Introdução
A pintura mural desempenhou um papel muito relevante, a nível nacional, ao assumir diversas morfologias e funções (pedagógicas, políticas, cenográficas, estéticas, miméticas) que têm merecido a atenção dos investigadores1.
Não obstante as diferentes abordagens possíveis para o estudo da pintura mural, quando nos focamos no levantamento documental e arquivístico relacionado com esta prática, somos confrontados com alguns desafios. Trata-se de uma temática onde os dados apurados representam uma percentagem minoritária, no conjunto global de documentos relacionados com campanhas artísticas, subsistindo dúvidas na relação entre a terminologia utilizada e a natureza da obra descrita.
Este aspeto é muito visível nas escrituras pertencentes aos Cartórios Notariais dos distritos de Portalegre e de Évora, entre os séculos XVI e XVIII. Em diversos casos, a pintura mural surge no mesmo contexto de outros trabalhos (pinturas sobre tela e madeira, douramentos sobre talha, etc.), sendo o conceito de “pintura a fresco” utilizado de forma, por vezes, questionável.
O texto que agora se apresenta resulta da sistematização dos dados recolhidos no decurso da nossa tese de doutoramento, em arquivos internacionais, nacionais, regionais, municipais e paroquiais. O núcleo documental de maior relevância para a presente análise foi o dos Cartórios Notariais (Arquivo Distrital de Portalegre) consultados de forma exaustiva, na totalidade dos quinze concelhos que integram o atual distrito de Portalegre. O universo global dos 804 livros de escrituras permitiu-nos formar uma visão abrangente do contexto artístico nesta região, entre os séculos XVI a XVIII. Esta metodologia conduziu à descoberta de referências inéditas para núcleos de pintura mural (existentes e desaparecidos), à identificação de artistas locais, das suas parcerias (circunstanciais, em muitos casos) e do alcance da sua mobilidade. Conseguimos apurar 326 nomes de artistas, ativos no norte e centro do Alentejo, de entre os quais 35 eram pintores que acumulavam as funções de douradores.
Através da reflexão sobre os dados agora apresentados esperamos contribuir para um maior entendimento da pintura mural produzida no Alentejo, na Época Moderna.
Os materiais dos pintores nas fontes documentais
Entre 1537 e 1540, o pintor Francisco de Holanda foi enviado por D. João III a Itália, onde terá contactado com Miguel Ângelo e com o círculo de humanistas e literatos que com ele privavam. No regresso desta viagem, que marcaria de forma incontornável o seu percurso profissional, Holanda redigiu o Da Pintura Antiga, obra paradigmática no âmbito da produção bibliográfica portuguesa. Muito embora a sua aparente falta de interesse por descrever técnicas ou receitas de pintura, cabe a Holanda a primeira referência específica à pintura a fresco: “é a mais nobre forma de pintura e a mais antiga […] dura muito tempo e é imortal” (Serrão e Monteiro, 2019, p. 166). Longe de ser imortal, a pintura a fresco possuía características que garantiam a sua durabilidade, o que conferia aos pintores que a soubessem executar um lugar à parte entre as restantes categorias profissionais. Apesar disso, Holanda foca-se, sobretudo, na teoria que devia consubstanciar todas as áreas da atividade do pintor, destacando a importância do decorum a observar na Arte, em geral, e na pintura, em particular.
À semelhança de Holanda, também Filipe Nunes, na Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva (1615), dispensa grande parte do texto à apresentação de argumentos que provam a nobreza da pintura e a sua diferenciação das restantes artes, numa altura em que os pintores portugueses lutavam para alcançar um patamar de distinção relativamente aos oficiais mecânicos (Serrão, 1983).
No que diz respeito à caracterização da técnica da pintura mural e, mais concretamente, do fresco, Nunes é pioneiro, descrevendo o processo em si e os materiais mais indicados para a sua prática: “A pintura a fresco não se diferencia dos outros modos mais que em não se usarem nela todas as cores, e mais no modo de as assentar”. Não evita, contudo, a integração do esgrafito na categoria do fresco, afirmando que “também se costumão fazer a fresco de rascunho em paredes, figuras e laçarias, e tudo o que querem, como se vê em muitas quintas” (Serrão e Monteiro, 2019, p. 484-485). A mesma tentação de incluir na grande categoria da pintura outras técnicas que comungam da mesma linguagem estética e material fora sentida por Holanda, que classifica o stucco como uma “pintura de baixo relevo, feita de pó de mármore e cal muito apurada e terra puzeolana” (Serrão e Monteiro, 2019, p. 167).
