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Cadernos do Arquivo Municipal
versão On-line ISSN 2183-3176
Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.6 Lisboa dez. 2016
ARTIGO
Habitar no coletivo: um prédio de apartamentos “futurista”, na Lisboa de 1930
Living collectively: a “futurist” apartment building in 1930 Lisbon
Maria Helena Barreiros*
RESUMO
Desenhado em 1935 pelo arquiteto João Simões (1908-1994) e o engenheiro José Belard da Fonseca (1889-1969), o n.º 26 da avenida Casal Ribeiro, no enfiamento visual da rua Actor Taborda, continua a surpreender-nos pela sua plasticidade futurista. A encomenda coube a Ricardo Covões (1881-1951), empresário do Coliseu dos Recreios, então a mais importante sala de espetáculos de Lisboa.
Por detrás da fachada de 5 pisos, dispõe-se uma dezena de fogos de dimensões contidas, aptos a acolher algum tipo de ofício no grupo de salas da frente, servidas por área de circulação autónoma. Aconteceu no 3.º esquerdo, casa de modista da era anterior ao pronto-a-vestir, onde podemos ainda surpreender uma sala de prova com o seu triplo espelho de parede, ou uma cozinha que se acomodou, com dificuldade, ao enorme frigorífico Kelvinator dos anos 1950.
O texto que se segue pretende esclarecer as opções programáticas e de desenho deste edifício peculiar das Avenidas Novas e acompanhar-lhe o percurso de vida, antes do términus que se adivinha. Quase devoluto, mostrando sinais de deterioração, encontra-se em situação de descontinuidade urbana, enquadrado por dois edifícios de uso terciário com cércea dupla da sua.
PALAVRAS-CHAVE
João Simões / Habitação entre-guerras / Prédio de rendimento / Organização funcional / Modernismo
ABSTRACT
Architect João Simões (1908-1994) and civil engineer José Belard da Fonseca (1889-1969) designed this apartment building in 1935. It stands in front of our eyes as we drive along Actor Taborda street towards Casal Ribeiro avenue. Its futurist forms still surprise us. It was commissioned by Ricardo Covões, the manager of Coliseu dos Recreios, a major Lisbon concert hall at the time.
Behind a five storey façade, there are ten small flats where it was possible to develop some professional activities in the front rooms, which were served by an autonomous circulation area.Such was the case of the 3rd floor, on the left side, a house of a dressmaker of the 1950's-60's, before the prêt-à-porter era. There we still can find the fitting room and its triple wall mirror and a kitchen, too small to embrace the huge Kelvinator fridge from the same period.
The text aims at understanding the programme and design choices for this peculiar building of the Avenidas Novas (New Avenues), in Lisbon, along with its history which is probably coming to an end soon.
KEYWORDS
João Simões / Interbellum housing / Rental apartment / Distribution / Modernism
O CONTEXTO URBANO
O edifício em análise situa-se na avenida Casal Ribeiro, uma das radiais que confluem na praça Duque de Saldanha, em Lisboa, aberta e urbanizada a partir dos primeiros anos do século XX.
A avenida Casal Ribeiro integra o plano de expansão da cidade iniciado em 1879 com a demolição do Passeio Público para dar lugar ao leito da avenida da Liberdade, iniciativa posteriormente consolidada e desenvolvida através do projeto da “avenida das Picoas ao Campo Grande e ruas adjacentes” (1888)1.
Marco fundamental na história urbanística de Lisboa, o plano de extensão de Lisboa delineado no final do século XIX, foi coordenado pelo engenheiro Frederico Ressano Garcia (1847-1911), diplomado pela École Impériale des Ponts et Chaussées, em Paris, na época em que esta cidade era objeto da reforma urbana haussmanniana. O plano Ressano Garcia levou os limites da cidade do Rossio até ao Campo Grande, através da definição do seu “eixo central” (avenidas Liberdade, Fontes Pereira de Melo, República, Campo Grande) com inflexão para nordeste na praça do Marquês de Pombal, respetivas vias paralelas e transversais, configurando a rede ortogonal articulada por rotundas, popularizada sob a designação de “Avenidas Novas”.
