SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.ser2 número11A Ilha: História e urbanismo do grande quarteirão onde se implantou o Hospital Real de Todos-os-Santos, ao Rossio (1750-1779)Nota Introdutória índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.11 Lisboa jun. 2019

 

ARTIGO

De Ilha a Arquipélago. História e urbanismo do lugar do grande quarteirão onde outrora se implantou o Hospital Real de Todos-os-Santos, ao Rossio (1834-2019)1

From Island to Archipelago. The history of the site of the large block where the Hospital Real de Todos-os-Santos once stood (1834-2019)

Hélia Cristina Tirano Tomás Silva*, Tiago Borges Lourenço**

*Hélia Cristina Tirano Tomás Silva, Departamento Património Cultural — CML / Instituto de História da Arte / Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa, 1069-061 Lisboa. helia.silva@cm-lisboa.pt

**Tiago Borges Lourenço, Instituto de História da Arte / Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa, 1069-061 Lisboa.tborgeslourenco@gmail.com

 

RESUMO

No presente estudo procura-se traçar a história do lugar do grande quarteirão onde outrora se implantou o Hospital Real de Todos-os-Santos, depois da sua transferência para o antigo Colégio Jesuíta de Santo Antão, em 1775. A subsequente demolição do edifício hospitalar original, acompanhada da supressão do contíguo Convento de São Domingos em 1834, alterou profundamente a morfologia do sítio e permitiu um remate fora de tempo do grande plano da Baixa Pombalina, que seria aproveitado para a aproximar e coser às novas áreas da cidade que a norte se desenvolveram ao longo do século XX.

 

PALAVRAS-CHAVE

Lisboa / Urbanismo / Arquitetura / Praça da Figueira / Hospital Real de Todos-os-Santos

 

ABSTRACT

The transference of the Hospital Real de Todos-os-Santos to the former Jesuit College of Santo Antão in 1775 and the suppression of the Convent of São Domingos in 1834 deeply changed the urban morphology of the site of the large block once known as the island where the Royal Hospital stands. It allowed an out of time expansion of the mid-18th century Baixa Pombalina plan that was ultimately essential to a straighter connection to the new neighborhoods developed in the northern part of the city during the 20th century.

 

KEYWORDS

Lisbon / Urbanism / Architecture / Figueira Square / Hospital Real de Todos-os-Santos

Em 1492, o início da construção do edifício do Hospital Real de Todos-os-Santos em terrenos da cerca do Convento de São Domingos marcaria a consolidação urbanística de um grande quarteirão, mais tarde denominado como a Ilha em que estava edificado o Hospital Real de todos os Santos desta Cidade; o Convento de São Domingos, e Cazas asim do Ill.mo e Ex.mo Marquês de Cascaes2. Após dois séculos e meio sem particulares alterações, um grande incêndio em 1750 destruiria quase por completo o hospital. O plano de reconstrução e engrandecimento do seu edifício acaba por não ser colocado em prática devido ao “terramoto de 1755 [que] acabou de destruir no que respeitava a edificios, e [a]o fogo que se [lhe] seguio”3. No entanto, por si só não é possível afirmar que este evento tenha sido o único responsável pelo desaparecimento do edifício, o que é visível na forma como o plano de reconstrução da Baixa de Lisboa não lhe previu uma nova localização4. O seu destino seria, assim, traçado por uma carta régia assinada por D. José a 26 de setembro de 1769 que decretou a passagem do hospital para o edifício do antigo Colégio jesuítico de Santo Antão, entretanto vago5, e deu indicações precisas para a divisão e venda do seu terreno, ao Rossio. Desmantelado o edifício do Hospital e vendido o entulho, a partir de 1778 o remate expandido e fora de tempo do grande plano da Baixa Pombalina concretizava-se com a abertura de uma praça que nunca tinha sido pensada, em cuja placa central se implantou um mercado6. Até 1834, a Praça da Figueira foi um espaço maioritariamente encerrado por conventos e edifícios de posse religiosa. Com a extinção das ordens religiosas, a ilha transformou-se, em definitivo, num arquipélago de propriedade e uso privado, aproveitado para aproximar e coser toda a zona da Baixa às novas áreas da cidade que a norte se desenvolveram ao longo do século XX.

 

DE ILHA A ARQUIPÉLAGO(1834-1885)

 

“Lá que havia figueira metida no assunto [Praça da Figueira], havia, porque o nosso povo,

alheio ainda à glorificação dos conselheiros, usava para a toponímia, de preferência,

os objectos que mais lhe impressionavam a retina ou a memória. [...] As datas históricas e os heróis vieram depois.”

João Paulo Freire

 

A 1 de agosto de 1833 foi criada a Comissão da Reforma Eclesiástica, que de imediato emitiu disposições reguladoras do funcionamento das ordens religiosas e respetivos conventos. A partir do final do ano iniciaram-se os procedimentos administrativos com vista às primeiras supressões, cuja supervisão competia à Junta do Melhoramento Temporal. Depois de decretada a supressão formal de um convento, a Fazenda Nacional tomava posse do edifício e respetiva cerca, procedendo à avaliação dos bens previamente inventariados. Com a entrada em vigor do Decreto de 30 de maio de 1834, as casas religiosas masculinas ainda ativas ou com processo de supressão em curso foram imediatamente extintas, tendo os casos de Lisboa sido supervisionados pela Prefeitura da Estremadura7.

Como consequência, a Praça da Figueira, à qual se encontravam parcialmente voltados os edifícios de dois conventos e um quarteirão pertencente a uma ordem religiosa8, sofre mais uma profunda transformação, visível em parte do seu edificado e na abertura de uma nova rua (Figura 1).

