Introdução
A grande sala circular estava escura, e Bastian levantou a pedra bem alto. A luz que dela irradiava era mais forte do que a de uma vela, mas não bastava para iluminar o compartimento. Via-se apenas que as paredes estavam cobertas de filas de livros até uma grande altura (Ende, 2022, p. 213).
Esta citação, retirada dessa obra única da literatura para crianças que é A história interminável de A a Z, de Michael Ende, de 1979, corresponde ao momento em que Bastian chega à Biblioteca de Amargante, «a mais bela cidade de Fantasia», levado por Querquobad. Aí o protagonista desta narrativa verá que os livros estão organizados em histórias divertidas, emocionantes, sérias ou curtas. Contudo, o mais importante é que a sala guarda as obras completas dele próprio, Bastian Baltasar Bux, contador de contos.
Este episódio ilustra bem o fascínio de muitas pessoas por livros e bibliotecas, e a esperança, por vezes até presunçosa, de ver publicada e reunida uma obra que muitas vezes é um contributo modesto -porém, revelador - para a construção da memória coletiva. Neste intuito nem todos viram colmatadas as suas expectativas. É comum nos dias de hoje fazer justiça às contribuições de autores que, pelas suas características pessoais, sociais, culturais, ou de qualquer outra índole, que se encontravam no esquecimento. Entre eles, são particularmente realçadas as criadoras, que têm sido sistematicamente subestimadas ou desprezadas, ao ponto de os poderes públicos terem desenvolvido iniciativas tendentes a remediar esta desvalorização. Orientando o olhar para o tema em estudo, o movimento operário, surge desde logo a pergunta: qual a participação desse conjunto de homens e de mulheres que lutaram pela difusão do pensamento socialista em Portugal? Para além da sua ação «revolucionária», das greves, das manifestações públicas que serviam de apelo para reclamar o seu lugar na sociedade coeva, das festas operárias e da publicação de jornais, etc., existiu uma produção escrita própria? Foi ela apenas militante? Quais as singularidades e os seus limites? Partimos de uma hipótese de trabalho: a de que grande parte da memória histórica e coletiva do movimento operário é invisível aos olhos dos investigadores e da cidadania. Como consequência, é gerada uma imagem de certa forma deturpada da realidade ao não se considerar o papel destes pensadores na construção da memória dos povos e das sociedades. É sobre esta intervenção, por vezes inédita, que tentaremos lançar alguma luz nas páginas seguintes.
Imprensa e propaganda
No seu conhecido estudo sobre o movimento socialista em Portugal, Maria Filomena Mónica, referindo-se aos militantes socialistas, escreve esta afirmação, um tanto lapidar: «Poucos deixaram uma obra escrita significativa» (Mónica, 1985, p. 56). Realmente, o estudo e análise do movimento operário nos meados da década de 1980, poucos anos depois do fim da ditadura salazarista, estava em plena evolução e não tinha alcançado o desenvolvimento historiográfico que terá em décadas posteriores. Contudo, outros estudos, como A formação da classe operária portuguesa. Antologia da imprensa operária (1850-1934) (1982), Poemas operários 1850-1926 (1983), e Manuel Luís de Figueiredo, um socialista ignorado (1986, com Maria Goretti Matias), junto com os trabalhos de vários historiadores1, apresentaram outras perspetivas que questionam aquela afirmação, sobretudo após a publicação, em 1989, do Dicionário do movimento socialista português, de Joaquim Palminha Silva, uma tentativa de sistematização biográfica dos militantes, desde os primórdios da divulgação das ideias socialistas em Portugal até à contemporaneidade do autor, pois incluiu personalidades coevas, como Mário Soares. Entre os muito incontestáveis atrativos desta obra, infelizmente não continuada, está o cuidado por incluir a «Bibliografia» de cada um dos biografados como testemunho do seu apoio às organizações partidárias e à difusão do pensamento socialista. Neste sentido, estas referências permitem descobrir a existência de textos de divulgação doutrinária ou literária, entre outros, na sua maioria em jornais, devido à direção, edição, ou redação de uma dada publicação ser da responsabilidade do militante biografado. Ao olhar subtil do investigador evidenciam-se duas realidades: de um lado, a presença de uma elite de operários intelectualizados apesar dos limites do ensino académico durante os séculos XIX e XX, que tem o seu reverso no sucesso autodidata (Peralta García, 2021); e de outro, a existência de uma imprensa operária que brotou vinculada, inicialmente, às associações mutualistas surgidas a partir de 1834 (Silva, 1989; Tengarrinha, s.d., p. 490). Títulos como o Eco dos Operários (Lisboa, 1850), órgão da Associação dos Operários; o Jornal do Centro Promotor (Lisboa, 1852), órgão do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas; O Jornal dos Operários (Porto, 1852); e o Jornal do Trabalho (Lisboa, 1852), folha semanal socialista, acolheram colaborações de personalidades preocupadas com as condições de trabalho de um proto proletariado nascente (Sá, 1991, p. 62-ss). No Eco dos Operários, por exemplo, foram habituais as assinaturas dos intelectuais «burgueses», entre eles, António Lopes de Mendonça, Sousa Brandão e Latino Coelho, mas assomam também as de operários, como o serralheiro José Maria Chaves. Contudo, são de realçar as dos tipógrafos, classe a que pertencem, entre outros, Vieira da Silva