O plano incluiu o inerente processo de loteamento e venda de parcelas para construção (Figura 1) destinada a ampliar o parque habitacional da cidade, através dos dois tipos canónicos da cidade dita “burguesa”: o prédio de andares para aluguer, ou “prédio de rendimento”; a habitação unifamiliar nas suas diversas modalidades, da pequena moradia ao palacete.
A urbanização das Avenidas Novas decorreu lentamente, entre as décadas de 1900 e 1930, como comprova o exame da planta da cidade de 1904-112. Os lotes então construídos na avenida Casal Ribeiro concentravam-se junto à praça duque de Saldanha (Figura 2). O levantamento da cidade dito de 1950, mostra, por fim, o tecido urbano das Avenidas Novas já quase totalmente preenchido, incluindo os quarteirões entre as praças do Saldanha e do Arco do Cego (Figura 3).
As transformações ocorridas em Lisboa a partir da década de 1960, designadamente a terciarização do eixo central assumida no plano diretor de 1967-77, acarretaram um processo de densificação das Avenidas Novas patente na vaga de demolições e de substituição do edificado – casuística, ou segundo estudos urbanos mais ou menos avulsos promovidos pela edilidade – de que a avenida Casal Ribeiro constitui, hoje, um dos muitos exemplos (Figura 4) (Figura 5).
PROGRAMA, DATAÇÃO E AUTORIAS
O edifício em estudo (Figura 6), concebido e desenhado na década de 1930, constitui, ainda, uma das múltiplas declinações do prédio de rendimento lisboeta, assumido como tipo e modelo3 de habitação urbana com a reconstrução pombalina.
Compõe-se de rés-do-chão e 4 andares, com dois fogos por piso, incluindo um piso térreo de uso invulgarmente misto, habitacional e comercial (Figura 7). Foi projetado em 1935 pelo arquiteto João Simões e pelo engenheiro José Belard da Fonseca, para um lote estreito e profundo (c. 30 x 12m), entre uma garagem, a norte, e um edifício industrial, a sul (cf. fig. 4 e memória descritiva do projeto). A construção iniciou-se em 1936 e ficou concluída em 19374, com o contributo de um segundo engenheiro civil, Paulo de Almeida Freitas.
Ambos os técnicos autores do projeto são figuras reconhecidas nos meios da engenharia e da arquitetura portuguesa do século XX. O proprietário e encomendador da obra também não é propriamente um desconhecido: trata-se de Ricardo Covões (1881-1951), figura destacada na sociedade lisboeta de entre-guerras. Republicano convicto e empenhado, foi jornalista, vereador, deputado e, sobretudo, o mítico empresário do Coliseu dos Recreios entre 1918 e a data da sua morte, em 1951, num acidente de automóvel5.
João Simões (1908-1994) integra a geração de arquitetos, nascida entre o final do século XIX e o início de XX, que inicialmente adere às correntes modernistas, dedicando-se à experimentação das potencialidades plásticas do novo material de construção que entretanto se divulga, o betão armado6. Menos citado e estudado que os seus colegas Porfírio Pardal Monteiro, Luís Cristino da Silva, Carlos Ramos, Cottinelli Telmo, Cassiano Branco, Jorge Segurado, entre outros, João Simões partilha com eles o percurso que os conduz do “efémero modernismo” (Nuno Portas) das décadas de 1920-30 à arquitetura do Estado Novo no seu apogeu, sinalizado pela Exposição do Mundo Português (Belém, 1940).
Entre os seus trabalhos mais referidos figuram os Armazéns Frigoríficos de Alcântara, 1938 (atual Museu do Oriente), o Museu de Arte Popular, em Belém (1940), o antigo estádio da Luz, inaugurado em 1954 e demolido em 2003, a praça do Marquês de Pombal, 1957, em co-autoria com Carlos Chambers Ramos e Carlos M. Ramos7, a Escola de Enfermagem do Instituto Português de Oncologia, para além de outros edifícios de habitação plurifamiliar. Dois deles, de sólido desenho neo-joanino, foram distinguidos com os prémios Valmor e Municipal de Arquitetura na década de 1940. Outro prédio de João Simões, não assinalado na bibliografia compulsada, situa-se na atual avenida das Forças Armadas, n.º 49, em Lisboa. No projeto deste prédio de rendimento de 1950, construído na então avenida 28 de Maio, é patente o esforço de articulação entre uma conceção volumétrica e linguagem modernas e a expressão tradicionalista, dominante na década de 19408.