 

 

A Fazenda Nacional tomou posse do Convento de São Domingos a 10 de junho de 1834, iniciando de seguida o inventário dos respetivos objetos e propriedades. No que diz respeito às últimas, foi descrito e avaliado um conjunto de quase cinco dezenas de propriedades de cazas, lojes, casas térreas e barracas9. Pela sua descrição é possível compreender que, do plano original de reconstrução do convento, apenas os edifícios voltados ao Rossio e os primeiros do lado poente da Rua do Amparo foram efetivamente construídos (Figura 2). O remanescente do bloco desta última era constituído por casas térreas ou construções abarracadas, vestígios da incompleta reconstrução do edifício conventual que, quase oitenta anos depois do terramoto, davam à face norte da Praça da Figueira uma triste e precária aparência. Por seu turno, estes dados são também fundamentais para compreender a engenhosa e ardilosa forma como os frades dominicanos aceitaram e cumpriram a métrica do Cartulário P ombalino sem que a marcação das pilastras na fachada correspondesse à efetiva marcação dos edifícios. Ao invés da marcação simétrica de 3-6-9-6-3 vãos imposta pelo cartulário para a Praça do Rossio, apenas foram construídos quatro edifícios com a métrica de 9-9-6-3 vãos, o último com entrada pela Rua do Amparo. Embora não constituísse caso único em Lisboa, este facto terá resultado da forma ilusória como a reconstrução do convento, regida por um encartulamento que deu ao seu edifício o aspeto de prédio de habitação que ocultava uma outra realidade: as construções voltadas ao Rossio eram compostas de “primeiro andar e das loges respectivas [...] sendo o segundo, terceiro andar e aguas furtadas, as habitações dos religiosos”10, pelo que nenhum possuía escada própria de serventia. Este motivo prejudicou o valor das avaliações em virtude da “muita despesa que demanda[va] a divisão e arranjos com as obras do segundo e terceiro andar e aguas furtadas, para poder tornar-se um prédio capaz de ser habitado por familias”11. Ironicamente, esta estranha configuração interior e a precária realidade construtiva da Rua do Amparo permitiriam cumprir a Portaria de 5 de Junho de 1834, pela qual o Prefeito da Estremadura instou o Provedor do Terceiro Distrito da cidade a avaliar e dividir “as propriedades de cazas pertencentes a Mosteiro de São Vicente de Fora (citas nesse destricto) e de São Domingos [...] em lotes separadas de três janelas [...] para se tornar mais facil a sua venda a fim de que o Thesouro Publico fique habilitado para ir vendendo os ditos predios sem demora”12.

 

 

E assim foi feita a avaliação, embora os lotes vendidos não a tenham tomado em consideração, correspondendo maioritariamente à área de implantação de cada construção primitiva. À exceção da igreja, que se manteve aberta para culto público, o edifício do Convento de São Domingos foi dividido em quinze parcelas13 levadas a leilão público e quase integralmente arrematadas a 4 de setembro de 1835. Os 135.370$0014 que renderam à Fazenda Nacional constituíram o mais elevado valor globalmente pago por um edifício conventual em Lisboa. Apesar do número de parcelas em que foi dividido, acabaria por ser arrematado apenas por 5 compradores15: Francisco Rodrigues arrematou a 1ª por 30.000$0016, Manuel José de Oliveira as 2ª, 3ª, 4ª e 15ª por um total de 66.700$00017, Thiago José Lopes a 7ª por 4.810$0018 e António Ferreira Madeira a 10ª por apenas 810$0019; finalmente, Domingos José de Almeida Lima arrematou as restantes oito parcelas, num valor total de 33.050$0020, assim como o vizinho quarteirão dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho por 77.550$0021.

Por seu turno, os autos de inventariação do vizinho Convento de São Camilo de Lelis22 haviam-se iniciado antes ainda, a 31 de maio de 1834, sendo o auto de posse do edifício assinado a 14 de junho. Entre novembro e julho do ano seguinte foram avaliadas as propriedades urbanas do convento. Na sua descrição encontram-se ainda reminiscências espaciais (e possivelmente também construtivas) do antigo Palácio dos Marqueses de Cascais, embora no geral seguisse a mesma configuração encontrada em São Domingos, uma composição de vários edifícios com lojas e primeiros andares com entrada exterior e pisos superiores unificados e ocupados pelos aposentos dos religiosos. As propriedades foram divididas em sete parcelas em julho de 1835 (Figura 3)23 e levadas a leilão a 3 de setembro seguinte, tendo sido alienadas por valores substancialmente superiores aos da avaliação24: António José da Silva Braga arrematou a 1ª e 2ª divisões (respetivamente por 520$00 e 620$00)25, Bernardino Coito a 3ª e 4ª (por 7.060$00 e 9.020$00)26, Alexandre José Gomes a 5ª (por 20.790$00)27 e Jacinto José Ferreira a 7ª (por 4.010$00)28. Inicialmente, a 6ª divisão ficou por arrematar, tendo sido vendida apenas a 25 de março de 1837 (a Francisco Joaquim Ribeiro por 6.120$00)29.

 

 

A venda de antigas propriedades conventuais constituía um negócio vantajoso para os cofres da Fazenda Nacional e para os compradores, a quem foi dada a possibilidade de adquirir terrenos e edifícios de inequívoca qualidade construtiva nas áreas mais nobres da cidade. No caso de São Domingos, a venda era acompanhada e condicionada por um projeto de regularização urbanístico. Se a partir da década de 1870 a ação da Repartição Técnica da Câmara Municipal de Lisboa incidiu no planeamento e desenvolvimento de grandes planos e do rasgamento de grandes avenidas, ao longo dos dois primeiros terços do século recaiu maioritariamente neste tipo de intervenções urbanísticas de pequena escala, muitas delas aproveitando antigos terrenos e edificado conventual para alargar e regularizar antigas vias ou rasgar novos arruamentos. Prevendo o rasgamento de duas novas ruas no interior do quarteirão, então o último grande pedaço que sobrava da Ilha quinhentista, o processo de São Domingos é em tudo idêntico ao que contemporaneamente motivou a abertura da Rua Nova da Trindade em pleno coração do antigo Convento da Santíssima Trindade: a rua em continuação à das Correeiros (atual Rua Antão de Almada30) deveria constituir um prolongamento lógico até ao Largo de São Domingos31; por seu turno, e correndo perpendicularmente à anterior, a Travessa Nova de São Domingos permitia uma divisão mais racional (e financeiramente vantajosa para a Fazenda Nacional) dos terrenos interiores do convento e, com isso, a construção de uma nova frente que encerrava o que restava do claustro conventual e um maior desafogo aos edifícios da Rua do Amparo (que assim ganhavam uma segunda fachada).