Júnior, José António d’Amorim - que assina «compositor typographico» -, Pedro C. d’A. Chaves - «operario typografico» -, e F. Gomes de Amorim, que se define a si próprio como «Poeta operario». Os textos, sob a forma de artigos ou, como neste último caso, de composições líricas, são resultado de um operariado intelectualizado que reflete particularmente sobre os problemas de classe, sem transmitir ainda um pensamento militante. Tal só acontecerá no início de 1872, quando surge O Pensamento Social (1872-1873), órgão da associação de resistência Fraternidade Operária, secção da Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.) em Portugal. A sua desaparição dois anos depois coincidirá com a fase de maturidade industrial da imprensa tipográfica, balizado pelo professor José Tengarrinha entre 1865 e 1885 (Tengarrinha, s.d., p. 490). É neste período que nasce o Partido Socialista de Portugal (1875)2 e, com ele, os seus jornais militantes. A partir desta data e até à institucionalização do Estado Novo, em 1933, o movimento socialista foi responsável por um conjunto de publicações que, diretamente produzidas sob a sua alçada ou por ele inspiradas, veicularam a denúncia das condições de vida dos trabalhadores, mas também a divulgação do desenvolvimento desta agremiação e do seu pensamento doutrinário. Como referido, muitas delas assumiram uma feição artística ou de criação literária que tem sido menosprezada devido ao seu carácter militante3.
Apesar de refletirem as ideologias operárias do final do século XIX e início do século XX, estas publicações têm valor literário. No entanto, a historiografia tem-se ocupado delas apenas no contexto da análise das ideologias operárias, sendo necessária uma abordagem ao pensamento militante sob outros prismas (Peralta García, 2019a).
A dimensão instrumental atribuída à imprensa fará com que nela prevaleça a opinião face à informação. Ainda que muito críticos do modelo burguês dos jornais, cujas preocupações crematísticas terão provocado o abandono de qualquer ética e moral, os socialistas reproduziram-no. Contudo, tentaram furtar-se ao sensacionalismo enfatizando a análise dos factos com o ânimo de criar cidadãos e militantes informados. Daí decorreu a conservação da estrutura formal: o editorial - o chamado «artigo de fundo» -, as secções informativas dedicadas à política local, nacional e internacional - neste caso reorientada fundamentalmente à difusão das atividades dos partidos operários irmãos, da Europa -, os artigos de opinião, a correspondência e o folhetim, ao que acrescentaram outras dedicadas aos problemas das associações de classe, à difusão da vida partidária - que comportava a publicação de atas, estatutos e regulamentos diversos -, e à divulgação do pensamento socialista. Destas, evidenciam-se duas secções por acolherem os textos dos militantes, os quais, dispersos por estas publicações, contribuem para a memória do movimento socialista em Portugal. Referimo-nos aos artigos de opinião e ao folhetim (Peralta García, 2020, 2009).
Fora do circuito público
Antes de desenvolver a importância destas secções para compreender a dimensão oculta das obras militantes, é preciso sublinhar a falta de visibilidade pública do próprio movimento socialista no seu início, particularidade que, em termos gerais, se manteve, exceção talvez feita aos anos finais da Monarquia, pois foi durante a Primeira República que o Partido Socialista Português sofreu, paradoxalmente dadas as características do novo regime, de um retraimento que se prolongou até à ilegalização dos partidos políticos em 1933. Nos inícios da década de 70 do século XIX o movimento operário, ainda pouco organizado, contava com algumas agremiações não militantes, surgidas no âmbito dos diplomas legais dos anos 30 e, sobretudo, a partir da década de 50. Após a fundação da A.I.T. em Londres, em 1864, serão os socialistas espanhóis que tentarão uma primeira aproximação aos seus correligionários em Portugal, em 1870, mas derivará em fracasso e só no ano seguinte, no contexto das consequências internacionais do impacto nos poderes públicos da Comuna de Paris, se consegue este contacto. Vários membros do Conselho Federal da secção espanhola da A.I.T. deslocaram-se a Lisboa fugindo da pressão policial, e será aqui que conhecerão, primeiro, Fontana e Antero de Quental no Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas e, posteriormente, o grupo chefiado por Nobre França. Das conversas com os primeiros, pautadas pelo sigilo, surgiu a oportunidade da constituição da secção portuguesa da A.I.T. (Lorenzo, 1974, p. 160). Todavia, os operários portugueses não eram alheios a esta organização, embora as informações que lhes chegavam fossem escassas e pontuais. Na cidade já tinham surgido alguns foros de debate informais que explicam, a par da experiência proveniente da criação das organizações mutualistas, a predisposição dos trabalhadores lisboetas para a constituição da secção correspondente. Numa carta de 24 de junho de 1872 endereçada a Friedrich Engels, Nobre França exprimia-se assim:
Quando foi a guerra da França reuniamo-nos n’uma praça arborisada (square) e apreciavamos a nosso modo os sucessos. As nossas apreciações eram politicas. Seguiu-se-lhe a Commune, e o nosso pequeno grupo começou a discutir as questões sociaes. Não conhecíamos a existencia da Internacional, a que os periodicos (news papers) se referiam raramente, mas comprehendemo-la e excitou-nos curiosidade4.
