Introdução
À exceção de algumas análises embrionárias (Moreira, 2014; Cristino, 2014; Cordeiro, 2000), o trotskismo não tem sido alvo de estudos específicos em Portugal. Isso é particularmente notório no que respeita à corrente internacional dirigida por Pierre Lambert. Contribuir para um maior conhecimento desta, é o objetivo deste artigo.
A corrente Lambertista
Em 1952, prevendo a eclosão de uma nova guerra mundial e a consequente radicalização dos partidos comunistas associados a Moscovo, o III Congresso Mundial da IV Internacional, dirigido por Michel Pablo, decidia a quase total e clandestina integração dos trotskistas franceses no Partido Comunista. Porém, a maioria da secção francesa, liderada por Lambert, recusou a diretiva e foi expulsa por Pablo em julho daquele ano. Com Gerry Healy, que viria a formar a Socialist Labour League (SLL, Reino Unido), e com Joseph Hansen, do Socialist Workers Party (SWP, Estados Unidos), Lambert passou a dirigir outra IV Internacional, no caso, o Comité Internacional (CI) - minoritário em relação à corrente de Pablo que se constituía como Secretariado Internacional (SI). De qualquer das formas, mais do que tática ou programática, a clivagem entre Lambert e Pablo tinha um carácter aparelhista (Gaido, 2020).
No seguimento da rutura, a corrente lambertista foi manifestando algumas características comuns aos partidos comunistas de orientação soviética e aos que então surgiam alinhados com Mao Tse-Tung. Exemplo disso foi a sua desconfiança, que se prolongou nas décadas de 1960 e 1970, para com o feminismo e a revolução sexual. Mais a mais, a corrente adquiriu um regime interno próximo ao praticado pelo estalinismo. Extremamente burocrática, lançava a calúnia sobre militantes que manifestassem algum tipo de crítica ou dúvida sobre a linha maioritária. No entanto, afastava-se definitivamente de Moscovo e de Pequim no que dizia respeito às lutas anti-imperialistas e de libertação nacional. Uma revolução socialista vitoriosa requereria tanto uma economia capitalista desenvolvida como um proletariado politicamente consciente e numericamente significativo - o que não existia, por exemplo, em África, na Ásia, na América Central e na América do Sul (Gaido, 2020; Fields, 1994).
Não por acaso, o CI não apoiou a Revolução Cubana. Para Healy e Lambert, Cuba mantinha-se um estado capitalista. Nesta questão decisiva para qualquer revolucionário, Hansen, do SWP, tinha outra opinião. Para o dirigente norte-americano, Cuba tinha-se tornado um Estado operário. Esta caracterização era partilhada pela maioria do SI, de Mandel, e foi nessa convergência que a maior parte das forças trotskistas se reunificaram em 1963, constituindo o Secretariado Unificado da IV Internacional.
Apesar das respetivas nuances, Hansen e Mandel viam na luta política e social das mulheres e na luta dos povos colonizados aspetos decisivos da luta pelo socialismo. Por sua vez, Lambert e os que o seguiam tendiam a adotar posições, por vezes, quase antagónicas nestes temas, acabando por enfrentar maiores dificuldades no contacto com a juventude radicalizada da época - muito sensível àqueles assuntos. Este dado potenciou o sectarismo, por vezes extremo, das diversas organizações lambertistas. Em Portugal, não seria diferente.
Entre Santarém e Paris
Na cidade de Santarém, em meados da década de 1960, António José Forte dinamizava algumas tertúlias que iam além da discussão artística e cultural. O poeta surrealista e outros escritores, não sendo trotskistas stricto sensu, abordavam, de uma perspetiva crítica, a questão estalinista na União Soviética com pequenos auditórios informais. Destes fariam parte liceais e jovens universitários como Jorge Custódio1, Mário Abreu2, Mário Viegas3, José Luís Pio de Abreu4, António Aires Rodrigues5 e António Bento Vintém6 (Rodrigues, 2019; Alvarez, 2001). O legado de Trotsky foi ecoando em Forte que começou a reunir especificamente com Jorge Custódio e Mário Abreu, então aluno de Filosofia na Faculdade de Letras, em Lisboa, a quem distribuía documentação com as principais teses do revolucionário russo. A intenção seria fundar um grupo trotskista.