A edificação nesta área da cidade demorou o seu tempo. Ainda jovem aquando do leilão de 1835, Bernardino José de Carvalho (1812-1886) acabaria por adquirir nos anos seguintes parte dos lotes da face nascente da Rua Antão de Almada (Figura 4), a totalidade dos da face norte da Travessa de São Domingos (Figura 5) e dois do antigo Convento dos Camilos, voltados à Rua do Poço do Borratém. É ele quem constrói e arrenda32 grande parte dos novos edifícios33, tornando-se numa peça-chave deste processo. Na Rua do Amparo, o plano pombalino é finalmente concretizado com a construção dos dois últimos prédios, que seguem com assinalável rigor o desenho dos originais (Figura 2)34. Na verdade, constata-se que a totalidade dos edifícios desta área construídos neste período seguiu um Cartulário Pombalino simplificado e destempo, cerca de 75 anos depois de ter sido originalmente equacionado35. No entanto, também o século XIX se revelava despudoradamente no piso extra desenhado de raiz que mimetizava as ampliações que grande parte do edificado da Baixa por esses anos se encontrava a ser alvo. Fazendo a ponte entre dois séculos, estes edifícios refletem a mestria camaleónica da arquitetura oitocentista, capaz de se apropriar e recriar qualquer modelo com simultânea ilusão e veracidade.

 

 

 

 

No centro da praça, local que em tempos havia sido totalmente ocupado pelo edifício do Hospital Real de Todos-os-Santos, o mercado mantinha globalmente a configuração setecentista, de venda em bancas ao ar livre. Ao longo do século XIX sofreria pontuais alterações e melhoramentos (Figura 6), nomeadamente a plantação de árvores e abertura de um poço (1835), colocação de “portas novas de ferro, curvas na parte superior, que deviam fechar as várias entradas do recinto”36 (1849) e a construção de um telheiro de ferro (1877). Por iniciativa privada, o processo da grande transformação do mercado iniciou-se no princípio de 187537, altura em que a Câmara Municipal de Lisboa recebeu três propostas para a construção de novos mercados na Praça da Figueira38 e Ribeira Nova, cuja aprovação significaria uma profunda mudança de paradigma na construção e gestão destes equipamentos, até então administrados pela autarquia. Com base nos pareceres enunciados por Ressano Garcia e Joaquim Maria Osório (vereador responsável pelo Pelouro dos Mercados), em sessão de 17 de maio foi escolhida a proposta apresentada por Joaquim Lúcio de Araújo e Manuel José Ferreira Lima, com os quais foi celebrado um contrato provisório a 3 de junho seguinte. No entanto, o processo arrastar-se-ia por quase uma década, muito por culpa de um imbróglio judicial relativo a uma das cláusulas deste contrato39.

 

 

Logo no ano seguinte, e com a mudança de vereação e o processo judicial em curso, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu reverter a decisão de concessionar o mercado a privados40 e proceder à abertura de um concurso

entre os architectos e engenheiros portuguezes para a apresentação de um projecto para [a sua] reconstrucção [...] [devendo as propostas ser entregues até 30 de setembro e ficar] ao arbitrio dos concorrentes a escolha do estylo da decoração [...], a disposição interna do mercado e a qualidade dos materiaes a adoptar41,

desde que cumprissem o orçamento estipulado de duzentos contos de réis. As atas de sessão de Câmara dos anos seguintes nada mencionam acerca deste concurso, deduzindo-se que tenha sido abandonado. Neste ponto, o processo sofreu nova inflexão. Perante dúvidas entretanto levantadas a esse respeito, em 1878 foi nomeada uma comissão “afim de consultar ácerca do local mais conveniente para a construcção de um novo mercado em substituição do actual da Praça da Figueira”42. Tendo optado por um terreno ao Bairro Barata Salgueiro, junto à Avenida da Liberdade ainda em projeto, a autarquia dá seguimento ao processo com a expropriação da área necessária43 (em janeiro de 1880), aprovação do projeto e respetivo orçamento de cerca de 437 contos de réis (julho de 1881) e início da construção do Mercado Central.

Ainda assim, a ideia de reformulação do mercado da Praça da Figueira não estava totalmente abandonada. Em outubro seguinte, o visconde do Paço do Lumiar entregou à autarquia “uma representação assignada por um grande número de cidadãos pedindo que com a maior brevidade se proceda á reconstrucção do mercado da praça da Figueira, e que este mercado não seja supprimido, segundo as aprehensões que tem suscitado a resolução”44 da construção do novo mercado, o que estranhamente não foi rebatido pelos serviços camarários. Em simultâneo, com o parecer de 15 de março de 1882 do Supremo Tribunal Administrativo concluía-se o processo judicial que se arrastava há sete anos. Tendo a decisão sido favorável ao concessionário, a autarquia viu-se na contingência de “dar cumprimento á regia ordem e n’esta conformidade [...] reduzi[r] a escriptura publica o respectivo contracto”45, o que ocorre a 3 de agosto seguinte46. A este respeito lamentar-se-ia o vereador Theofilo Ferreira:

Ninguém diria que no sitio da praça da Figueira se podia construir um mercado em condições rasoáveis; fôra já aquella local condemnado por uma comissão competentissima, como incapaz para um tal estabelecimento, contrario aos principios mais rudimentares da hygine. [...] E era ao cabo de sete annos que o supremo tribunal administrativo surprehendia a camara com um despacho d’aquella ordem; quando esta, convicta de que aquelle mercado não seria reconstruido, contrahira já um emprestimo avultado para a construcção de outro mercado na avenida da Liberdade! [...] Merecia este negocio a mais séria attenção e estudo47.

Contrária aos interesses camarários, esta decisão obrigou ao abandono definitivo da construção do mercado da Avenida da Liberdade48, em cujo lote se projetaria ainda o edifício de um novo Tribunal (projeto de Ventura Terra de 1889), antes de ser totalmente ocupado por construções privadas nos primeiros anos de Novecentos.

Pouco depois, na Praça da Figueira foi iniciada a construção de

um novo mercado, do systema moderno adoptado em outros paizes e accomodado ao clima d’esta cidade, [...] [de] um só pavimento, e esse terreo, e [...] construido com ferro, madeira, cantaria, vidro, ardosia ou telha de barro calcareo ferruginoso, envernisada [...] devendo [...] a construcção obedecer ao principio do parallelismo entre a referida fachada e o alinhamento das casas fronteiras; dando-se às ruas das Galinheiras [atual face sul da Praça da Figueira] e do Amparo a largura de dez metros, e devendo haver nos quatro vertices do mercado outras tantas entradas para pedestres. [...] Ser[ia] aberto tambem de noite [...] devendo ser illuminado a gaz49.