Embora raras, por vezes, nos tratados surgem indicações sugestivas no que diz respeito a práticas de pintores específicos, nacionais e estrangeiros. O manuscrito intitulado Breve Tratado de Iluminação, uma compilação de receitas aplicadas à iluminura, apresenta um curioso conjunto de referências relativas, entre outros, a El Greco (uma receita de verniz utilizada pelo pintor), a Vasco Fernandes, a Luís de Morales (ambos seguindo o mesmo processo de desenho das figuras, antes de aplicar a pintura) e a Simão Rodrigues (num modo de executar uma imprimidura em seda) (Serrão e Monteiro, 2019, p. 562-566). Permanece um mistério a forma como o autor (anónimo) teve conhecimento das práticas seguidas por estes pintores, ou, sequer, se as mesmas correspondem, de facto, à realidade. A historiografia da pintura mural portuguesa não conseguiu ainda determinar qual o real alcance dos tratados de arte junto dos artistas, sobretudo a nível regional.
Do ponto de vista do encomendante (em particular, da Igreja Católica) é inquestionável que todos os aspetos relacionados com a prática da produção artística mereciam especial atenção, principalmente quando estavam em causa funções de natureza catequética, atribuídas à imagem. O cuidado com a representação pictórica de imagens, sem margem para ambiguidades interpretativas por parte dos fiéis, encontra-se expresso nos textos das Constituições Sinodais, assim como a definição dos requisitos daqueles que estariam (ou não) habilitados para o fazer. A título de exemplo recordamos um excerto das Constituições Sinodais do Porto, de 1585:
Porque em muitas Igreias de nosso bispado achamos muitas imagens, e pinturas de sanctos tam mal pintadas, que nam tam somente, nam provocam a devaçam a quem as vee, mas antes dam materia de rir, e outras que nam estam pintadas conforme a verdade da scriptura, e historia que representam: querendo nisso prover, estabelecemos e mandamos, que daqui em diante, em nenhua Igreja, ou lugar pio deste nosso bispado se entremeta nenhum pintor a pintar retabolo, ou qualquer outra pintura, sem primeiro haver nossa licença, a qual lhe nam sera dada, sem preceder verdadeira enformaçam de como he bom oficial, e que pinta as historias na verdade2.
A preocupação com a representação da “verdade”, através das mãos de oficiais devidamente capazes, foi uma constante nestes textos de natureza normativa, tamanha a relevância assumida pela reprodução imagética dos textos bíblicos.
Entre os finais do século XVI e o primeiro quartel do século XVII, o ambiente artístico no Alentejo foi marcado por um intenso dinamismo, em parte decorrente de grandes campanhas de decoração nas catedrais de Évora, Portalegre e Elvas. As fontes documentais para a centúria de Quinhentos oferecem algumas referências a materiais utilizados em pintura e que, desde então, foram explorados e comercializados no reino. De entre os documentos que são conhecidos, um dos mais antigos é um decreto de D. Manuel I, de 1521, no qual o rei confere ao pintor Francisco das Aves, natural de Beja, o cargo de “afinador do azul das minas junto d’aljustrel”3. Séculos mais tarde, uma relação das minas ativas no reino, entre 1736 e 1737, daria um panorama atualizado sobre os principais locais de exploração de produtos utilizados em diversas atividades económicas, entre elas, a pintura. As minas identificadas nesta relação situavam-se em torno da região centro: de chumbo, prata e ouro (na comarca de Tomar, junto ao rio Zêzere), de ocre (em Foz de Alge, distrito de Leiria), de “roxo terra” (em Ponte de Mucela, distrito de Coimbra), de gesso (em Sesimbra e Leiria) e, ainda, uma mina de cobre a partir do qual se produzia “tinta fina vermelha, que foy examinada e muy aprovada”4.
A questão da qualidade do material, ou da sua “fineza”, ocupava um lugar central nas exigências dos encomendantes. Nos Livros de Receita e Despesa da Misericórdia de Borba do Ano de 1694 para 1695 encontramos o registo daquilo que a Santa Casa tinha gasto com tintas adquiridas em Lisboa, na loja de Dionísio de Vermer, fornecedor do pintor Manuel da Silva (Simões, 2006, p. 82)5. No rol de materiais adquiridos pela Misericórdia encontram-se o “óleo de linhasa”, “alvaiade”, “lápis preto”, “verdete” e o “vernis”, tudo somando 7500 réis, quantia que o fornecedor recebeu, confessando que “tudo [é] muito caro oje nesta corte”.