No final de março de 1965, Mário Abreu convida Jorge Custódio e alguns liceais de Santarém a viajarem até Lisboa. O objetivo é estes jovens conhecerem algumas formas de organização e de luta dos estudantes universitários. No dia 1 de abril, Custódio, acompanhado dos colegas de liceu António José Moura e José Júlio Colaço, é recebido por Abreu e Aires Rodrigues, e assiste a um plenário relativo à proibição governamental do Dia do Estudante, a comemorar dentro de dias.
Findo o plenário-manifestação na Praça da Universidade, diante do gabinete do reitor Paulo Cunha, a Polícia de Segurança Pública invade as instalações universitárias, nomeadamente a cantina onde muitos almoçavam, e detém a maioria dos estudantes que para ali se haviam deslocado. Entre eles estão os liceais Custódio, Moura e Colaço. Os três são enviados para o Governo Civil, mas Colaço consegue escapar. Custódio e Moura passam a noite na Prisão de Caxias e são suspensos do ensino liceal por oito e dezoito meses, respetivamente.
A detenção, que tem divulgação nacional, aprofunda a politização de Custódio que está na criação do Bar-4, em Santarém: um grupo informal que procurava substituir alguns espaços culturais então proibidos. Pese embora o foco na cultura e nas artes, o grupo distribui, entre outra documentação de inspiração marxista, alguma documentação de Trotsky, obtida através da cooperativa livreira Unicepe, do Porto, que tinha uma filial em Santarém.
Forte detém um ascendente natural sobre aqueles jovens. Mário Abreu, entretanto, suspenso por seis meses da Faculdade de Letras e rompendo as suas ligações informais à Frente de Ação Popular (FAP)/Comité Marxista-Leninista Português (CMLP)7, também vai adquirindo um papel de liderança entre os mais novos, entre eles, José Colaço Barreiros, António José Moura, José Carlos Lucas, Vladimir Leal e Bento Vintém. O grupo ganha relevância no meio oposicionista escalabitano e Custódio, muito ativo politicamente, é convidado por João José Louro a ligar-se ao Partido Comunista Português (PCP). Rejeita e sofre agressões físicas por isso.
Ainda em 1965, Bento Vintém, que não se reconhece exatamente como trotskista e que se mantém próximo do movimento marxista-leninista português, de Nuno Rebocho, conhece, no Parque de Campismo de Peniche, Denise Boureau, militante francesa da Organisation Communiste Internacionaliste (OCI), de Lambert. Não terá sido, portanto, por acaso que, no ano seguinte, em 1966, naquela mesma estância, Custódio conheceria Jean Pierre Millon, também militante da OCI. As ligações entre portugueses e franceses ganhavam expressão.
Em fevereiro de 1967, Denise Boureau e Alain Delfour, também lambertista, viajam até Santarém no sentido de contactar o grupo e, no verão, outro militante francês, Michel Delesque, também se desloca a Portugal para dirigir um curso político, de vinte dias, com Custódio e Abreu. Bento Vintém e outros jovens naturais daquela cidade participam no último fim de semana do curso e, em outubro de 1967, este militante português viaja a Paris, onde contacta a OCI. No entanto, Vintém separa-se logo do grupo português. Se, por um lado, não terá ficado impressionado com a organização francesa, por outro, logo em novembro daquele ano, é preso pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE)8.
O trotskismo deixava de ser apenas um conjunto de referências ideológicas e tornava-se uma prática política concreta. O contacto com os militantes franceses proporcionava nova documentação que era estudada e, em parte, divulgada por colegas na cidade de Santarém e, porventura, em Lisboa, através de Mário Abreu.
A 15 de março de 1968, o grupo sofre um revés. Custódio é novamente preso e, desta vez, torturado. Sai em liberdade a 24 de maio, mas desliga-se da atividade política militante: os pais não podem pagar os estudos superiores e começa a trabalhar. Receoso da polícia, Abreu esconde-se e, em finais de 1969, exila-se em Paris, acompanhado de Vladimir Leal. Em França Abreu torna-se o incontestável e absoluto dirigente do grupo lambertista português que edifica - facto que poderá ter resultado no posterior afastamento de Vladimir Leal. Neste país, Abreu adota o pseudónimo “Gil Martins”, colabora com a OCI e esforça-se por criar uma organização de militantes portugueses, o que acontece apenas - pelo menos formalmente - em setembro de 1972, com a fundação do Comité de Ligação dos Militantes Revolucionários Portugueses (CLMRP).