A inauguração do novo mercado ocorreu em maio de 1885, tornando-se no mais icónico elemento arquitetónico da Praça da Figueira e um marco no imaginário lisboeta de entre séculos (Figura 7).

 

 

 

UMA CIDADE QUE SE QUERIA MODERNA (1887-2001)

Em 1859 iniciava-se uma obra que, em bom rigor, duraria cerca de um século. O alargamento e prolongamento da quinhentista Rua Nova da Palma (que ganhando cerca de meio quilómetro, passaria a estender-se até ao Largo do Intendente) seria, a partir de finais de Oitocentos, pretexto para o desenvolvimento de novos planos de expansão que levariam esta via até próximo da antiga povoação da Portela de Sacavém, sob a forma de duas novas avenidas (Almirante Reis e Gago Coutinho). Ainda que ao longo deste período a prioridade fosse levar a via para norte, para onde a cidade em breve cresceria, desde cedo os serviços de obras da Câmara Municipal de Lisboa compreenderam as dificuldades decorrentes dos crónicos problemas viários e de salubridade do intrincado labirinto de estreitas ruas do Vale da Mouraria. Assim, e perante as tentativas falhadas de resolução desta questão, em Lisboa começou-se a falar do problema da Rua da Palma, que em meados do século XX ainda obrigava a “gastar tanto tempo em ir de «carro eléctrico» da Rua Augusta ao Teatro Apolo [localizado justamente na Rua da Palma], como do Cais do Sodré aos Estoris”50.

A este propósito, entre 1859 e 1949 foram enunciadas diversas propostas. Embora algumas se limitassem ao mero alargamento da Rua Nova da Palma, grande parte pressupunha intervenções urbanísticas aprofundadas, assentando na reformulação total ou parcial do Vale da Mouraria e no desaparecimento da maioria dos seus arruamentos e edificações51. No entanto, era a Baixa o horizonte para o qual estes projetos olhavam, equacionando três tipos de ligações com esta: pelo Poço do Borratém; pelo Rossio, por via da reformulação da Rua de Barros Queiroz ou do alargamento da Travessa Nova de São Domingos; ou através da Praça da Figueira, como desembocar lógico do prolongamento da Rua Nova da Palma.

Para o presente estudo importa apenas compreender a tentativa de concretização dos últimos dois, prelúdio da derradeira transformação da Praça da Figueira. Da autoria de Augusto César dos Santos, data de 1887 o primeiro estudo (não concretizado) a contemplar a ligação direta do eixo Avenida Almirante Reis — Rua Nova da Palma com o vértice noroeste da Praça da Figueira. Seguindo a mesma ideia, o projeto de 1907, assinado pelo engenheiro civil Fernando Homem da Cunha Corte-Real, constituiu-se como o mais completo e aprofundado projeto até então formulado para o efeito, incluindo diversas séries de medições de materiais a empregar e um completo caderno de expropriações. Contrariamente a outros anteriormente enunciados para o local, não demonstra qualquer preocupação com a reformulação urbanística do Vale da Mouraria, apontando apenas à resolução do problema viário através do simples alargamento da Rua da Palma (para uma largura idêntica à da Avenida Almirante Reis, 25 metros) e seu prolongamento até ao vértice noroeste da Praça da Figueira, por onde o tráfego deveria ser escoado.

Este estudo não pressupunha a demolição do edifício do mercado, então com pouco mais de duas décadas de existência. Embora fosse notório que, de um ponto de vista teórico, a sua manutenção tornaria ineficaz a resolução a médio/longo prazo do problema do escoamento do tráfego vindo de norte (limitando-se a substituir um estrangulamento por outro), é interessante perceber que o enunciado de uma proposta de ligação direta da Rua da Palma ao Rossio52 feita em 1914 também não o previa. Ao invés, privilegiava o alargamento da Travessa Nova de São Domingos e consequente demolição do seu edificado e de pelo menos um dos edifícios da Praça do Rossio. Esta ausência de uma intenção de demolir o mercado torna-se ainda mais intrigante se levada em consideração a forma como, noutros projetos contemporâneos, foi sucessiva e levianamente proposto o arrasamento de grande parte do edificado do Vale da Mouraria (incluíndo alguns dos seus mais icónicos edifícios, caso da Igreja do Socorro, Teatro Apolo e do Palácio do Marquês do Alegrete) ou mesmo da Igreja de São Domingos. Não obstante, até ao final da década de 1920 a manutenção do mercado constituiu-se como uma das raras certezas no contexto da multiplicação vã de projetos para a área.

Assim, o primeiro projeto a pressupor formalmente a sua demolição é apresentado apenas em 1934, no contexto do retomar da primitiva ideia de prolongar a Rua da Palma até à Praça da Figueira53. À sua apresentação em janeiro desse ano, seguiu-se uma sequência de artigos na imprensa da cidade que abordavam a intenção “em fazer desaparecer do seu local [o mercado d]a velha Praça da Figueira [...] Ficaria em seu lugar uma lindíssima praça, paralela ao Rossio e beneficiando as ruas que actualmente a enquadram”54. Nestes textos era unânime o reconhecimento da necessidade do desaparecimento do edifício, apontando-se várias direções e novas localizações55, transparecendo a habitual ligeireza como as demolições e reconfigurações urbano-arquitetónicas eram tratadas à época. Em artigo assinado no Diário de Lisboa de 25 de janeiro é questionado o modo

como será, arquitectònicamente, planeado e realizado o pequeno Rossio56[.] Á imagem e semelhança da praça de D. Pedro, que, aliás, embora pervetido tem um carácter pombalino, e um ar belo e severo ajustado ao tempo do seu levantamento? [...] Como será arquitectado? Á moderna? Com um ar burguês, já filtrado pelas novas doutrinas paisagistas? Num tipo clássico, alfacinha, tradicionalista, que não deixe longe a visão das cêrcas de S. Domingos e do Hospital de Todos os Santos? Em Jardim? Em Parque? Em Praça fria e ampla, que a uma cidade de trânsito convém57?

Como adiante será visto, a ausência de respostas a todas estas questões refletia a forma bem lisboeta de demolir primeiro e perguntar depois como várias obras camarárias do género foram executadas58.