O relato de Nobre França sobre o modo como o seu grupo tomou conhecimento da existência de uma organização para a defesa dos interesses dos operários ao nível mundial mostra também que, à semelhança do que acontecia com a célebre sociedade chefiada por Antero de Quental, o Cenáculo, existia uma outra formada por um conjunto de trabalhadores que reunia de maneira informal para discutir assuntos diversos, fundamentalmente da política coeva e do impacto do capitalismo na sociedade, na altura em que o movimento socialista se organizava em Londres. Ambos agiam separados e em simultâneo. Por isso, o caso é elucidativo da trajetória dos dois agrupamentos pois, ao contrário do que aconteceu com o Cenáculo que superou os limites das reuniões privadas para se tornar público nas afamadas Conferências do Casino Lisbonense, o grupo de Nobre França permaneceu sempre oculto à sociedade lisboeta. Explicam este encobrimento as diferenças socioculturais dos seus membros, e, consequentemente, o isolamento, constituindo ambas sociedades fechadas cujos membros se relacionavam entre si por laços de amizade. Os elementos do Conselho Federal espanhol quebrarão, sem o saber, esta situação pois, no intuito de entrar em contacto com os socialistas lisboetas estimularam a relação entre todos. Anselmo Lorenzo, nas suas lembranças daqueles dias, salienta que José Fontana agia sozinho na divulgação do pensamento socialista (Lorenzo, 1974, p. 160). Por isso, foi devido ao seu empenho que alguns operários assistiram às palestras do Casino Lisbonense. Depois, será o próprio Nobre França quem resolve apoiar os seguidores de Fontana e de Antero quando este se afastou dos trabalhos de organização da secção da A.I.T., em Lisboa, para ir preencher a vaga de professor no Porto, enquanto Fontana se ocupava de dar corpo a uma associação de resistência denominada Fraternidade Operária. Imediatamente, o seu órgão de expressão, O Pensamento Social, acolherá os primeiros escritos militantes, onde colaborarão operários como Nobre França5. Neste sentido, veja-se a seguinte declaração, bem elucidativa dos propósitos do jornal neste âmbito:
Seja dito, com respeito ao nosso jornal, que temos tenção, depois de concluido o folhetim d’este número, dar publicidade a outros escriptos, a que daremos a fórma de livro, para poderem ser separados e formarem volumes, o que nos parece será agradavel e util a nossos companheiros6.
Preto sobre branco, o jornal propunha a publicação das obras da autoria dos militantes operários, nacionais e estrangeiros, uma iniciativa que o Partido Socialista veiculará nas décadas seguintes com o objetivo de criar as conhecidas «Bibliotecas Socialistas». De facto, esse número e os seguintes incluíram a conferência que o médico Eduardo Maia (1845-1897) proferiu na Federação Académica de Lisboa7 (Fonseca, 1975, pp. 185-202). O jornal acabará meses depois sem concluir a tarefa a que se propusera, embora o texto fosse finalmente publicado em edição avulsa pela Tipografia do Futuro, da qual era proprietário Francisco Gonçalves Lopes (?-1893), um dos fundadores históricos do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas (Silva, 1989, pp. 67-68).
Opúsculos
Como acabamos de referir, no início, a organização do movimento operário contou com o apoio de algumas empresas gráficas, através da disponibilização das suas instalações para a impressão dos órgãos de comunicação e de outras publicações sobre temas diversos de autores socialistas que, de outro modo, jamais teriam sido editadas. Tratava-se, muitas vezes, de pequenos folhetos monográficos de natureza maioritariamente doutrinária. Em Lisboa salientamos a já mencionada Tipografia do Futuro que, para além da conferência de Eduardo Maia antes citada, publicou, por exemplo, em 1871, O que é a Internacional de Antero de Quental (30 p.), entre 1872 e 1893, o jornal O Pensamento Social e, em 1873, os Estatutos da Associação dos Trabalhadores na Região Portuguesa (38 p.). Entre os operários era especialmente conhecida a tipografia do Gutierres, na rua do Norte, onde durante algum tempo se editou O Protesto Operário, órgão do Partido dos Operários Socialistas de Portugal (P.O.S.P.), que passou depois a ser da responsabilidade do Ateneu Operário, o qual possuía a Cooperativa de Produção Tipográfica. Em 1891 surgiu o Instituto Geral das Artes Gráficas, propriedade da Liga das Artes Gráficas de Lisboa - o sindicato tipógrafo -, que se empenhou na publicação de obras de alguns membros da intelectualidade socialista vinculados à dissidência gnequista chamada Partido Socialista Português (P.S.P., 1895). Entre outras, deu à estampa, em 1893, os trabalhos de um carismático jovem, Ernesto da Silva (1868-1903), Fontana e Sousa Brandão (16 p.) e Proletários e burgueses (16 p.) (Peralta García, 2023c, pp. 45-63), para além dos estatutos de diversas associações operárias, como a Liga das Artes Gráficas; a Cooperativa Operária de Exploração de Pedreiras e Manufacturas de Cantarias; a Associação de Socorros Mútuos Previdência Municipal da Sociedade dos Oficiais de Encadernadores e Artes Anexas; a Sociedade Cooperativa de Operários Constructores Civis; a Cooperativa de Pão «A Persistente»; e a Associação dos Canteiros, entre outras. Publicou ainda alguns jornais, como O Independente (1893), A Comuna (1896) e A República Social (1908), dirigida por Azedo Gneco (1849-1911) e, também, A Burla Capitalista (1897), de Ladislau Batalha, uma monografia de 237 páginas.