Em Paris, no início da década de 1970, o grupo seria constituído também por Ana Ferreira/”Luba” e Aires Rodrigues, que havia militado no CMLP. Em 1972, no quadro dos debates sobre o Governo da Unidade Popular, no Chile, o grupo ganha José Santana Henriques, operário na capital francesa e próximo dos comunistas. Também em Paris, perto do 25 de Abril, o grupo seria reforçado por José Luís Mendes, também operário. À margem do grupo de Paris, José Catarino Soares9, estudante de Sociologia em Toulouse, adere ao grupo juvenil da OCI naquela cidade durante o ano de 1969. Como viria a ser referido, o CLMRP era um “pequeno grupo [...] vindo de horizontes políticos diversos”10.
A integração de Aires Rodrigues no lambertismo, em 1969-1970, foi bastante importante para a organização dado que era um militante com vasta experiência política. Não só havia participado em algumas lutas em Santarém, na Crise Académica de 1962 e noutras lutas estudantis em Coimbra, como carregava um período de exílio marcado pela militância no CMLP - através do qual viajaria à Albânia, no verão de 196711. Em Paris, seria operário de construção civil, eletricista, operário na fábrica de montagem de automóveis da Renault Billancourt e, entretanto, animador cultural nos bairros de lata de emigrantes portugueses.
A militância no CMLP terminaria quando, em novembro de 1968, a II Conferência desta organização expurgou os diversos elementos que alegadamente haviam manifestado sensibilidades castristas e trotskizantes. Existem informações distintas sobre se Aires Rodrigues foi expulso ou se se terá afastado voluntariamente. Mas a hipótese mais provável é que o próprio se terá afastado da organização. No seguimento da rutura, terá ainda integrado - ou, pelo menos, terá sido próximo de - O Comunista, grupo fundado em Paris, em outubro de 1968. Nos meses seguintes, foi ao encontro da secção juvenil da OCI, com quem já tinha estabelecido contactos informais, e iniciou a militância ligado à corrente de Pierre Lambert. Eleito delegado sindical, aderiu à Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT) e foi igualmente eleito secretário da secção dos emigrantes portugueses12.
Em Portugal, Mário Abreu terá deixado um pequeno núcleo de militantes trotskistas, entre eles Domingos Ribeiro que, entretanto, terá convencido Domingos Neto a integrar o grupo. Pouco depois, Ribeiro desliga-se do trotskismo e torna-se situacionista. É então que Domingos Neto, estudante na Faculdade de Medicina, em Lisboa, toma a direção do pequeno núcleo em Lisboa que congregaria, entretanto, Luís Zuzarte, Albérico Afonso Costa (que rapidamente romperia com o grupo e integraria outra corrente trotskista), Filipa Homem Christo, Reinaldo Cabanita (estudantes na Faculdade de Medicina), Carlos Cabanita e Maria da Paz Lima13.
Nos meses anteriores ao 25 de Abril, Carmelinda Pereira estaria prestes a entrar na organização14. O grupo não teria mais de 10 pessoas e centrava a sua atividade junto dos estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em algumas zonas operárias da capital e na Marinha Grande. Em todo o caso, à semelhança da OCI, o grupo apostava a sua ação no contacto com a classe trabalhadora e não tanto com o meio universitário.
A rutura de Domingos Neto e Luís Zuzarte
Apesar da ligação ao CI, dirigido por Lambert e Healy, o grupo em Portugal não tem qualquer conhecimento dos debates que envolvem aqueles dirigentes. Em 1971, Domingos Neto desloca-se a Inglaterra e entra em contacto com a secção inglesa, nomeadamente com Healy. Mas quando vai a França ao encontro da OCI e dos militantes portugueses é recebido por Mário Abreu que o caracteriza como um traidor. Na presença de outros militantes, Abreu encena e dirige um autêntico julgamento.