Apesar de (uma vez mais) não ter sido concretizado, o projeto de 1934 refletia uma aprofundada preparação da reformulação da área do Vale da Mouraria, então em curso, num processo onde expropriações e demolições foram decididas e concretizadas antes da efetiva implementação de um plano a seguir59. Pouco depois, em 1938, é encomendado ao francês Étienne de Gröer (1882-1952) um plano de conjunto para a cidade com o objetivo principal de melhorar o escoamento do trânsito e a aproximação dos bairros da periferia ao centro de Lisboa. É em articulação com este plano que é encomendada ao arquiteto urbanista João Faria da Costa (1906-1971) a elaboração do Plano de Remodelação da Baixa, que deveria incluir um

estudo analítico dos diversos planos que têm sido elaborados tendentes á resolução do problema: — (prolongamento da Rua da Palma — deslocação da Praça da Figueira) […] [e um] relatório sôbre a conclusão desse estudo e analise das novas premissas do problema criado pela Circular dos Tuneis e o partido a adoptar em função das necessidades de transito60.

Apresentado em 1949, consistia no mais radical projeto até então apresentado, pressupondo o desaparecimento de todo o edificado do Vale da Mouraria, que passaria a ser ocupado pela nova Praça D. João I, o centro nevrálgico deste plano e local onde dois túneis deveriam desembocar (um com ligação aos Restauradores e o outro ao Campo das Cebolas). À superfície, a ligação com a Baixa deveria ser feita pela Praça da Figueira que, apeada do edifício do mercado, seria transformada numa placa giratória de circulação através da qual o tráfego divergiria para todos os arruamentos vizinhos. Este projeto entroncava e conciliava as diretrizes do estudo das linhas de um sistema de um transporte ferroviário subterrâneo (metropolitano) em desenvolvimento desde 1947, que previa para o subsolo da Praça da Figueira a construção de uma estação central que acolheria duas linhas e se constituiria como o ponto nevrálgico da rede. Faria da Costa toma este plano em consideração, engrandecendo-o através da criação de um enorme complexo de galerias comerciais subterrâneas que deveriam ocupar a totalidade do subsolo da Praça do Rossio e permitir uma ligação direta entre as estações de metropolitano e ferroviária.

A demolição do mercado iniciou-se em julho de 1949. Até ao final da década é elaborado o Anteprojeto de arranjo da Praça da Figueira, da autoria dos arquitetos João Garizo do Carmo e Orlando Avelino, em colaboração com Faria da Costa, que pressupunha a demolição integral do edificado da praça e a sua substituição por blocos de seis andares com galerias no piso térreo (Figura 8) Subsistem poucas informações acerca deste anteprojeto, embora a ideia subjacente tenha sido apresentada, em outubro de 1950, por Jorge Carvalho de Mesquita no II Congresso das Capitais:

[No contexto do plano para a Praça da Figueira,] o alargamento [das] ruas [do Amparo, Betesga e Fanqueiros] foi conseguido à custa da construção de arcadas sob os prédios, garantindo, assim, uma viabilidade económica para a necessidade de alargamento das faixas de rolagem61.

Uma vez mais, o edificado antigo era o primeiro a ser sacrificado.

 

 

Apesar de aprovado, o estudo de Faria da Costa “mereceu crítica severa da Comissão de Revisão da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização, sobretudo por ser um trabalho parcial, descosido possivelmente da estruturação geral da cidade de Lisboa, desconhecida e não apresentada”62. Resultando de uma reformulação desenvolvida entre 1954 e 1956, a nova versão abandonaria a galeria subterrânea, tendo

o estacionamento da Praça da Figueira fic[ado] muito reduzido em relação à sua capacidade actual63 por efeitos da ampliação dos raios das curvas de concordancia dos arruamentos e pela criação das estações de autocarros. Todavia, a sua capacidade pode[ria] ser grandemente aumentada pela criação de uma garagem de estacionamento na placa central com dois a três pisos e cujo acesso se faria por meio de rampas64.

Fruto do tempo, a Lisboa que se queria moderna apontava à substituição de mercados por silos de estacionamento.

Na verdade, nenhuma das versões do projeto de Faria da Costa seria cumprida. A Praça da Figueira manteria a configuração espacial e arquitetónica, sendo no entanto subtraída do seu emblemático mercado, em cujo terreno passou a existir um parque de estacionamento durante mais de duas décadas (Figura 9). A estação de metropolitano prevista no plano de 1947/8 seria efetivamente construída e inaugurada em 1963 (Rossio), embora numa versão mais modesta que contemplava apenas uma linha.

 

 

Numa tentativa de aformosear e engrandecer a praça, em 1971 é inaugurada uma estátua equestre de Dom João I, da autoria de Leopoldo de Almeida65, altura em que o estacionamento é abolido da placa central (Figura 10). Até ao presente, a construção de um parque de estacionamento subterrâneo (inaugurado em 2001) foi a última grande intervenção na Praça da Figueira. Foram justamente as diversas obras no subsolo ocorridas na segunda metade de Novecentos que permitiram as importantes escavações arqueológicas e o profundo conhecimento que atualmente existe do local66, um dos mais emblemáticos espaços da cidade de Lisboa, que nascendo e crescendo à sombra do Rossio, nunca dele verdadeiramente se conseguiu tornar independente.

 

 

 

NOTAS FINAIS (2019)

O desaparecimento de um marco arquitetónico e vivencial pode ser tão relevante quanto a sua presença. Porque a cidade é um organismo vivo que se regenera perante as perdas. E uma perda é tendencialmente a oportunidade para mudanças, nem sempre positivas. Como num ciclo, Lisboa existiu antes, durante e depois do Hospital Real de Todos-os-Santos.

Inequivocamente marcante na cidade moderna, quase dois séculos e meio passados sobre o seu desaparecimento, a nota dominante parece ser a total ausência da memória no lugar. Hoje nada sobra do edifício, da sua implantação ou sequer das suas fundações, conhecidas, estudadas e irremediavelmente perdidas em virtude de uma intensiva utilização do subsolo da Praça da Figueira. Sob os alicerces da nova cidade pós-pombalina, a existência do hospital encontra-se hoje intrinsecamente dependente da historiografia e da forma como está a conseguir resgatar para (o imaginário d)a Lisboa contemporânea.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES

MANUSCRITAS E FOTOGRÁFICAS

Arquivo Municipal de Lisboa

Actas da Sessão de Câmara do Anno de 1875, 1876, 1881, 1882.