A atividade de João Simões não se limitou à capital. Assinou diversos projetos de agências da Caixa Geral de Depósitos no país9 e foi o autor da única comunicação dirigida ao I Congresso Nacional de Arquitetura de 1948 sobre a questão da arquitetura nas colónias africanas. Integrava, por essa altura, a primeira geração dos arquitetos modernistas do Gabinete de Urbanização Colonial, criado em 194410.
Por sua vez, o engenheiro José Belard da Fonseca (1889-1969), que assina os desenhos de projeto e a memória descritiva deste prédio da avenida Casal Ribeiro, para além de uma notável carreira de projetista, em que colaborou com Cristino da Silva e Porfírio Pardal Monteiro nos projetos modernistas do Teatro Capitólio (1925/29), do Instituto Nacional de Estatística (1931) e da igreja de Nossa Senhora de Fátima (1933/34), em Lisboa, foi professor catedrático do Instituto Superior Técnico, seu diretor (1942-1958), vice-reitor da Universidade de Lisboa, presidente da Ordem dos Engenheiros, entre outros cargos que desempenhou.
COMPOSIÇÃO DOS ALÇADOS
O desenho do alçado principal conheceu duas versões (Figura 8), quase simultâneas, ambas assinadas por João Simões e Belard da Fonseca (AML, Obra n.º 49408, processo n.º 1425/DAG/PG/1935). A primeira versão é datável de abril de 1935 (primeira memória descritiva, f. 13). A segunda é anterior a 27 de junho de 1935, data de um parecer do Conselho de Arquitetura referindo um “novo projecto que faz parte do processo junto” (f. 2). O projeto final será aprovado pelo Serviço de Edificações Urbanas em 13 de setembro de 1935, com despacho de 19 do mesmo mês11. A construção só se iniciará no ano seguinte, já com o contributo do segundo engenheiro civil envolvido no processo (ver adiante).
Figura 9
Lamentavelmente, o processo conservado no Arquivo Municipal de Lisboa não está completo e não conhecemos a justificação da alteração do alçado principal12, que introduziu as bow windows no alçado principal, marca identitária deste prédio da avenida Casal Ribeiro.
A análise deste processo de obra do Arquivo Municipal, como de muitos outros, confirma o caráter de work in progress do exercício da profissão de arquiteto, tal é a frequência das alterações aos primeiros projetos apresentados durante os licenciamentos e, por vezes, também em curso de obra.
O edifício, de rés-do-chão e 4 andares, “de harmonia com o prédio anexo e com o que é permitido pela largura da Avenida” (memória descritiva)13, apresenta alçados desornamentados, de composição simétrica e “geometria depurada e elementarista” (Martins, 2002). Na fachada principal, a horizontalidade das “caixas” das varandas laterais, cobertas por pala, é simultaneamente acentuada e contrariada pelo expressivo conjunto das 4 bow windows centrais (cf. fig. 6), repetido em todos os andares segundo um eixo vertical contínuo que se prolonga acima da cobertura em terraço, configurando a respetiva guarda (Figura 10). Invisível da rua, este aspeto ilustra a aposta no" betão integral" assumido como estrutura, articulação e forma.
A fachada principal do prédio da avenida Casal Ribeiro n.º 26 denota, por outro lado, conhecimento do debate arquitetónico entre-guerras do qual o Movimento Moderno virá a emergir, designadamente o conflito entre ornamento e função e a experimentação das potencialidades plásticas do betão – aplicados, neste caso, à resolução de um programa habitacional corrente, o prédio de aluguer. Comprova-o a seguinte passagem da memória descritiva, em que, de modo ainda titubeante, são aflorados alguns dos principais temas da arquitetura moderna:
As fachadas do edifício pelo seu arranjo e simplicidade, pelos materiais empregados, pelo racionalismo e continuidade dos elementos que lhe dão interesse em conjunto, exprimem a sua natureza de construção económica e de certo caracter colectivo (memória descritiva do projeto, sublinhados nossos)14.