O estudo dos estabelecimentos tipográficos deverá, portanto, revelar alguma da produção bibliográfica dos militantes socialistas. A obra de José Fontana, ao que sabemos composta por O quarto estado, de 1872 (Fonseca, 1973, pp. 93-101) e As cooperativas, de 1873, deveria ser objeto de recolha, análise e posterior publicação. Também as de José Fernandes Alves, Azedo Gneco, Ladislau Batalha, Jaime Ferreira Dias, Ernesto da Silva, Manuel Luís de Figueiredo, Sotto Maior Júdice, José de Macedo, Eduardo Maia, Manuel José da Silva, António Pedro Muralha, César Nogueira, Francisco Viterbo de Campos, José Fontana da Silveira, entre tantos outros (Silva, 1989)8.
Livros em folhetim
O episódio ao qual fizemos referência anteriormente - dois grupos de debate contemporâneos no tempo e no espaço, mas com diferente percurso público -, evidencia a vulgarização de uma imagem um tanto falseada da receção das ideias socialistas em Portugal, tradicionalmente atribuída à ação de Antero de Quental e aos seus escritos, entre os quais, o opúsculo O que é a Internacional? (1871), que redigira precisamente para difundir a existência da A.I.T. e da associação que em Portugal lhe dava suporte, a Fraternidade Operária (Mónica, 1985, pp. 56-58). Mas se estes são factos incontestáveis e assumidos pela historiografia contemporânea na explicação da construção organizativa do movimento operário, também é de realçar a presença de pensadores muito menos conhecidos hoje, mas de extraordinário vigor intelectual e presença nos meios operários coevos. Do compromisso destes homens resultou a aparição, após a fundação em 1875 do Partido Socialista de Portugal, do seu órgão de expressão sob o nome O Protesto (1876-1894) - a partir de 1883 O Protesto Operário. A nova publicação só abrirá a secção do folhetim em dezembro de 1876 com uma obra literária, um poema de Emilio Pérez Ferrari (1850-1907)9, na altura um jovem intelectual espanhol que tentava consolidar-se como autor literário (Martínez Cachero, 1959, pp. 95-153), com tradução de Sotto Maior Júdice (1834-1903), que era, por sua vez, poeta e autor do poema Hontem e Hoje!..., que seria publicado no ano seguinte, no mesmo jornal e na mesma secção10. 1877 será o ano da eclosão folhetinesca no órgão oficial do Partido que, em números sucessivos, divulgará relatos ficcionais: A canção dos proletarios russos (O Protesto, nº 77 e seguintes), A água de Lourdes (Idem, nº 85 e seguintes), e A morte do diabo (Idem, nº 87 e seguintes). Ou seja, no início o folhetim dos jornais socialistas acolhia trabalhos literários, de lírica e narrativa, originais ou traduzidos, para abordar depois outros temas, particularmente a divulgação científica. Daí a publicação do Catecismo Científico, de Carlos Barroso, onde são tratadas noções de astronomia, geologia, mineralogia e botânica11. A falta de conservação dos números publicados entre 1879 e 1881 impossibilita documentar, para este período, a existência de conteúdo doutrinário que, em qualquer caso, são cronologicamente posteriores às obras antes mencionadas. Por isso, a primeira obra deste tipo de que temos notícia data de 1881 intitulada O 18 de março. Na província, sobre a experiência da Comuna de Paris, em tradução de A. F. Guerreiro e sem indicação de autor12. Em 1884, sob o significativo título Apontamentos para a História do Socialismo em Portugal, é publicado, pela primeira vez, um documento da gestão interna do associativismo oitocentista. Trata-se do Relatorio que a comissão nomeada no Centro Promotor apresenta para conhecimento dos seus trabalhos com as greves dos operários da fabrica de laníficios do sr. José Diogo da Silva, em Oeiras, e com a dos cigarreiros de várias fábricas, da autoria de José Fontana. Transcrito por Azedo Gneco13, para além de ser um dos poucos textos da autoria de José Fontana, testemunha a orientação socialista que se tentava implementar no Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas nos fins de 1871. Constitui também uma das primeiras manifestações de proposta ativa de solução dos conflitos sob a perspetiva das ideias operárias.