A documentação notarial dos séculos XVII e XVIII, na região de Portalegre, permite identificar uma transformação no panorama da encomenda artística. O primeiro facto a reter é o relevo agora dado ao pintor dourador, categoria profissional que ganhou importância à medida que se multiplicavam as encomendas por parte de irmandades ou confrarias. Os pintores douradores eram artistas que se tinham especializado em trabalhos de pintura a têmpera, douramentos de talha, estofamentos ou encarnações de imagens, para além de, em simultâneo, se dedicarem a pinturas sobre distintos suportes. No início do século XVII esta categoria contava com um número considerável de profissionais, integrados na Irmandade de S. Lucas, havendo registo, logo em 1614, de iniciativas no sentido da defesa das suas condições de trabalho, enquanto “classe profissional” (Flor e Flor, 2016, p. 33). Considerando a variedade de obras que lhe passaram a estar atribuídas, o pintor dourador ultrapassaria o pintor de fresco na sua prestigiada posição na hierarquia dos pintores. A expressão “pintar ao fresco” não desaparece da documentação, embora o seu rigor seja questionável. É possível que nos contratos de obras mais abrangentes onde, para além de pinturas, estivesse contemplado o douramento de um retábulo ou de uma imagem, o termo “fresco” pudesse, na realidade, ser utilizado como sinónimo de “pintura mural”, uma vez que os materiais descritos apontam para uma realidade que não é coerente com a prática do fresco.
Para os encomendantes, a utilização do mesmo “oficial” para o douramento de um altar, de um teto, ou de ambos, representava uma solução mais económica, assim se justificando o elevado número de encomendas que alguns artistas receberam (Monteiro, 2013, p. 129).
A atenção dada à qualidade dos materiais permanece na documentação até ao início do século XIX. A propósito das campanhas decorativas, realizadas entre 1806 e 1807 no Paço Ducal de Vila Viçosa, é especificado que se aguardava a chegada de “vinte arrates de Jaldelino para os Estucadores” exigindo-se que fosse “do milhor” e que deveria ser adquirido onde ele assim existisse6. A designação “jaldelino”, presente na tratadística portuguesa apenas a partir de meados do século XVIII, é uma derivação do “jalde”, um pigmento de cor amarela utilizado como composto para tintas líquidas (Cruz, 2007, p. 146).
Na correspondência do arquiteto Manuel Caetano da Silva Gaião, responsável pelo decurso das obras no Paço Ducal, ao seu mestre, o arquiteto José da Costa e Silva (Santos, 2018, p. 10), é percetível a preocupação com a qualidade da mão-de-obra:
Vejo o que me diz na sua carta de 20 do corrente a respeito dos estucadores e estimaria muito que Vossa Mercê viesse com elles para lhe determinar como avia ser feita a escaiola e as cores que deve ter, assim nas paredes da Igreja como na abobada, e as pinturas que devem levar, porem no cazo que não possa vir juntamente com elles, Vossa Mercê lhes determine como andem fazer o estuque e as pinturas na abobada velha e que venhão elles bem insaiados do que devem fazer7.
O termo “escaiola” é bastante raro na documentação disponível, o que levanta a dúvida da sua correta utilização neste contexto. Apesar do que este pequeno excerto sugere, a escaiola não é uma técnica de pintura. O seu nome advém de um tipo específico de gesso (o “scagliola”) que é esmagado até se transformar num pó fino, depois misturado com água, cola animal e pigmentos. Através deste processo formam-se diferentes massas com cores que são misturadas e aplicadas como revestimento de colunas ou alçados. Os acabamentos finais incluíam polimentos com pedra-pomes ou revestimentos com cera para que a escaiola ganhasse lustro (Verlag, 2015, p. 17). Observando o que existe hoje no Paço Ducal, julgamos ser provável que o termo se aplique às pinturas de marmoreados, uma vez que, na mesma documentação, abundam as alusões a pinturas sobre estuques:
A caza grande chamada das Tribunas está pronta para se estucar, estou esperando que acabe o pintor de engeçar o teto e logo o mando estucar de branco, e ao mesmo tempo tenho mandado bornir a cantaria dos portaes desta Caza; e de todas as outras athé ao quarto do Princepe, pois estavão pintadas de branco e muito sujas (…); o corredor que dá entrada a Tribuna do Princepe esta semana fica estucado8.
O cruzamento destes dados com a realização de métodos de exame e de análise às decorações ainda existentes na capela do Paço Ducal pode ajudar a esclarecer a natureza da intervenção atrás descrita. O mesmo se aplica aos núcleos de pintura mural, remanescentes no território alentejano e que têm documentação associada. A título de exemplo recordamos uma receita de pintura mural aplicada nos espaços interiores e exteriores, retirada do tratado de José Lopes Baptista de Almeida (1749):
Em primeyro lugar se há de ver se as paredes tem algumas faltas, ou buraquinhos, e tendo-as se lhe taparão de gesso amassado com colla; depois, não estando bem liza, se fará alizar quanto seja possível, e então se lhe dará huma mão de colla de retalho bem quente: feyto isto se lhe dará huma imprimação a óleo, sobre a qual, depois de secca, se poderá pintar: porém se as pinturas houverem de estar ás inclemências do tempo, não será conveniente darlhe a primeyra de colla, mas sim oleo de linhaça fervido com alhos, e hum pouco de azarcão (Almada, 1749, p. 184).