Neto desconhecia, na verdade, que se estava a produzir uma cisão no CI, depois de Healy não defender a política do Partido Obrero Revolucionario (trotskista) que, na Bolívia, apoiava o governo progressista do militar Juan José Torres. No seguimento do processo político que sofre, Neto fundaria com Luís Zuzarte a Liga para Construção do Partido Revolucionário (LCPR), alinhado com Healy15. Entretanto, a OCI saía do CI e criava o Comité de Organização para a Reconstrução da Quarta Internacional (CORQI).
O sectarismo
Apesar da ínfima influência social e política, o CLMPR caracterizava-se pelas suas longas publicações. O seu principal órgão, o jornal Revolução Proletária, foi publicado pela primeira vez, em Paris, em janeiro de 1973, e diferenciava-se pelos longos testamentos políticos. Da responsabilidade formal do histórico dirigente trotskista francês Gérard Bloch, o jornal era essencialmente distribuído na capital francesa, mas sem grande alcance (Pereira, 2013, p. 497). Também publicado pela organização era o jornal - menos relevante - Política Operária que conheceu a primeira edição em dezembro de 1972.
O grupo tinha consciência das suas próprias limitações. Em junho de 1973, reconhecia que “é inútil sublinhar a fraqueza atual da vanguarda marxista em Portugal. […] Ela não pode pretender ter hoje uma influência decisiva sobre o curso dos acontecimentos”16. Portanto, era necessária abertura para constituir “contactos […] com todos os militantes, grupos ou tendências que […] ressintam a necessidade de engajar a discussão e o combate […] para a construção […] do Partido Operário Revolucionário”17.
No entanto, envolto na cultura esquerdista-sectária da época, o reduzidíssimo núcleo do CLMRP, não ultrapassaria, até ao 25 de Abril, os 10 ou 20 militantes - quer em França, quer em Portugal. Sem contacto orgânico relevante com a restante oposição ao regime e com o movimento operário, chegou mesmo a dar explicações sobre a sua rejeição ao convite do Círculo de Iniciativa Política (CIP) para se fazer presente, em Paris, “numa mesa-redonda da ‘esquerda’ portuguesa”18. As razões, escrevia-se, centravam-se no facto de a palavra “esquerda” (assim como “oposição”) não ser exaustiva e, portanto, carecer de significado político. Para o “organismo no exterior” do CLMRP não existiam “problemas da ‘esquerda’” ou da oposição ao Estado Novo, mas sim da “luta de classes”. Ora, dado que a mesa-redonda contaria com a Ação Socialista Portuguesa (ASP), que se posicionava fora do “terreno de classe do proletariado” - sendo, portanto, “contrária aos […] princípios e ao […] combate” do CLMRP -, nada haveria a discutir19.
Esta postura para com as oposições era muito distinta de outra corrente trotskista portuguesa constituída na Liga Comunista Internacionalista (LCI). Apesar de crítica do CIP, a LCI e os seus militantes em Paris reconheciam que aquele era “um dos raros grupos de exilados portugueses que prefere a crítica política ao insulto, o debate à exclusão sectária”20. A intolerância do CLMRP era evidente, fazendo este notar que a sua disponibilidade para a discussão política apenas se faria com aqueles que partilhavam as suas teses políticas:
a mais larga discussão política é necessária entre militantes, mas […] ela deve fazer-se em função da exigência […] dos meios teóricos e organizacionais necessários a uma política de classe do proletariado [...] e que, para nós trotskistas, não pode ser outro que a secção portuguesa da IV Internacional a reconstruir sobre a base do seu Programa de Fundação21.
A distância para com as outras correntes oposicionistas era clara. À semelhança da OCI francesa, o CLMRP era particularmente incisivo e crítico dos partidos comunistas. O PCP era caracterizado como um “aparelho estalinista”22 cuja tática não ia além da política frentista de aliança com “diversos representantes ‘autoritários’, ‘liberais’ ou ‘radicais’ da burguesia, de Caetano à Oposição Democrática”23. Longe de adotar uma política operária, a Oposição Democrática, “aliança sem princípios” com “porta-vozes” da burguesia liberal, surgia como um tampão à luta do proletariado, impedindo-o da “sua existência enquanto classe (organizada)”24. No fundo, estava demonstrado que o PCP seria “um dos mais preciosos auxiliares da classe dominante” e “do governo totalitário”25.