Este modelo jornalístico iniciado com O Pensamento Social e continuado por O Protesto será assumido pelos periódicos que daí em diante nascerão sob a alçada do P.O.S.P., quando este conseguiu unificar, em 1878, os diversos grupos de tendência socialista que ainda subsistiam de forma isolada, e as associações de classe, constituídas no calor da aprovação da lei de 9 de maio de 1891. Nestes anos finais da Monarquia, serão então divulgadas as obras da doutrina socialista, compostas por traduções de originais em francês e em espanhol, como as que apareceram em A Federação, semanário editado pela Federação das Associações de Classe, vinculada ao P.S.P., que publicou, em 1897, A Internacional. Sua historia, organisação, e fins, de Benoît Malon e, em 1898, A pátria. Estudo filosófico, de A. Hamon. Em A Obra, órgão da Associação de Classe dos Carpinteiros Civis, veio à luz, pela primeira vez, a versão em português de As prisões, de Kropotkine, em 189714.
Paul Lafargue testemunhou, em 1887, a publicação da tradução de A religião do capital (no mesmo ano do original em francês) e, em 1892, à de A autonomia (original de 1881), com tradução de F. A. (Francisco da Assumpção?), ambas em O Protesto Operário. Outras obras editadas no folhetim deste jornal foram O darwinismo social, de Émile Gautier, em 1890, com tradução de João Ramos Lourenço (1861-1937)15 ou Mentiras convencionais da nossa civilização (original de 1883), em 1892, de Max Nordau, sem indicação de tradutor. Alguns excertos de Précis historique, théorique et pratique de socialisme (original de 1892), de Benoît Malon, traduzidos por Ernesto da Silva, foram também publicados em O Operário de Coimbra em 1895 e de forma avulsa na Tipografia do Comércio no mesmo ano (Peralta García, 2023c, pp. 343-350). Um excerto de A Communa de Pariz, sem indicação de autor, foi publicado em O Proletario (5 de maio de 1898, p. 3) com tradução de José Augusto Guedes Quinhones (1861-1911).
Toda esta atividade de tradução enquadra-se no âmbito da propaganda e difusão doutrinária, insuficientemente valorizada pela historiografia, para a qual também os socialistas portugueses deram o seu contributo. A falta de estudos sobre esta questão não permite avaliar corretamente o volume e impacto da publicação das obras doutrinárias na imprensa operária (e, por vezes, republicana) na secção dedicada ao folhetim durante o período compreendido entre 1875 e 1933. Podemos apontar alguns dados para os anos finais da Monarquia a partir dos trabalhos de Maria Rita Lino Garnel e José Pedro Reis sobre um dos grandes vultos do socialismo português oitocentista, Heliodoro Salgado (1864-1918) (Garnel, 1997; Reis, 2018) que, a título de exemplo, assinalam algumas referências publicadas em diversos jornais16. Destacamos Na Russia (1885), sobre o anarquismo como corrente de pensamento dominante neste país, original que permanece inédito nas páginas de O Protesto Operário17 e A igreja e o proletariado, até ser publicado, entre 1895 e 1896, em O Eco Metalúrgico, órgão da Confederação das Associações de Classe Metalúrgicas de Lisboa, e antes de ser dado à estampa em 1900. Com efeito, são estas publicações que deveriam ser integralmente identificadas, no intuito de recuperar uma obra que se adivinha considerável. Entre 1910 e 1926 foram publicados textos como Escolas socialistas, de Costa Ritto, em A Batalha Socialista (11 de abril a 20 de julho de 1913); Das relações do comércio de exportação com o proletariado marítimo, de Mário Nogueira, em Voz do Povo (7 de março de 1913); e O problema internacional e a guerra de classes, de Ladislau Batalha, em Voz do Povo (8 de julho de 1917). As duas repúblicas, de Azedo Gneco (Revolucionário, 1 de maio de 1912), é um artigo escrito em 1883 que integra a polémica que o autor viveu com o seu antigo correligionário no P.O.S.P., Felizardo Lima, sobre a oportunidade de o partido concorrer às eleições em aliança com o Partido Republicano Português, onde Gneco tentava anular os argumentos do seu oponente explicando a diferença entre «democracia-burgueza» e «democracia-proletaria»18. O Primeiro de Maio. Esboço histórico das suas origens, de César Nogueira, surgiu pela primeira vez em República Social, em 1917, em edição separada. Em 1926, pouco antes do golpe de Estado militar, Gneco integrou o folhetim desse jornal, e ainda a editora. Sobrevivente do regime autoritário, esta editora publicaria de novo este texto em 1976, em plena reconstrução democrática. Em 1918, O Combate, órgão do P.S.P., foi o primeiro a publicar o Projecto de uma nova Constituição Política da Nação Portugueza, de Eugénio Battaglia, entre 24 de fevereiro e 12 de maio de 1918, antes de ser dado à estampa na Typographia Eduardo Rodrigues, em 1919. A 1 de setembro de 1918, a Voz do Povo publicou A questão das subsistências, de António Maria Abrantes, apresentada no Congresso Nacional Socialista de Coimbra em 1917, e publicada nesse mesmo ano, em Lisboa, na Tipografia Leiria (7 páginas) (Peralta García, 2009, pp. 77-80). Infelizmente, não possuímos dados para o período da Ditadura Militar (1926-1928) e para os anos prévios à institucionalização do Estado Novo.