Desconhecemos até que ponto estas receitas terão sido levadas à prática pelos artistas da época, numa altura em que a utilização do óleo estava já bem presente na pintura mural. Disso nos dá conta o seguinte trecho do contrato da pintura da tribuna da Igreja da Ordem Terceira da Penitência, em Monforte, celebrado entre os irmãos da mesma e o pintor portalegrense José da Silva.
Todo o ouro que for nesesario pera a dita obra seja por conta da veneravel ordem, e sentallo por conta delle dito José da Sylva ficando todo o entalhado do mesmo retabollo dourado e os maes filetes que a obra pedir e ao depois envernizado com vernis d’espirito com duas demãos todo o lizo do mesmo retabollo, ficando este fingido de Pedra com a cor de Madre perola ou com aquella que milhor se acomodar com o explandor dourado […] e o vam da tribuna toda pintada de Arquitatura ao primor com sua targe no meyo feita a dita pintura desd’a primeira mão athe a ultima prefeição a ólio9.
Algumas obras justificavam uma diferenciação entre as esferas de ação que competiam a cada um dos intervenientes. Em 1736, Francisco Pinto Pereira (ativo entre 1720 e 1752), um pintor natural de Estremoz, assinou contrato com o reitor da Confraria do Senhor, sita na Matriz de Sousel, para a pintura e douramento do retábulo-mor e tribuna da mesma igreja, “pintada de brutesco com alguns matizes de ouro”, que chegou até aos nossos dias (Figura 1). A escritura notarial especifica, no entanto, que o “oficial de pintor” Francisco Pinto Pereira “se obrigava a trazer dourador que o fizesse por elle e não fazer mas sim somente tudo o que tocase a pintura”, o que sugere que este artista era contratado para exercer apenas o que era a sua especialidade10.
Métodos laborais: a oficina de josé de escovar
Um dos mais prolíferos executantes da técnica do fresco no Alentejo foi o pintor José de Escovar (ativo entre 1585 e 1622), cuja atividade pode ser rastreada através de documentação que acompanhou a transição do século XVI para o primeiro quartel do século XVII. Escovar tinha a sua oficina na rua do Raimundo, em Évora, centro nevrálgico a partir de onde se deslocou, construindo um impressionante corpus de programas murais, muitos deles estando-lhe atribuídos apenas por comparação estilística11. Esse grande volume de obras, sendo bastante heterogéneo, tanto em termos estilísticos, como materiais, sugere a colaboração de outros artistas trabalhando com o mestre. Sabe-se, por exemplo, que os dois filhos do pintor, Luís e José de Escovar, colaboraram com o pai e que, mais tarde, pelo menos um deles lhe terá sucedido nos compromissos assumidos.
Em 1585, Escovar, recebendo na sua oficina um aprendiz, de seu nome Pedro Álvares, comprometeu-se ensinar-lhe tudo o que fosse respeitante ao seu ofício durante um período de cinco anos. Terminado esse tempo, em 1590, Escovar aceitou um novo aprendiz, Manuel Luís, filho de um tecelão da vila de Estremoz (Serrão, 1992, p. 660-661). As disposições presentes no contrato de ensino sugerem que o mestre receberia apenas um aprendiz de cada vez e que a oficina corresponderia, na realidade, ao espaço da residência do próprio pintor onde, para além dele, também se encontrava o seu núcleo familiar. Muito embora os aprendizes entrassem ainda bastante jovens nas oficinas, no caso de Escovar, a situação foi distinta, uma vez que entre os aprendizes que recebeu, um tinha cerca de 18 e o outro 21 anos (Serrão, 1992, p. 660-661). O historiador Fernando Marías, que se debruçou sobre a questão dos métodos de trabalho dos artistas espanhóis, refere que, durante o século XVI, a média de idade para um aprendiz ingressar numa oficina seria os 14 anos, ali permanecendo por um período de tempo nunca inferior a três anos, ainda que esses parâmetros não fossem estanques (Marías, 1989, p. 453).
Até ao final do século XVI, Escovar assumiu diferentes empreitadas, demonstrando a sua capacidade em agradar às clientelas locais. A comprová-lo foi a sua contratação, logo em 1600, por D. António de Noronha (1591-1610), segundo bispo de Elvas, nomeado por Filipe II (I) de Portugal. Antes de assumir esse cargo, D. António fora inquisidor em Córdova e Toledo, uma vez que mantinha grande proximidade com Espanha, em grande parte graças à sua formação na Universidade de Salamanca. Em Elvas foi o grande responsável pelas obras da Sé, entre o final do século XVI e 1610, ano em que faleceu naquela cidade. (Pimenta, 2014, p. 40-42).
O contrato com Escovar destinava-se à pintura a fresco de “todos os painéis do alto da capela-mor desta samta Sé e frizos de emtre os ditos painéis”, ficando o bispo com a tarefa de definir o programa iconográfico12. Os referidos painéis seriam emoldurados por frisos de “pimtura de brutesquo”, num programa que se adivinha grandioso, preenchendo a superfície arquitetónica na sua totalidade, “de modo que fique pouquo campo em bramquo”13. No mesmo ano, Escovar regressaria à obra da capela-mor da Sé de Elvas, desta vez acompanhado pelo dourador João de Moura, para a realização de outros trabalhos14. O contrato previa o douramento das molduras de trinta painéis, das cornijas, do arco triunfal e das frestas da capela, tudo executado com “ouro mate de ollio”. Para além dos douramentos, José de Escovar deveria realizar “a fresquo”, nos alçados da capela-mor, dez painéis com os “des mandamentos da llei de deus de cores comforme a mais pimtura da capella”. Como se verifica, o fresco ficaria reservado para o programa historiado, enquanto os douramentos, nos quais colaboraria João de Moura, se destinavam a fins de caráter ornamental.
Em 1603, Escovar estava em Vila Nova da Baronia (concelho de Alvito), a pedido da Confraria das Almas, para uma campanha na sua capela da igreja matriz. Desta vez o pintor assumiu, individualmente, a totalidade da obra: douramento do retábulo, estofamento de imagens, pintura a óleo sobre tábua (um Julgamento das Almas) e pintura a fresco (no intradorso do arco da capela) (Monteiro, 2013, p. 143) (Figura 2).
Em 1610, Escovar regressou a Elvas para assinar um contrato com as religiosas do Convento de Santa Clara, a fim de realizar a obra de pintura dos altares de S. Francisco e de Santo António, que deveriam ser pintados de fresco “com as mesmas cores finas usadas na capela-mor”15. O contrato previa que o pintor trabalhasse nas residências particulares do Balio D. Rui de Brito, comendador da Ordem do Hospital (Monteiro, 2013, p. 144). Numa rara referência a um programa de pintura mural em arquitetura civil, podemos ler que Escovar ficou obrigado a pintar uma das divisões e a capela da dita residência, a qual deveria ser:
Muyto bem yesada e pymtada de tymtas de tempera muyto boas de brutesquo e de llavores dyferentes hums de outros por serem muytas as ffayxas e fryzos que tem e ao pao das asnas que dessem das quatro agoas hyrão de cores emtresalhados hums duma maneyra e outros de outra e no fryzo em redomdo de toda a caza hirá hum llavor Romano com paisageys e monteryas e llavor romano das mesmas cores de tempera16.
Tanto na obra da capela-mor do Convento das Clarissas de Elvas, como nas residências particulares de D. Rui de Brito, o pintor deveria executar partes da composição a fresco e outras a óleo ou têmpera, de acordo com a importância simbólica de cada local. O fresco estava reservado para os espaços de maior significado (a capela-mor, no caso do Convento de Santa Clara, pintada com as “ystorias” da Sagrada Escritura, ou a capela privada da residência do Balio), enquanto a outra divisão seria decorada com um programa a têmpera. Esta diferenciação espacial, material e, até, conceptual irá, progressivamente, desaparecer durante o século XVII.
A atividade do pintor foi identificada em localidades como Montemor-o-Novo, Évora, Estremoz, Monsaraz, Elvas, Alcácer do Sal, Alvito e Vila Nova da Baronia (Serrão, 1992, p. 665). Resta, contudo, diferenciar o que pertence, concretamente, a Escovar e aos seus colaboradores em cada uma destas empreitadas artísticas.
Outros métodos laborais: parcerias e atividade individual
Talvez o melhor testemunho de uma sociedade de sucesso entre dois pintores foi a que mantiveram Simão Rodrigues (ativo entre 1583 e 1629) e Domingos Vieira Serrão (ativo entre 1570 e 1632), no período do Maneirismo final, estendendo-se a distintos pontos do país (Lisboa, Coimbra, Leiria, Santarém, Évora, Elvas e Portalegre) (Gusmão, 1957, p. 6).
Da sólida parceria mantida entre ambos destacamos a sua passagem pela cidade de Elvas, em 1615, a pedido do bispo D. Rui Pires da Veiga (1612-1616), para a realização das decorações pictóricas da Capela do Santíssimo Sacramento e da sacristia da Sé. D. Rui Pires da Veiga foi o terceiro bispo de Elvas que foi também, entretanto, inquisidor de Coimbra (1589) e de Évora (1592). Em 1612, tomou posse da diocese vindo, no entanto, a falecer pouco tempo depois, em 1616 (Pimenta, 2014, p. 43-44).
A escritura notarial especifica quais os modelos estilísticos que os pintores deveriam seguir: a capela do Santíssimo deveria ser decorada à semelhança da capela-mor da Igreja do Convento da Anunciada e o teto da sacristia seguiria o exemplo da abóbada da Igreja do Hospital Real de Todos-os-Santos, ambos os edifícios localizados em Lisboa17. Nenhuma das obras aqui mencionadas (em Elvas ou na capital) chegou até nós, no entanto, o contrato é extremamente rico em termos de informações sobre as características das obras a realizar, bem como dos materiais a utilizar.
O teto da Igreja do Hospital Real de Todos-os-Santos (perdido em 1750, num incêndio) tinha sido realizado de acordo com o modelo concebido pela mesma dupla de pintores, sendo uma das campanhas pictóricas mais celebradas do seu tempo (Markl e Serrão, 1980, p. 161-215). A obra que, passados apenas dois anos, servia de modelo para a sacristia da Sé de Elvas, consistia num conjunto de quadros recolocados formando um programa historiado, com “nove payneys repartydos no modo e maneyra que maes convenha pera hornato e boa pymtura da dyta samcrestya”18. Ao bispo competia a escolha das “ystoryas” a representar nos painéis da sacristia e da Capela do Santíssimo, sendo que o contrato previa o emprego de ouro e de tintas “as maes fynas e mylhores que se puderem achar”. Os pintores, ainda permanecendo em Lisboa, receberam 200 cruzados de forma a poderem adquirir as “tymtas e ouro” que utilizariam mais tarde. De sublinhar a exigência expressa no contrato, de que os pintores deveriam executar a obra em conjunto “per maneyra que se não ouverem de asestyr ambos, nenhua das couzas comteudas nesta escretura posa sortyr efeyto”19, o que revela o apreço pela parceria desenvolvida entre ambos.
Os custos com as obras da sacristia da Sé (um espantoso total de 400 000 réis) acabariam por inviabilizar a pintura da Capela do Santíssimo Sacramento, pela mesma dupla de pintores20. Os trabalhos de decoração viriam a ser retomados em 1628 por dois artistas de Évora, Diogo Vogado (ativo entre 1608 e 1652) e Bartolomeu Sánchez (ativo entre 1612 e 1641), que se dedicaram ao douramento e pintura do teto da capela: “Imprimado o que se ouver de dourar com imprimadura que llevara bem de secante pera que seque bem e depois de sequa a imprimadura se dará o que se ouver de dourar de mordente o qual llevara mesturado vernis pera que o ouro tenha llustre e depois sera perfillado e escuriçido pera que relleve e realse”21.
A descrição faz antever um teto dourado e pintado a óleo, embora o contrato especificasse que ambos deveriam dar continuidade ao que Simão Rodrigues e Domingos Vieira Serrão tinham, entretanto, executado no teto da sacristia, “ao fresco”. Na base da alteração do programa e dos seus executantes poderão ter estado os custos com a mão-de-obra e os trabalhos envolvidos. Diogo Vogado e Bartolomeu Sánchez eram pintores douradores que, para além de executarem o douramento do teto da Capela do Santíssimo, douraram o sacrário, o retábulo e respetivas imagens, tudo por uns muito mais razoáveis 58 000 réis22.
A morte de Simão Rodrigues ditou o fim da sociedade com Vieira Serrão. Este regressaria uma última vez à Sé de Elvas, após uma passagem por Madrid, onde colaborara na decoração do Palácio do Retiro, ali deixando “coisas admiráveis” (Machado, 1823, p. 57). Uma vez em Elvas, a 13 de dezembro de 1631, foi contratado por D. Sebastião Matos de Noronha (1625-1636), quinto bispo de Elvas e sobrinho de D. António Matos de Noronha. A 14 de julho de 1625 foi nomeado bispo daquela diocese, onde se manteve até 1636. Pelo facto de ter sido fiel aos Filipes, terminaria a sua vida no cárcere da Torre de S. Julião (Pimenta, 2014, p. 45-46). A escritura assinada com Domingos Vieira Serrão determinava que o pintor estava contratado para “Dourar e engessar toda a igreia da Samta Se […] a saber os teutos todos de brutesco de ouro e a pedraria e cullunas bramqueadas de allvayade e apestanadas de ouro […] o branco muito branco e o ouro bem feito e asemtado com seus perfins negros como milhor convier a dita obra”23.
Esta obra, que ainda existe, incluía o revestimento completo com brutescos dourados sobre o fundo branco das três naves, frestas, arcos de pedraria, nervuras e pedras de armas pintadas de cores (Figura 3). O bispo tinha de montar os andaimes e “a goarneser e estucar os ditos teutos d’estuque”, para além de dar alojamento ao pintor e aos seus colaboradores, pagando-lhes um total de 4250 cruzados. Vieira Serrão não era estranho à categoria do brutesco, na qual, aliás, se destacara durante a sua passagem pela charola do Convento de Cristo, em Tomar, em 1592 (Serrão, 1992, p. 187-188). A obra da Sé foi iniciada em abril de 1632, contudo, o pintor faleceu em Elvas, em 11 de junho desse ano. Por esta razão seria concluída, em 1634, por dois pintores locais, Mateus Carvalho e Lourenço Anes24.