Armando Serôdio, 1966. Praça da Figueira, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SER/S03850.

Armando Serôdio, 1972. Praça da Figueira, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SER/S07798.

Eduardo Portugal, ant. 1949. Mercado da praça da Figueira, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001346.

Estúdio Mário Novais, 1951. Ante-projeto de arranjo da praça da Figueira, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/MNV/001876.

Estúdio Mário Novais, ant. 1885. Praça da Figueira, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/MNV/001036.

Gestão de expediente geral, Propetos, Prospeto do extinto convento de São Domingos, no qual Bernardino José de Carvalho pretende edificar na rua da Palha, fazendo cunhal e outra frente para a travessa Nova do Amparo, 1848,

Gestão de expediente geral, Propetos, Prospeto do extinto convento de São Domingos, no qual Bernardino José de Carvalho pretende edificar na travessa Nova do Amparo, 1847,

Livro de Escrituras nº 8, f. 55v-60v.

Livro de Notas nº 90, f. 23-27.

Planeamento urbanístico, Estudos e Projetos Urbanísticos, Anteprojecto do prolongamento da rua da Palma entre o Socorro e a praça da Figueira, PT/AMLSB/CMLSBAH/PURB/002/03830.

Planeamento urbanístico, Estudos e Projetos Urbanísticos, Plano de recuperação do Chiado, Projecto e orçamento da variante da rua da Palma, entre a rua do Amparo e a de São Vicente à Guia, PT/AMLSB/CMLSBAH/PURB/002/01.

Urbanismo e Obras, Expediente, Correspondência recebida pela Repartição de Obras Públicas, PT/AMLSB/AL/CMLSB/UROB-E/23.

Urbanismo e Obras, Expediente, Correspondência recebida pela Repartição de Obras Públicas, Planta do extinto Convento de S. Camillo (cópia do original que existe na Junta do Crédito Público), 1837, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-E/23/1577.

Urbanismo e Obras, Planeamento urbanístico, Estudos e projectos de urbanismo, Plano de remodelação da Baixa, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/10/291.

Urbanismo e Obras, Planeamento urbanístico, Estudos e projectos de urbanismo, Plano de remodelação da Baixa, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/10/432.

 

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Distribuição do prospecto para a Rua do Amparo segundo o detalhe dos terrenos do extinto Convento de São Domingos, o que vai em linhas encarnadas é a parte que se acha feita e a que se deve fazer de novo, Coleção de Plantas do ex-A.H.M.F., cx. 5273, n.º3.

Ministério das Finanças, Convento de São Domingos de Lisboa, Cx. 2229.

Ministério das Finanças, Livros 482, 487 e 493.

 

ESTUDOS

CASTILHO, Júlio de — Lisboa antiga, bairros orientais. Lisboa: S. Industriais da C.M.L., 1937. Vol. X.

ELIAS, Helena — Arte Pública das administrações central e local do Estado Novo em Lisboa: sistemas de encomenda da CML e do MOPC/MOP (1938-1960). Barcelona: [s.n.], 2006. Tese de doutoramento em Espai Públic i Regeneració Urbana, apresentada à Universidade de Barcelona.

FREIRE, Francisco José — Memória das principais Providencias que se derão no Terramoto... Lisboa: [s.n.], 1758.

FREIRE, João Paulo — Lisboa do meu tempo e do passado: do Rossio ao Poço do Borratém. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1939.

LOURENÇO, Tiago Borges — A Mouraria da velha Rua da Palma: quatro séculos no ciclo de vida de um arruamento (1554-1959). Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 9 (janeiro-junho 2018), p. 15-41.

LOURENÇO, Tiago Borges; MÉGRE, Rita; SILVA, Hélia — A Lisboa dos conventos: permanências e metamorfoses. In SEIXAS, João, coord. — Projecções de Lisboa: utopias e estratégias para uma cidade em movimento perpétuo. Lisboa: Caleidoscópio, 2018. p.86-111.

MACEDO, Luiz Pastor de — A Mouraria, o Arco e a paciência dos Lisboetas. Olisipo: Boletim do Grupo “Amigos de Lisboa”. Lisboa. Nº 30 (abril 1945), p. 67-78.

MADALENO, Isabel Maria — Companhia das Lezírias: o passado e o presente. Hispania Nova: Revista de História Contemporânea. Nº 6 (2006).

MESQUITA, Jorge Carvalho de — Plano de remodelação da Baixa: Praça da Figueira, Rossio, R. da Palma e S. Lázaro: comunicação. [s.l.: s.n.], 1950.

SACRAMENTO, Frei António do — Memórias curiosas em que por estes Annos de 1778 se acham as principaes cousas da Corte de Lisboa. Lisboa: Officina do Tombo Histórico, 1929.

SILVA, Carlos Nunes da — Planeamento municipal e a organização do espaço em Lisboa. Lisboa: [s.n.], 1986. Dissertação de mestrado em Geografia Humana e Planeamento Regional e Local, apresentada à Universidade de Lisboa.

 

 

Submissão/submission: 10/03/2019

Aceitação/approval: 29/04/2019

 

 

NOTAS

SILVA, Hélia, LOURENÇO, Tiago Borges — De Ilha a Arquipélago. História e urbanismo do lugar do grande quarteirão onde outrora se implantou o Hospital Real de Todos-os-Santos, ao Rossio (1834-2019). Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 11 (janeiro-junho 2019), p. 127 — 143.

1 O presente artigo foi escrito no âmbito do projeto de doutoramento de Tiago Borges Lourenço intitulado “Entre Circular e Habitar. Do Projeto da Avenida dos Anjos e Ruas Adjacentes à abertura da Avenida Almirante Reis”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (ref. SFRH/BD/110343/2015).

2 Corresponde ao grande quadrilátero cujo perímetro, em traços gerais, é atualmente delimitado pela Praça D. Pedro IV (do Rossio) e ruas de Barros Queiroz, Dom Duarte, João das Regras, do Poço do Borratém, dos Condes de Monsanto e da Betesga.

3 SACRAMENTO, Frei António do — Memórias curiosas em que por estes annos de 1778 se acham as principaes cousas da Corte de Lisboa. Lisboa: Officina do Tombo Histórico, 1929. p. 14.