Literatura militante
Os textos doutrinários, programáticos e de divulgação científica correm em paralelo a esse outro grande conjunto de obras que são os textos literários. O objetivo destes, era servir simultaneamente de denúncia das condições laborais e de vida, de difusão das ideias socialistas, e de entretenimento para os trabalhadores. Os jornais operários O Protesto, O Operário, O Protesto Operário - este já como órgão do P.O.S.P. -, A Federação, A Lucta, O Primeiro de Maio - vinculados ao P.S.P. -, entre outros, através da secção do folhetim, mas não só, permitiram a difusão de uma produção que as editoras, como expectável, rejeitavam, ou nem sequer contemplavam em dar à estampa, sobretudo as editoras e tipografias não vinculadas ao movimento operário - a peça Os jesuítas (1883), de Manuel Luiz de Figueiredo, publicada pela Biblioteca Progresso Teatral, é uma das poucas exceções (Figueiredo, 1883).
Os dados de que dispomos indicam que, logo desde o início da criação do Partido Socialista de Portugal, os militantes começaram a escrever peças de teatro destinadas à leitura pública e à encenação, primeiro a cargo das companhias de teatro popular e, mais tarde, por grupos amadores surgidos no seio das agremiações socialistas19, especialmente durante a Primeira República (Peralta García, 2000, 2017). A elas juntaram-se as composições líricas e as narrativas (Peralta García, 2007). A aparição, em 1893, de A Federação irá marcar um modelo de referência pela introdução sistemática, e não apenas acidental, de poemas, contos e textos dramáticos, que retomavam em muitos casos a tradição clássica do debate de ideias em que duas personagens refletem opiniões diferentes sobre um tema concreto. É neste jornal que, entre 1893 e 1895, vêm à luz as propostas líricas de Sotto Maior Júdice e os contos de Blouse, F. Sá Chaves, J. Augusto Vieira, Laurindo e Valmiro, Armando da Cunha, Cândido Leal, Cláudio Lemos e Ernesto da Silva, perfazendo um conjunto de perto de trinta textos. A maioria deles é devida à pena deste último (Peralta García, 2023a, pp. 89-189), que se distinguiu por estimular a introdução de obras literárias nas páginas dos jornais nos quais integrou o corpo dos redatores - A Federação, órgão da Federação das Associações de Classe -, e dirigiu - A Obra, órgão da Associação de Classe dos Carpinteiros Civis.
Assim, é de salientar a publicação em A Federação de Um reprobo, nas vésperas do Natal de 1893, o primeiro conto socialista de que temos notícia em Portugal, em cujo enredo é abordada a miséria infantil (Peralta García, 2023a, pp. 89-96). O abandono do Partido em 1897, após um violento confronto ideológico com Azedo Gneco, fez-se notar neste semanário, pois não só parou de publicar estas obras, como acabou por eliminar a secção do folhetim das suas páginas. Paralelamente, a sua presença na direção de A Obra traduziu-se numa maior ênfase neste tipo de textos. Ele próprio publicou aí duas peças teatrais: O despertar. Peça em 1 acto (1900) e Nova Aurora. Apropósito em 1 acto e 4 quadros (1900). Uma terceira peça, Vencidos (1902), encontra-se, não concluída, nas páginas de Seculo XX (Peralta García, 2023a, pp. 391-468).
Para o período da Primeira República salientamos: A confissão (1908), de Botto Machado em O Povo Livre, em 1911; Germinal, de Zé de Pintéus, sem qualquer semelhança no argumento com o romance homónimo de Zola, em A Luz do Operário (abril e março de 1912); O moleiro socialista (1919), de Miguel A. Silva Ferreira, que apareceu no órgão do P.S.P., O Combate, na nova secção «Contos revolucionários», na qual foi publicada Uma alma (1919), de Artur Portela. Outros relatos foram: Scenas da vida proletaria (1922), de M. S. Guimarães, em República Social; O comboio nº 13 (1926) e A noite vermelha (1927), de José de Oliveira, em A União; e O convento de Corpus Christi de Gaia (1930), de José Diniz, em Luz do Operário (Peralta García, 2009, p. 79).