João Simões e José Belard da Fonseca antecipam, neste passo, questões que os arquitetos portugueses só retomarão depois da II Guerra Mundial, no 1º Congresso Nacional de Arquitetura (1948) no qual o primeiro participará ativamente15. Entre elas estão o primado do racionalismo funcionalista e o papel reivindicado para a arquitetura na construção da sociedade através, entre outros, da aposta na habitação coletiva como solução para o alojamento do “maior número”.
Os alçados laterais, de extrema simplicidade, contemplam um pequeno saguão regulamentar a meio do lote, permitindo a iluminação direta de todos os compartimentos, com uma única exceção nos andares. A fachada de tardoz, aberta pelos generosos vãos da sala de jantar e da cozinha, teria sido marcada pelo corpo cilíndrico de uma escada de incêndio em betão. Esta solução, coerente com as premissas do projeto, foi preterida em curso de obra em favor de umas escadas em estrutura metálica, ainda correntes na época (1937)16.
CIRCULAÇÃO VERTICAL E PLANIMETRIA
O vestíbulo do prédio, de dimensões reduzidas, adequadas à rentabilização de um pequeno lote urbano para habitação, conduz a uma caixa de escadas em betão, com guardas metálicas de desenho modernista, iluminada por vão aberto para o vestíbulo no primeiro patim e por ampla clarabóia no terraço (Figura 11). O revestimento do teto do vestíbulo e das paredes reflete o gosto dominante na época de construção, ainda que o rés-do-chão tenha sido posteriormente revestido com azulejos da década de 1970.
Em cada patamar abrem-se cada uma das duas portas de acesso aos andares esquerdo e direito. Do ponto de vista planimétrico, sobressai a extrema racionalidade e a rentabilização do máximo de área disponível nas habitações (Figura 12). O edifício consegue assim acolher dez fogos, esquerdo e direito, segundo o tipo corrente na 2.ª metade do século XIX e primeira de XX, com a particularidade de um rés-do-chão onde convivem habitação e comércio. A organização dos fogos e espaços comerciais é rigorosamente simétrica, em concordância com o partido arquitetónico tomado para as fachadas.
Nos andares, um longo corredor de 1,20m de largura por c. 12m de comprimento, entre a porta de entrada e a cozinha (Figura 13), articula o conjunto “orgânico” das 4 dependências da frente (quartos e saleta/escritório) com os compartimentos nas traseiras. O estreitamento da área útil pela inserção dos saguões é aproveitado para as instalações sanitárias e uma despensa/arrumos, dotadas de iluminação natural. A tardoz, situam-se um último quarto, aberto para o saguão, e a sala de jantar, com marquise envidraçada, contígua à cozinha (Figura 14 a 16).
Figura 14
Figura 15 e 16
O núcleo de aposentos junto à frontaria merece referência particular, pela singularidade da sua distribuição (Figura 17 a 19). Situado junto ao único acesso à habitação desde a escada principal, não contempla o tradicional compartimento aberto diretamente para esta17, que se tornou característico dos andares direitos do prédio de rendimento em Lisboa, a partir do período pombalino até, pelo menos, à década de 1950.
O conjunto compõe-se de 3 aposentos intercomunicantes, dispostos no mesmo eixo entre o saguão e a frontaria, o último dos quais abre para a varanda (Figura 18). É completado por um 4.º aposento, de pequena área, “destinado a escritório”, amplamente aberto ao anterior e cuja dupla bow window comunica, por sua vez, com a varanda (Figura 19). Segundo a memória descritiva, os dois compartimentos sobre a avenida poderiam ser utilizados isoladamente ou em conjunto, de acordo com o “critério modernamente adoptado para a sala-escritório”18. Dotado de vestíbulo e corredor (Figura 17) próprios, permitindo uma circulação alternativa que preserva a privacidade dos compartimentos, este núcleo poderia acolher algum tipo de atividade profissional dentro da habitação, como parece ter acontecido no 3.º andar direito, muito provavelmente alugado a uma modista. A dada altura, a sala de prova terá transitado para a sala de jantar, nas traseiras, certamente pela sua maior área e condições de iluminação natural, como indicia o grande espelho tripartido que ainda lá se encontra (cf. Figura 14).