4 Da autoria de Carlos Mardel (1795/6-1763) e Eugénio dos Santos (1711-1760), este plano visava a profunda regularização dos alinhamentos da Praça do Rossio, implicando o realinhamento das propriedades do convento e do hospital, entre as quais se deveria abrir uma nova rua. Marcou, assim, o início da fragmentação da Ilha em Arquipélago, cuja tendência seria uma constante ao longo do século seguinte.

5 Pela primeira vez a cidade possuía um espaço vago com as condições necessárias para acolher a grande estrutura hospitalar, o que foi fundamental para a equação e efetivação da transferência.

6 Sobre a história e urbanismo do sítio no período anterior a 1834, ver LOURENÇO, Tiago Borges; SILVA, Hélia — A Ilha: história e urbanismo do grande quarteirão onde se implantou o Hospital Real de Todos-os-Santos, ao Rossio (1750-1779). Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 11 (janeiro-junho 2019), p. 103 — 126.

7 Esta questão é aprofundadamente abordada em LOURENÇO, Tiago Borges; MÉGRE, Rita; SILVA, Hélia — A Lisboa dos conventos: permanências e metamorfoses. In SEIXAS, João, coord. — Projecções de Lisboa: utopias e estratégias para uma cidade em movimento perpétuo. Lisboa: Caleidoscópio, 2018. p. 98-103.

8 Voltados aos topos norte e nascente encontravam-se, respetivamente, os edifícios do Convento de São Domingos e de São Camilo de Lelis. Por seu turno, os edifícios do quarteirão encerrado pelas praças do Rossio e da Figueira e ruas do Amparo e da Betesga (conhecido ao longo das últimas décadas como o “quarteirão da Pastelaria Suíça”) pertenciam aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.

9 Avaliados num total que ultrapassava ligeiramente cerca de 65.500$00.

10 ANTT, Ministério das Finanças, Convento de São Domingos de Lisboa, Cx. 2229, f. 432.

11 Idem, f. 500. Esta questão é particularmente visível e intrigante na forma como os lotes vendidos na Rua do Amparo não correspondem aos edifícios atualmente existentes, o que parece pressupor uma total reconfiguração do seu interior. Devido a este facto, foi impossível apresentar uma proposta de desenho de divisão dos lotes alienados.

12 Idem, f. 428.

13 As quatro primeiras parcelas encontravam-se voltadas ao Rossio e à Rua Antão de Almeida. Da 5ª à 8ª parcela estavam voltadas à Praça da Figueira e Travessa Nova de São Domingos. A 9ª, no gaveto da Rua do Amparo e da Rua Dom Duarte, junto à qual se encontrava a 10ª. Da 11ª à 13ª, na face norte da Travessa Nova de São Domingos. De cada lado da igreja e a esta contígua, encontravam-se a 14ª e 15ª parcelas.

14 Valor muito superior à avaliação, cifrada em 65.672$00.

15 A maioria destes compradores eram homens de negócio, de entre eles se destacando Domingos José de Almeida Lima, que “virá juntar-se a José Bento Araújo na Empresa Social da Compra das Lezírias do Tejo e Sado, e será a partir de 13 de Maio de 1836 o representante da companhia junto ao governo de Sua Majestade, de que era o terceiro maior accionista individual”. Cf. MADALENO, Isabel Maria — Companhia das Lezírias: o passado e o presente. Hispania Nova: Revista de História Contemporânea. Nº 6 (2006).

16 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 482, f. 100.

17 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 482, f. 101, 103.

18 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 493, f. 26.

19 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 482, f. 102.

20 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 482, f. 132-134.

21 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 481, f. 55v-56v.

22 Cujas propriedades correspondem maioritariamente ao quarteirão encerrado pela Praça da Figueira e ruas do Amparo, do Poço do Borratém e dos Condes de Monsanto.

23 As 1ª e 2ª parcelas encontravam-se voltadas à Rua do Poço do Borratém, tendo sido parcialmente demolidas e realinhadas para alargamento da rua. A 3ª, 4ª e 5ª parcelas encontravam-se voltadas para a Rua João das Regras, a última das quais tornejando para a Praça da Figueira, para a qual se encontravam voltadas as parcelas 6ª e 7ª.

24 Foram avaliadas da seguinte forma: 1ª divisão: 500$00; 2ª divisão: 600$00; 3ª divisão: 3.000$00; 4ª divisão: 3.500$00; 5ª divisão: 4.000$000; 6ª divisão: 600$00; 7ª divisão: 800$00.

25 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 482, f. 92-93.

26 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 482, f. 94-95.

27 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 493, f. 54.

28 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 482, f. 96.

29 ANTT, Ministério das Finanças, Livro 487, f. 33.

30 Por uma questão de uniformização e identificação, no presente texto optou-se por utilizar os atuais nomes das ruas.

31 Uma vez que os edifícios voltados ao Rossio não tinham fachada posterior, a abertura desta rua possibilitou a construção de novos edifícios, a estes contíguos. Ao invés, também obrigou à demolição de um edifício à Rua do Amparo.

32 Os edifícios reaproveitados, reconstruídos ou de novo erigidos nos lotes dos dois antigos conventos em estudo foram arrendados para comércio e habitação.

33 A maioria dos edifícios da Rua Antão de Almada e Travessa Nova de São Domingos datam de 1847 e 1848, existindo na primeira um edifício construído logo em 1838.

34 Atuais Praça da Figueira, 7A-7D e 8-8E.

35 O modelo da Rua dos Correeiros é utilizado nos edifícios da face nascente da Rua Antão de Almada, aberta no mesmo enfiamento; por seu turno, na face oposta e na vizinha Travessa Nova de São Domingos seguiu-se o desenho dos prospetos da Praça do Rossio (nomeadamente o desenho nº 23, para a face poente), simplificado no desenho da cantaria da Praça do Rossio.

36 CASTILHO, Júlio de — Lisboa antiga, bairros orientais. Lisboa: S. Industriais da C.M.L., 1937. vol. X, p. 126.

37 Na verdade, ao longo da década anterior, a autarquia havia recebido propostas para a construção de um mercado coberto em substituição do existente (por Leonardo Pinheiro da Cunha Carneiro em 1866 e por J. P. Collares e Pedro Montezuma em1869) (AML, Correspondência Recebida Pela Repartição de Obras).

38 Uma das quais (de Basílio de Castel-Branco) para a construção de um edifício com lojas dispostas em dois pisos, o que provocou aberta oposição de Ressano Garcia (Actas da Sessão de Câmara do Anno de 1875. Lisboa: Câmara Municipal, [1876?]. p. 134-139).