Estas campanhas decorativas deixaram a sua marca na região, reinterpretadas pelos artistas locais, a partir das suas oficinas ou em “sociedades” de duração variável.
De entre os exemplos recolhidos na documentação notarial refira-se André da Costa (ativo entre 1611 e 1636) que desenvolveu a sua atividade em torno da cidade de Elvas. A 15 de maio de 1625 estava a trabalhar no douramento do retábulo da Confraria de Jesus, do Convento de S. Domingos, com os seus “vãos de mulldura de azull fino estralados d’estrellas de ouro”25. A 15 de julho de 1630 esteve envolvido no douramento do retábulo da Capela de Nossa Senhora das Candeias, na Sé de Elvas, onde trabalhou com o dourador António Gomes26. Mais tarde, a 11 de outubro de 1636, associou-se ao já referido pintor dourador Lourenço Anes na campanha de pintura do retábulo-mor da Capela de S. João Batista, administrada pelos oficiais da Câmara de Elvas27.
O segundo caso que selecionámos é Afonso Vaz (ativo entre 1657 e 1693), artista bem documentado, trabalhando em douramentos, pinturas a óleo e a fresco em Elvas, Castelo de Vide e Portalegre. A 17 de outubro de 1679, o pintor é citado numa escritura de contrato da obra de douramento do retábulo do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Castelo de Vide, obrigando-se, também, a pintar:
O teto d’abobida [sic] os frisos pello Repartimento da pedraria dourados na forma em que estão e o mais com as tintas finas oleadas que a obra pedir e a frontaria de fora na forma que esta feito de novo e com o mesmo ouro pello lugar em que o tem, e as grades pintadas e oleadas de vermelho com os frisos amarellos […] os frisos da cantaria da dita capella sera estucada que se fara por conta da dita confraria e pintados com tintas boas e de receber e a fresco por conta do dito pintor28.
As referências a “tintas finas oleadas”, bem como ao “ouro” e ao “fresco” sobre “paredes estucadas” suscitam dúvidas quanto à natureza do programa realizado. O documento é interessante uma vez que atribui ao mesmo artista a globalidade da campanha decorativa.
Os dados referentes a Afonso Vaz não permitem avaliar que ligações manteve com outros artistas que se sabe terem estado presentes, com ele, nas mesmas campanhas de obras. O seu parentesco com o pintor Manuel Vaz, ou Manuel Vaz Delicado (ativo entre 1653 e 1657), é uma possibilidade ainda em aberto29. Outra possível relação profissional é com Manuel de Faria (ativo entre 1612 e 1672), pintor portalegrense, a quem Afonso Vaz sucedeu, em 1673, no douramento do retábulo de Nossa Senhora da Consolação, na Igreja de S. Lourenço daquela cidade30.
Menos comum será encontrar na documentação dos séculos XVII e XVIII uma referência exclusiva a uma empreitada de pintura mural. O contrato de pintura da tribuna da Igreja Matriz de Ouguela (Campo Maior), em 1701, constituiu uma exceção. A obra coube a António Marques Lavado, natural de Arronches, envolvendo o revestimento integral daquele espaço com uma decoração de brutesco (Figura 4). “A qual pintura o dito Antonio Marques Lavado se obrigava a fazer boa […] de forma que a abobeda e teto della tenha pintado o Padre eterno e o Spirito Santo com sua nuvem muito bem feita e nas paredes dos lados […] levarão suas arvores ou silvas deitando seus ramos com flores e frutos que enchão as paredes todas”31.
Outro pintor regional foi António Soeiro da Silva (ativo entre 1680 e 1692), cujo raio de ação se restringiu a Castelo de Vide, de onde era natural. A documentação existente para este pintor abrange um período de pouco mais de uma dezena de anos, durante o qual esteve envolvido em contratos de pintura e douramento de estruturas retabulares, tetos e alçados, com outros artistas.