SISTEMA CONSTRUTIVO E ALTERAÇÕES POSTERIORES
Como já foi referido, de acordo com a documentação consultada no Arquivo Municipal, o edifício foi inteiramente construído em estrutura de betão armado, com o contributo do eng. José Belard da Fonseca, co-autor do projeto de arquitetura, que executou os primeiros cálculos de estruturas19.
O contributo de Belard da Fonseca não pode ser avaliado completamente, uma vez que em maio de 1936 foram retirados do processo de licenciamento de 1935 alguns elementos relativos ao projeto de estruturas (cf. supra), cujo paradeiro atual ignoramos. Em junho do mesmo ano, os “trabalhos de cimento armado” passam a ser assegurados pelo engenheiro civil Paulo de Almeida Freitas, inscrito na CML com o n.º 47, cujo termo de responsabilidade data de 12 de junho de 1936, tendo vigorado até fevereiro de 193720.
Do ponto de vista construtivo, recorreu-se também a estruturas metálicas, designadamente nas escadas de salvação e na claraboia, e no encerramento dos vãos das salas de jantar e cozinhas, soluções correntes na época.
O edifício não sofreu alterações muito significativas, exceto no 2.º andar direito, entretanto transformado para acolher um uso terciário. Constaram de demolição de duas paredes interiores, rasgamento de vãos para o saguão e outras intervenções menores, não licenciadas, realizadas c. 197721.
O fecho de algumas das varandas e a substituição relativamente recente das caixilharias primitivas das bow windows, mais segmentadas e acompanhando harmoniosamente a curvatura dos vãos, empobreceu a leitura da fachada original. A pala de desenho e dimensões desadequados, aposta sobre a fachada do único espaço comercial em funcionamento no rés-do-chão (tabacaria), perverteu igualmente a leitura do exterior do rés-do-chão.
PRIMEIRAS CONCLUSÕES
ASPETOS HISTÓRICOS, DISPOSITIVOS ARQUITETÓNICOS E CONSTRUTIVOS A DESTACAR
São de salientar o arrojo e radicalidade do projeto, sobretudo expressos na composição funcionalista da primeira versão do alçado principal (cf. fig. 8) – “form follows function”22 –, superando o jogo de formas e volumes, mais ou menos desenvolto, que caracteriza o primeiro modernismo português, especialmente patente na sua resposta à encomenda privada. Veja-se, por exemplo, os alçados desenhados por Cassiano Branco para prédios de rendimento construídos em Lisboa, na década de 193023.
A questão do sistema construtivo é relevante e articula-se com a anterior, pela potenciação das propriedades plásticas do novo material, o betão. Testemunha, neste prédio da avenida Casal Ribeiro, a sua difusão na arquitetura corrente, de promoção privada, e a sua especificidade é plenamente assumida pelos projetistas. A opção inicial pelo betão armado “integral” acabou, no entanto, por ser contrariada por alterações pontuais ao projeto original de 1935 (escadas de salvação e clarabóia, desenhadas em 1937, já em curso de obra).
Tal como no caso de Cassiano Branco, a resolução planimétrica dos interiores do edifício em análise, filia-se ainda, e no entanto, no tipo do prédio de rendimento dito “burguês”, pese embora a fluidez e continuidade espaciais pretendidas para o núcleo dos compartimentos voltados para a avenida.
Saliente-se, por fim, o pendor “igualitário” da resolução dos interiores, ditado tanto pela rentabilização máxima do reduzido lote disponível, como pela intuição dos valores positivos de uma arquitetura “social”, destinada ao “maior número” – certamente partilhados pelo promotor, representado entre o grupo de cidadãos ilustres que aclamam entusiasticamente a república na praça do Município, representados por Veloso Salgado em 191324(Figura 20).
O prédio documenta, nas Avenidas Novas, na Lisboa de 1935, a antecipação dos debates fraturantes do Congresso de Nacional de Arquitetura de 48, em que radicará a adesão massiva dos arquitetos portugueses ao Movimento Moderno no decurso da década seguinte.