Na tipografia Empreza de Portugal saíram do prelo as obras do carpinteiro e militante socialista José Augusto Guedes Quinhones (1861-1911), A ignorância perante o raio. Conto (1899), O excomungado (1899) e Os jesuítas (1899). Em maio de 1902, coincidindo com o primeiro dia de cada mês e com periodicidade mensal, foi lançada nesta mesma editora Leituras Populares Socialistas, um novo projeto de divulgação doutrinária dirigido conjuntamente por António Pedro Muralha (1878-1946) e Mateus Ruivo, integrado por textos que se pretendiam de leitura fácil. No primeiro número surgiu uma narrativa breve intitulada O fim dos que trabalham, de Conceição Pires. Outros textos literários, narrativos ou líricos, viram a luz sob a epígrafe «Contos simples para crianças»: Na aldeia, de A. P. Muralha e A pastorinha, de Adolfo de Magalhães20, bem como A orphã, um relato de A. P. Muralha21.
A experiência jornalística: artigos e colunas
Junto ao folhetim, os artigos de opinião configuram a outra grande secção depositária da memória do socialismo português. Ao contrário daquele, que tinha um lugar fixo nas folhas do jornal, estes encontram-se dispersos, embora concentrados maioritariamente nas duas páginas iniciais. Se o folhetim acolheu uma ampla variedade de obras publicadas de forma parcial, ainda que constituindo produtos estruturados e acabados, já os artigos jornalísticos, por vezes organizados em «colunas», segundo o modelo imposto desde os meados do século XX aos textos de opinião, conformam um outro tipo de publicação de conteúdo político, doutrinário, social e de crítica literária (ou teatral), cuja recolha obriga à intervenção do editor, que deverá estar atento a aspetos como a questão da autoria, um dos primeiros elementos a esclarecer. No caso dos artigos publicados em O Pensamento Social, por exemplo, a maioria deles carece, infelizmente, de assinatura, o que dificulta esta atribuição22. Remetemos à proposta da autoria de Carlos da Fonseca em A origem da Primeira Internacional em Lisboa (Fonseca, 1973, pp. 203-205). De salientar que os primeiros textos deste teor foram escritos pelos fundadores históricos do socialismo português, como se constata através das iniciais J. F.23 (José Fontana) e N. F.24 (Nobre França). No caso de José Fontana estes textos são a confirmação dessa obra perdida, mas fulcral, para o conhecimento das origens das ideias socialistas em Portugal. Conhecedores das suas ligações com os grandes nomes do movimento operário internacional, os socialistas lamentavam que, após a sua morte, nada disso se conservasse:
José Fontana, o homem que mais completa podia escrever a historia do socialismo revolucionario em Portugal, morreu deixando apenas uns vagos apontamentos, publicados no antigo jornal O Protesto. Além d’isso, os seus relatorios, as actas que escreveu, as cartas que d’elle existem são d’um laconismo desesperador25.
Reportando-nos, de novo, à já citada obra de Joaquim Palminha Silva, para além dos autores antes mencionados, acrescentamos também os nomes, entre outros, de João Ramos Lourenço e Margarida Marques, cuja obra parece limitar-se apenas ao seu contributo nos jornais operários, que esperam o labor paciente do investigador para trazer à luz o conjunto dos textos da sua autoria (Nogueira, 1964, pp. 331-338). É também o caso de Eudóxio César Azedo Gneco, protagonista de uma longa e intensa militância socialista que, pela sua qualidade de membro do Partido Socialista de Portugal desde os inícios desta formação à chefia da dissidência do Partido Socialista Português, merecia ver recuperada e publicada uma obra volumosa e dispersa pelos jornais coevos. A bibliografia providenciada por Joaquim Palminha Silva testemunha, ainda que de forma ténue, os limites dos seus escritos. Este autor concretiza até perto de vinte referências de trabalhos publicados entre 1895 e 1910, incluindo os redigidos enquanto dirigente partidário, aos quais é preciso acrescentar um número indeterminado de artigos publicados em, pelo menos, dez jornais, desde 1876 até 1911, data da sua morte (Silva, 1989, p. 26). Por outro lado, no caso de se tratar de artigos sob pseudónimo, impõe-se o trabalho do investigador para o esclarecimento da identidade civil. É conhecido, por exemplo, que Manuel Luiz de Figueiredo assinava com pseudónimos diversos: «Márius», «Casério», «João Gil», «Shinge», «Dr. Fausto», «Lúcio», «L.», «L. de F.» (Mónica & Matias, 1986, p. 14). Por outro lado, Ernesto da Silva estabelecia uma distinção entre os vários de que se servia na escrita dos seus textos, «Babeuf», com caráter político, e «Ruy», com caráter literário, para além da assinatura com o seu nome, «E. Silva», «E. da S.» e «E.» (Peralta García, 2020, p. 220).