Logo em 1680 firmava contrato com a Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, sediada na Matriz de Castelo de Vide, para realizar o douramento do retábulo da sua capela, a pintura a óleo das suas grades, utilizando “tintas finas oleadas” e a “pintura a fresco do frontispício” da mesma32. Muito embora este contrato não o especifique, sabemos que António Soeiro da Silva colaborou com o pintor Manuel Dias Colaço (ativo entre 1653 e 1688), seu conterrâneo, nesta e em outras obras. A parceria entre ambos durou até 1680, data em que os pintores resolveram dissolvê-la, por ser prejudicial para os seus interesses. Através da “escritura de desistência” vemos que os artistas mantinham um “contrato de prassaria sobre serem meeyros nos ganhos e perdas que ouvese em todas as obras que hum e outro fizessem de dourar” acima do valor de 2000 réis33. Antes de revogarem o acordo, António Soeiro obriga Manuel Dias a ajudá-lo a terminar de dourar o retábulo de Nossa Senhora da Boa Morte, dado que comprova que tinham assumido ambos a dita obra34.
Em 1681, Soeiro da Silva trabalhou no retábulo-mor da Igreja de S. João Baptista de Castelo de Vide, obra que combinava a pintura e a imaginária com a talha dourada, em parceria com o escultor castelovidense André Ferreira. Para além dos douramentos, teria de realizar a pintura de fingimento dos pedestais do retábulo “pintados de pedraria falsa” e ainda três painéis com pinturas35.
A questão da execução de fingimentos surge muitas vezes na documentação, quer quando se trata de pintura mural, de pintura a óleo ou de pintura sobre estuque. No livro de despesas do ano de 1736, do Convento de S. Francisco de Estremoz, pode ler-se que se tinha pago uma determinada quantia a um pintor por “quatro frontaes das cappellas de São Bento, Santo António, Senhora do Amparo e Passos, na parede, fingindo pedra”36.
Estes fingimentos não são descritos em pormenor, podendo tratar-se de marmoreados ou embutidos ao estilo florentino introduzido pelo arquiteto João Antunes, em Lisboa, que rapidamente se espalhou por todo o território nacional (Coutinho, 2003, p. 545). Antes de começarem a ser reproduzidos através da pintura mural, os embutidos de mármore foram muito apreciados pela sua elevada exigência técnica e valor artístico. Recordamos os pormenores que envolveram o projeto de um retábulo de “pedra embotida” para a Capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, matriz de Vila Viçosa, pelos pedreiros eborenses José de Oliveira e Miguel Pinheiro que, ao que se sabe, nunca foi construído. A planta tinha sido enviada a partir de Lisboa e delineada pelo padre Manuel Pereira, da Congregação do Oratório, e o contrato expressa bem a preocupação com a qualidade dos materiais a utilizar, sublinhando-se que não deveria ser utilizado “betume” para imitar a pedra:
Nestes embotidos não entrara senão Pedra putea de Lixboa amarella e vermelha; e a branca ade ser da melhor que ouver e se custuma tirar nesta villa e seus oridores sem bilheira algua e todas as veses que em qualquer pedra se pegar suprimento com botume lhe não sera aseita e tambem de nehua sorte se lhe não aseitara se se lhe vir botume que supra falta da Pedra37.
Por se tratar de uma técnica dispendiosa, os embutidos de pedra foram reproduzidos pela pintura mural, diretamente sobre o suporte de pedra (mármore ou granito), ou sobre estuque. O mesmo processo de mimetização de pedras ornamentais foi aplicado aos retábulos de alvenaria de cal e areia, com acabamentos polícromos sobre estuques, cuja fortuna artística, no Alentejo, alcançou o século XIX (Monteiro, 2016, p. 367-376).
A pintura de fingimento de mármore sobre a própria pedra mármore é um fenómeno intrigante que poderá estar relacionado com o facto de o mármore ser um material “nobre”, característica que deveria ser realçada. Muitas destas campanhas murais desapareceram devido à fragilidade da técnica envolvida ou por falta de intervenções que acautelassem a sua preservação (Figuras 5 e 6).
Conclusão
A existência de documentação em número substancial, para um período cronológico extenso, é um aspeto que favorece a realização de uma análise sustentada e transversal no território do Alentejo entre os séculos XVI e XVIII. Este facto permitiu o estabelecimento de ligações entre pinturas realizadas em distintos pontos desta região, rastreando o percurso dos pintores que por ali se moveram.
A nossa análise está, inevitavelmente, condicionada às lacunas existentes nessa mesma documentação. As fontes documentais, embora diversificadas, são apenas uma ferramenta para o entendimento desta temática, carecendo de interpretação e contexto com o contributo de outras disciplinas.
Para o presente estudo importa sublinhar que a pintura “ao fresco” cedeu, lentamente, o lugar a técnicas mistas que envolviam a utilização do óleo ou da têmpera, mesmo quando é constante a preocupação com a qualidade dos materiais. O perfil dos artistas ativos entre os finais do século XVI e do século XVIII aponta para uma maioria de pintores douradores.
O corpus da pintura mural alentejana está hoje ameaçado pelas constantes pressões impostas sobre o património edificado, pelo que se torna cada vez mais pertinente interrogarmo-nos quanto ao seu lugar no futuro desta região.