Já a linha curva e os volumes cilíndricos introduzidos na segunda versão do alçado principal, filiam-se nos exercícios formais do modernismo de entre-guerras. Em Lisboa, surgem na obra de Cassiano Branco, por exemplo, nos muito celebrados projetos para o teatro Éden (2.ª versão, 1931)25, ou no hotel Vitória, ambos no eixo da avenida da Liberdade. A data de projeto do hotel Vitória coincide, aliás, com a do prédio de João Simões na avenida Casal Ribeiro: 193526. Há nesta opção de desenho, de João Simões, um certo artifício cosmopolita a que não são alheios a época e o meio social e cultural em que se movem projetistas e encomendador. Tanto os projetistas envolvidos, como a figura proeminente na vida política, social e cultural de Lisboa do seu encomendador, Ricardo Covões, são fatores de diferenciação adicionais a considerar face a este edifício peculiar da avenida Casal Ribeiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fontes
Arquivo Municipal de Lisboa
“Lotes de terreno que vão à praça no dia 4 de Junho próximo nos Paços do Concelho à 1 hora”, entre a praça Saldanha e o Campo Pequeno, 1905-06. PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/09/01449.
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Desfile de forças policiais na avenida Casal Ribeiro, 1926. PT/AMLSB/EFC/002228.
Setor sul da avenida Casal Ribeiro em 1964. Fotografia A. Madureira, PT/AMLSB/ARM/S01003.
Gabinete de Estudos Olisiponenses
CML/IGC, Levantamento de Lisboa, 1950-1959, esc. 1:1000.
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submissão/submission: 11/03/2016
aceitação/approval: 16/09/2016
NOTAS
* Maria Helena Esteves Diniz Barreiros é historiadora de arte pela Universidade Nova de Lisboa, mestre em Conservação do Património Arquitetónico pela Universidade Católica de Lovaina e pós-graduada em Arquitetura, Território e Memória pela Universidade de Coimbra. Exerceu funções técnicas e de coordenação na extinta Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (2002-2006) e de docência na área de história de arquitetura no Departamento de Arquitetura da Universidade Autónoma de Lisboa (2000-2013). Integra o quadro técnico do Pelouro do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa. Autora de diversos trabalhos publicados, prepara tese de doutoramento em História da Arquitetura sobre o tema da habitação multifamiliar em Portugal. Fez parte da direção da Associação Portuguesa de Historiadores de Arte (2009-2012) e é membro da EAHN (European Architectural History Network). Correio eletrónico: mhbar2@gmail.com
1Cf. SILVA, Raquel Henriques da, coord. – Lisboa de Frederico Ressano Garcia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p. 66-67.
2Cf. a propósito, SILVA, Raquel Henriques da – Das Avenidas Novas à Avenida de Berna. Revista de História da Arte. Lisboa: IHA/Colibri. N.º 2 (2006).
3 Sobre a teorização e a problematização dos conceitos de tipo e modelo em arquitetura, ver FERNANDES, Francisco Barata – Transformação e permanência na habitação portuense: as formas da casa nas formas da cidade. Porto: FAUP, 1999. p. 30 e seg.
4 A licença para armação de andaimes é solicitada à CML em dezembro de 1936 e a vistoria para habitação, findas as obras, em maio de 1937. Cf. AML, Obra n.º 49408, processos n.ºs 1626/1936 e 6484/1937.
5 Cf. PORTELA, Artur – Ricardo Covões: a sua vida e a sua obra. Lisboa: [s.n.], 1951.
6 O primeiro regulamento de betão armado e a primeira publicação sobre o tema em português datam ambos de 1918. O primeiro foi aprovado pelo decreto n.º 4036, de 3 de abril (Higino, 2013). O autor do segundo, o engenheiro João Emílio dos Santos Segurado, foi pai do arquiteto Jorge Segurado.
7 Cf. AGAREZ, Ricardo – O moderno revisitado: habitação multifamiliar em Lisboa nos anos de 1950. Lisboa: Câmara Municipal, 2009. p. 281.