39 Reportava essencialmente ao ponto 15º do contrato assinado, relativo à compensação ao município. A descrição do processo encontra-se na sessão de 17 de maio de 1882 (Actas das Sessões de Câmara de 1882. Lisboa: Câmara Municipal, [1883?]. p. 281-285).

40 Actas das Sessões de Câmara do Anno de 1876. Lisboa: Câmara Municipal. [1877?]. p. 618, 626-628.

41 Actas das Sessões de Câmara do Anno de 1876. Lisboa: Câmara Municipal. [1877?]. p. 684.

42 Actas das Sessões de Câmara do Anno de 1878. Lisboa: Câmara Municipal. [1879?]. p. 481.

43 Corresponde ao quarteirão formado pela Avenida da Liberdade e Ruas Rosa Araújo, Mouzinho da Silveira e Alexandre Herculano.

44 Actas das Sessões de Câmara do Anno de 1881. Lisboa: Câmara Municipal. [1882?]. p. 532.

45 Actas das Sessões de Câmara do Anno de 1882. Lisboa: Câmara Municipal. [1883?]. p. 282.

46 O contrato previa que após a aprovação do projeto final, o concessionário tivesse o edifício concluído no prazo de 18 meses, estendendo-se o contrato de exploração por um período de 45 anos.

47 Idem, p. 284.

48 Para evitar a existência de dois mercados próximos e por ir contra ao contrato celebrado a 8 de junho de 1874 com os concessionários dos mercados oriental e ocidental que impedia a autarquia de construir novos mercados num raio de 2 quilómetros, com exceção da reforma do da Praça da Figueira.

49 AML, Livro de Escrituras nº 8, f. 56v-57.

50 MACEDO, Luiz Pastor de - A Mouraria, o arco e a paciencia dos lisboetas. Olisipo: Boletim do Grupo “Amigos de Lisboa”. Lisboa. Nº 30 (abril 1945), p. 74.

51 Esta questão foi anteriormente aprofundada em LOURENÇO, Tiago Borges — A Mouraria da velha Rua da Palma: quatro séculos no ciclo de vida de um arruamento (1554-1959). Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 9 (janeiro-junho 2018), p. 15-41.

52 AML, Projecto e orçamento da variante da Rua da Palma, entre a rua do Amparo e a de São Vicente à Guia, f. 4, f. 50-54.

53 AML, Anteprojecto do prolongamento da rua da Palma entre o Socorro e a praça da Figueira.

54 FREIRE, João Paulo — Lisboa do meu tempo e do passado: do Rossio ao Poço do Borratém. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1939. p. 85.

55 Em artigo assinado em A Voz de 27 de janeiro, Fernando de Souza sugere a construção de um novo mercado junto da antiga rua do Martim Moniz propondo que herde “êsse mercado o nome de Praça da Figueira, consagrado pelas velhas usanças populares.” (SOUZA, Fernando de Apud FREIRE, João Paulo — op. cit., p. 107).

56 Nestes e noutros textos de época é possível compreender a forma como o termo Praça se encontrava intimamente ligado ao edifício do mercado, a ponto de se apelidar ao futuro espaço sem mercado Nova Praça ou Novo Rossio. Esta ideia é manifestamente refletida pela forma como a toponímia da cidade só reconheceu o espaço como Praça da Figueira a partir de 1950.

57 Diário de Lisboa, 25/01/1934. Apud FREIRE, João Paulo, op. cit., p. 101-102.

58 Embora o processo de expropriações do Vale da Mouraria tivesse acompanhado a elaboração dos diversos projetos, foi executado de forma independente à sua concretização, o que acabou por ser responsável pelo arrasamento de uma importante área da cidade e surgimento de um vazio urbano, parcialmente resolvido a custo várias décadas depois. O que aqui se verificou seria ao longo das décadas seguintes repetido noutros empreendimentos da cidade, nomeadamente em Alcântara, Braço de Prata, Entrecampos (Feira Popular) e Vale de Santo António.

59 Ao facto de finalmente ter existido um desbloqueio não terá sido alheia a mudança de regime político: “A seguir ao golpe militar de 28 de Maio, a análise dos documentos revelou alguma indiferença do poder em relação aos problemas municipais. Período este que parece perdurar até ao lançamento das bases da política de obras públicas do Estado Novo em 1932. Até lá as várias Comissões Administrativas pouco mais fizeram do que gerir as ideias e os problemas herdados da Primeira República.” Cf. SILVA, Carlos Nunes da — Planeamento Municipal e a Organização do Espaço em Lisboa. Lisboa: [s.n.], 1986. p. 48-49. Dissertação de mestrado em Geografia Humana e Planeamento Regional e Local, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

60 AML, Livro de Notas nº 90, f. 23-24.

61 MESQUITA, Jorge Carvalho de — Plano de remodelação da Baixa: Praça da Figueira, Rossio, R. da Palma e S. Lázaro: comunicação. [s.l.: s.n.], 1950. p. 11.

62 AML, Plano de Remodelação da Baixa, f. 30.

63 Neste projeto, pressupunha-se uma ocupação de 2200m 2 de terreno para estacionamento, sensivelmente o mesmo que no Largo do Intendente.

64 Idem, f. 19.

65 Iniciado na década de 1940 com a intenção de encomenda de uma estátua equestre de Nuno Álvares Pereira para o topo do Parque Eduardo VII, este longo processo conhece um importante avanço em 1959, com a celebração de um contrato entre a autarquia e o escultor para o efeito. Abandonada a localização original, em 1966 definiu-se a Praça da Figueira como o novo local de implantação, iniciando-se os trabalhos de fundição e o estudo do pedestal. Culminando, pouco depois e perante pedido do Governo, com a oferta do monumento por parte da autarquia lisboeta à Batalha, a cidade seria compensada pelo financiamento governamental da nova estátua equestre de D. João I. Cf. ELIAS, Helena — Arte Pública das administrações central e local do Estado Novo em Lisboa… Barcelona: [s.n.], 2006. p. 422-447. Tese de Doutoramento em Espai Públic i Regeneració Urbana apresentada à Universidade de Barcelona.

66 As mais importantes escavações arqueológicas ocorreram em 1960, 1962, 1971 e 1999-2001, revelando a ocupação humana do local, pelo menos, desde a Idade do Bronze.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons