeptos e a população em geral para o fenómeno da violência, (i) promovendo os valores éticos do desporto, como a cooperação, o respeito, a solidariedade e a tolerância através de medidas e programas de promoção de boas práticas, (ii) definindo e implementando concretas e efectivas medidas de segurança e proteção dos utentes dos recintos desportivos, (iii) emitindo regulamentos nos termos dos quais os sócios, adeptos ou simpatizantes possam ser punidos, (iv) a inscrição de slogans ou dizeres no interior e exterior dos recintos de jogo apelando ao comportamento cívico e ordeiro dos adeptos, (v) a divulgação de campanhas publicitárias sobre a temática da violência no desporto com a participação dos atletas e adeptos ou, ainda, (vi) o não incitamento à violência ou à intolerância por via de qualquer concreto comportamento antes, durante e depois do jogo, enfim a adopção de práticas que concorram para a prevenção de condutas violentas, racistas e xenófobas dos adeptos, sócios ou simpatizantes.
E, claro, em caso de comprovada violação culposa da respetiva lei e dos correspondentes regulamentos federativos verificada no âmbito de processos disciplinares com a recolha de factos disso reveladores, devem ser sancionados os seus autores, neles podendo ser naturalmente incluídos os clubes ou SAD culposamente inadimplentes - adoptando formas mais eficazes e dissuasoras de sancionamento, como sucede com os jogos à porta fechada ou interdição temporária de os autores poderem entrar no estádio - só assim, a sanção dos referidos comportamentos poderá ter em vista os impostos fins de prevenção, servindo, a um mesmo tempo, de incentivo a que todos os clubes cumpram os deveres legais de vigilância e prevenção que sobre eles impendem (em resultado de concretos deveres legal e regulamentarmente previstos) - prevenção geral - e para que o clube e os adeptos sancionados não repitam o comportamento censurado - prevenção especial.
4. Quatro breves notas finais
É pacífico o entendimento no que diz respeito a que a responsabilidade dos clubes por comportamentos de adeptos é subjectiva, pressupondo uma actuação culposa.
É, também, pacífico que sobre os clubes e as SAD incidem deveres in vigilando e in formando destinados ao combate e prevenção ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, assegurando que os mesmos decorram num ambiente seguro de correcção, lealdade e respeito.
A diferença de entendimento entre a jurisprudência do TAD, o TCA Sul e do STA no âmbito da responsabilidade dos clubes desportivos por comportamentos de adeptos, reside, essencialmente, sobre quem incide o ónus da prova, mais concretamente sobre a possibilidade de recurso às presunções judiciais, naturais, com baso da experiência da vida, para demonstrar o (in)cumprimento dos deveres que são legalmente impostos aos clubes, nomeadamente de formação e de vigilância dos seus adeptos.
As entidades federativas e os clubes e as SAD, com o apoio das forças policiais, devem sensibilizar e formar, de modo pedagógico e eficaz, designadamente através dos mais variados e influentes veículos comunicacionais à sua disposição, a população em geral, e os grupos organizados de adeptos em particular (claques), para o flagelo da violência no desporto, investindo numa abordagem preferencialmente preventiva ao fenómeno em causa.