Outra importante crítica, cara à tradição trotskista, ia ao encontro da alegada falta de democracia no seio do partido de Álvaro Cunhal. Procurando dirigir-se aos militantes daquele partido, o CLMRP escrevia que “o centralismo democrático […] exige que a crítica e [o] combate pela independência de classe do proletariado se exprimam abertamente dentro da organização e sejam levados ao conhecimento de todos os militantes por vias apropriadas”26. Caso assim não fosse, estar-se-ia, não perante o centralismo democrático, “mas de disciplina e centralismo de um aparelho ao serviço de interesses estrangeiros ao proletariado, de um colete-de-forças intolerável”27. Estas palavras jamais tiveram tradução no regime interno da organização lambertista portuguesa.
O sectarismo do grupo evidenciava-se igualmente na caracterização que este fazia de outras organizações trotskistas. Para o CLMRP, não eram só os “estalinistas” e os “maoistas” que procuravam esconder, através dos seus “contos de fadas”, a “barbárie […] bem real e bem material” do imperialismo: também os “pablistas”28 desempenhavam esse papel ao “cobrir à esquerda a política contrarrevolucionária do aparelho internacional do Kremlin”29. Mandel, particularmente visado, era apresentado, de forma jocosa, como o “famoso ‘sábio’ […] das ‘novas vanguardas intelectuais’” que transportaria “a boa palavra desmistificadora e contestatária às massas ‘alienadas’ e ‘emburguesadas’” pelo “‘neocapitalismo’30 prodigioso”31.
Diga-se que este tipo de discurso para com outras organizações trotskistas manter-se-ia depois do 25 de Abril. A cultura de denúncia das correntes trotskistas seria, então, um traço definidor deste grupo - pelo menos, até à sua refundação no Partido Operário de Unidade Socialista (POUS), em 1979.
O 25 de Abril e o entrismo no PS
A 26 de Abril de 1974, Lambert e Aires Rodrigues reuniram-se em Paris (Madeira, 2016b, pp. 241-242). Muito provavelmente decidiram o ingresso do militante português e de outros camaradas no Partido Socialista (PS) e a manutenção de uma pequena parte do CLMRP fora daquele partido.
De qualquer das formas, a entrada no PS terá sido discutida pelo próprio Soares e por Lambert, num encontro entre ambos, em Lisboa, no verão de 1974. Dada a reduzidíssima implantação social do PS, a entrada de militantes de vocação operária permitiria a este partido construir-se e implantar-se a nível nacional. Por seu lado, para o pequeno grupo do CLMPR, a entrada no PS permitia romper a marginalidade. A rutura, quase ontologicamente prevista na atividade entrista, não era, então, uma questão decisiva para Lambert e Soares que beneficiariam, pelo menos até determinada altura, daquele processo.
Vindo de Paris, José Luís Mendes entrava também no PS32. Com militância no interior do país, Reinaldo Cabanita, Filipa Homem Christo, Carlos Cabanita e Maria da Paz Lima também aderiam ao Partido Socialista33. À exceção do primeiro, todos militariam na Juventude Socialista (JS). Carmelinda Pereira e Joaquim Pagarete, que estariam prestes a entrar no CLMRP nas vésperas do 25 de Abril, também entravam no PS. Foi igualmente tentada a integração do militante José Cabrita no PCP, mas este objetivo foi gorado.
Apesar de nunca ter sido assumido oficialmente, o grupo entrou, de facto, no PS, após o 25 de Abril. Indica-o um jornal healista britânico logo no outono de 197434, um documento de 1980 de Nahuel Moreno (1992, p. 129), aprovado pelo próprio Pierre Lambert, mas também documentos internos do CLMRP publicados no exterior. É o caso das resoluções da III Conferência do CLMRP, realizada no verão de 1974, reproduzidas no britânico Marxist Bulletin, de orientação lambertista. Caracterizando a situação política como “revolucionária”, a conferência avançava que estavam reunidas as condições para “a construção do partido revolucionário”35. No entanto, reconhecia igualmente que dado o “prestígio” de PS e PCP entre os trabalhadores, os “trotskistas portugueses”, que não eram “nem um partido nem uma organização, mas apenas um grupo”, teriam que “adotar a tática do entrismo” de modo a estabelecer contacto efetivo com a classe trabalhadora36.