Identificados os textos impõe-se a recolha e organização. Um exemplo bem-sucedido deste tipo de empreendimento investigador, infelizmente não continuado, foi a recuperação que Maria Filomena Mónica e Maria Goretti Matias fizeram da obra de Manuel Luiz de Figueiredo (1861-1927). O dirigente do P.O.S.P. é autor de uma extensa obra literária e jornalística. Sabemos da redação de cinco peças de teatro, todas de 1881: a já aludida Os jesuítas. Drama original portuguez, em 3 actos, que nos chegou completa porque foi publicada em 1883 na coleção «Biblioteca do Progresso Teatral»; A canalha. Drama em 1 acto; Dramas da realeza; A última favorita. Drama em 1 prologo e 3 actos; e Fidalgos e populares, de que é conservado apenas um excerto26. Com elas é iniciada uma dramaturgia operária socialista que, com o decorrer dos anos, terá importantes continuadores - entre eles, o citado Ernesto da Silva -, completada com uma prolixa produção jornalística espalhada por jornais como O Protesto (1876), O Protesto Operário (1882), O Partido Operário (1894), O Alarme (1894), A Voz do Trabalho (1898), O Trabalho (1900), O Produtor (1900), O Chapeleiro (1906), A Propaganda, e O Setubalense, entre outros (Mónica & Matias, 1986, pp. 10-11; Silva, 1989, p. 53). Foi a esta produção jornalística que as investigadoras deram destaque, em 1986, com a recolha sistemática e posterior publicação dos artigos do autor. Selecionaram um conjunto de 64 textos que dividiram em duas partes seguindo um critério temático e cronológico: uma dedicada aos «Artigos doutrinários» (21) e outra sobre «A conjuntura económica e política (1900-1920)» (43). Contudo, uma análise ainda mais aprofundada da obra de Manuel Luiz de Figueiredo apresentaria, certamente, um volume ainda maior de textos da sua autoria, muitos dos quais assinados sob pseudónimo, como já referido no caso de Azedo Gneco. A sua recuperação permitiria avaliar a evolução do movimento socialista em Portugal nos anos finais da Monarquia e da República - visto que Manuel Luiz de Figueiredo morreu no período da Ditadura Militar -, bem como os confrontos partidários que se verificaram no seu seio.
A análise destes textos reflete a tomada de posição do socialismo português em temas diversos, desde a política doutrinária, à económica e social. Tendo em atenção o seu conteúdo, Maria Filomena Mónica e Maria Goretti Matias propuseram uma organização temática dos artigos de Manuel Luiz de Figueiredo em «Artigos doutrinários» e «A conjuntura económica e política (1900-1920)» (Ventura, 2010; Peralta García, 2019b).
Seguindo este exemplo resolvemos recuperar a obra de Ernesto da Silva (1868-1903), compositor tipógrafo da Imprensa Nacional e militante do P.S.P., ao qual já nos referimos em partes diversas deste trabalho, pelo facto de ser dos poucos, ou talvez o único, a apresentar um texto teórico sobre a função social da literatura e da arte.
Apesar da dificuldade de acesso à documentação ou, simplesmente, pela sua perda, a sua consulta permitiu-nos reconstruir, quase na totalidade, a obra escrita de Ernesto da Silva entre 1893, data dos seus primeiros textos, e 1903, quando faleceu (Peralta García, 2023a, 2023b, 2023c).
A publicação da obra de Ernesto da Silva evidencia que a produção de conhecimento nestes anos finais da Monarquia não era unicamente da responsabilidade das elites, mais próximas dos círculos do poder, mas alargava-se às camadas mais baixas da sociedade portuguesa, entre as quais, os operários. Apesar das restrições impostas por um desenvolvimento limitado do sistema educativo, estes trabalhadores escreviam textos publicados em jornais, nos quais exprimiam os seus pontos de vista sobre temas diversos em editoriais, colunas de opinião, crónicas ou necrológicas. Publicavam também obras literárias como poemas, contos ou peças de teatro, opúsculos e folhetos de pensamento político. Publicações desta natureza disponibilizam fontes primárias organizadas num conjunto coerente segundo critérios científicos, proporcionando informação sobre a época dos autores para historiadores, especialistas da literatura e da língua, sociólogos, antropólogos ou economistas.
Conclusões
De tudo quanto ficou exposto, trazemos à consideração do leitor duas ideias que julgamos relevantes no presente artigo. Primeiro, a existência de uma obra oculta, da autoria dos militantes socialistas, dispersa em publicações periódicas e edições avulsas, as quais apenas têm sido do interesse de investigadores para o estudo da História, tema central deste breve texto. Neste sentido, propomos uma segunda ideia, o entendimento de que que muitos destes textos são de consulta obrigatória para o estudo das correntes literárias e o seu reflexo social. Estes aspetos evidenciam-se nos contos como subgénero narrativo, peças teatrais, textos dramáticos e composições líricas, tal como nos artigos jornalísticos, testemunhos da evolução da imprensa na transição do século XIX para o século XX, e, ainda os opúsculos, depositários, maioritariamente, do pensamento político do movimento operário. Estes textos são merecedores de uma atenção específica visando a sua recuperação, não apenas como indícios de uma época, mas também como estruturantes do espírito militante que os animou. Trata-se, por isso, de não responder apenas a considerações de simples justiça histórica, mas também do reconhecimento de uma memória fulcral para a correta interpretação da nossa realidade atual.