8 AML, Obra n.º 889, processo n.º 33864/1950, f.11-12. O edifício foi fotografado pouco depois da construção pelos estúdios Mário Novais. Cf. Biblioteca de Arte – Fundação Calouste Gulbenkian.
9 Cf. BRITES, Joana – O capital da arquitectura: Estado Novo, arquitectos e Caixa Geral de Depósitos, 1929-1970. Lisboa: Prosa Feita, 2014.
10 Estão documentadas obras suas de promoção pública, construídas na Guiné ao serviço do Gabinete de Urbanização Colonial. Cf. MILHEIRO, Ana Vaz – Nos trópicos sem Le Corbusier: arquitectura luso-africana no Estado Novo. Lisboa: Relógio de Água, 2012. p. 260 e seg.
11 Cf. Obra n.º 49408, processo n.º 1425/DAG/PG/1935, f. 38 (aprovação pelo Serviço de Edificações Urbanas), e processo n.º 6484/1937, f. 6 (auto de vistoria para habitação, que faz menção ao despacho final da CML).
12 Um documento emitido pelo Pelouro de Finanças da CML, 2.ª repartição, Secção de Impostos informa que foram retirados do processo as folhas 10-12, 14, 20, 36-37, correspondentes a “3 cálculos [de estruturas], 2 memórias descritivas e 3 marions [3 desenho em papel «Marion»] ”. AML, Obra n.º 49408, processo n.º 1425/DAG/PG/1935, f. 40.
13 AML, Obra n.º 49408, processo n.º 1425/DAG/PG/1935, f. 13-13v.
14 Memória descritiva do projeto, sublinhados nossos. AML, Obra n.º 49408, processo n.º 1425/DAG/PG/1935, f. 13. Reportamo-nos à única memória descritiva geral do projeto conservada no AML, à sua primeira versão, portanto. Os princípios gerais são, no entanto, aplicáveis a ambas as versões.
15 CONGRESSO NACIONAL DE ARQUITECTURA, 1, Lisboa, 1948; SINDICATO NACIONAL DE ARQUITECTOS, org.; ORDEM DOS ARQUITECTOS, ed. lit.; TOSTÕES, Ana, ed. lit. - Relatório da comissão executiva, teses, conclusões e votos do congresso. Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 2008.
16 AML, Obra n.º 49408, processo n.º 10818/PET/1937, f. 2.
17 Frequentemente referido pela designação ambígua de “quarto independente”, originalmente, destinava-se a utilização profissional pelo locatário. Durante o século XVIII, os prédios pombalinos de andares esquerdo e direito previam a sua existência em todos os fogos. Os pisos térreos não tinham, então, utilização habitacional. Ao longo do século XIX e primeiras décadas de XX, a presença deste compartimento é mais frequente nos andares direitos, aproveitando o vão na prumada dos vestíbulos dos prédios.
18 Memória descritiva do projeto. AML, Obra n.º 49408, processo n.º 1425/DAG/PG/1935, f. 13.
19 Cf. AML, Obra n.º 49408, processo n.º 1425/DAG/PG/1935, f. 7-9. Regista-se também a identificação do empreiteiro: José Borges Gouveia, inscrito como o construtor n.º 257.
20 Cf. AML, Obra n.º 49408, processo n.º 372/PET/1937, f. 1-2.
21 Cf. AML, Obra n.º 49408, processo n.º 912/I/1979.
22 Fórmula cunhada pelo arquiteto norte-americano Louis Sullivan, em 1896, fundador da Escola de Chicago, de quem Frank Lloyd Wright foi discípulo. Tornou-se o mote dos arquitetos modernistas do período entre-guerras, em conjugação com o ensaio de Adolf Loos, Ornamento e delito, Viena, 1908.
23 João Simões, como Cassiano Branco e outros arquitetos da primeira geração modernista, converter-se-iam à corrente tradicionalista que marcou a década de 1940 em Portugal, determinada pelo ambiente político e ideológico então dominante no país.
24 Cf. Portela, 1951.
25 PINTO, Paulo Tormenta – Cassiano Branco 1897-1970: arquitectura e artifício. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2015. p. 116 seg.
26 Pinto, P. Tormenta, 2015, p. 196-197.