Na JS os lambertistas foram aproximando diversos militantes, entre eles Henrique Fernandes, natural de Coimbra, que acumularia o cargo de dirigente nacional do PS com o de comissário nacional da juventude, e Henrique Gomes da Costa, principal dirigente da oposição na JS. Estes dois militantes viriam a ocupar estruturas com algum peso político: Henrique Fernandes seria presidente da Associação Académica de Coimbra, em 1976-1977, e Gomes da Costa seria o responsável pelo jornal O Militante Socialista.
A atividade entrista foi altamente desgastante para os membros do CLMRP que integraram o PS, dado que estes combinavam duas militâncias: uma no quadro do PS, nomeadamente na e para a Comissão de Trabalho, com muitos dos seus elementos a tomarem a dianteira de alguns sindicatos; e outra junto de Mário Abreu, Ana Ferreira, José Catarino Soares e, entretanto, José Santana, que formavam a estrutura independente do PS.
Abreu mantinha-se o principal membro da organização e dirigia toda a ação política: quer daqueles que atuavam no seio do PS, quer daqueles que haviam permanecido fora. No exterior do PS, o grupo manteve, até 1977, a designação CLMRP e não se constituiu como partido legal, ao contrário do que viria a acontecer com a LCI e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) - também trotskista.
A corrente lambertista portuguesa constituía-se, assim, a partir de duas estruturas: uma no exterior do PS, mantendo a designação do CLMRP e publicando o jornal Revolução Proletária e o boletim-panfleto Política Operária; outra dentro do PS que, integrando comissões de trabalhadores e sindicatos, procurava influenciar a Coordenadora das Comissões de Trabalho deste partido e a JS.
A 29 de Abril, o CLMRP publicava um número especial de Política Operária. Celebrando o desmoronamento da “mais velha ditadura totalitária”, procurava evidenciar que a sorte dos trabalhadores portugueses estava intrinsecamente ligada às lutas anticapitalistas e anti-imperialistas internacionais, em particular “à subida do proletariado europeu” e ao “combate dos trabalhadores de Angola, Guiné e Moçambique”37. Num tom triunfalista, afirmava que “por toda a parte no mundo o proletariado não está disposto a aceitar as consequências” da crise capitalista38. Logo neste primeiro comunicado, o grupo expressava uma característica que marcaria o seu discurso ao longo de vários anos. Reconhecendo-se minoritário, não pretendia - nem alguma vez poderia - “substituir-se” à classe trabalhadora. Antes incitava-a a organizar-se nos “seus locais de trabalho, através de “comités e sindicatos”, e a concretizar um “programa de defesa da classe”39.
Neste documento, o PCP era identificado como a organização da classe trabalhadora com maior “responsabilidade” para organizar, unificar e elevar as lutas da classe. Dados os "formidáveis meios [...] à disposição" daquele partido exigia-se igualmente a defesa de um “Governo dos Trabalhadores e das suas Organizações […] sem representantes do capital”40. No final, apelava-se ainda à formação de uma “central sindical única” e “independente do Estado”41. A atividade política do PS não constava do documento e a crítica ao estalinismo caía do discurso da organização.
Dias depois, a 7 de maio, o CLMRP publicava um novo documento: “A revolução proletária em Portugal começou”. Nele avançava-se que “o desmoronamento do sistema corporativo abre a via da substituição do Estado burguês pela República Operária”42. Mas contrariando este processo, o PCP, “principal partido operário”, propunha-se governar com os partidos burgueses num “governo de Unidade Nacional”43. Ora, de acordo com a tradição trotskista, a luta dos trabalhadores não deveria compreender o que se designava de governos de colaboração de classes. Esta posição política parecia mais premente imediatamente após a queda do Governo da Unidade Popular, de Salvador Allende, no Chile. No final do documento exigia-se novamente ao PCP e ao PS um “governo […] das organizações operárias unidas, sem representantes do capital”44. Esta exigência para com PCP e PS, no quadro de uma “Frente Única Operária”45, seria a marca do lambertismo em Portugal e por vezes a sua única palavra de ordem.
Tanto o jornal Revolução Proletária como o boletim Política Operária não saíam regularmente. Entre agosto de 1974 e abril de 1975, o jornal não conheceria qualquer edição. O boletim reapareceria apenas em fevereiro de 1975 em formato de jornal46. Tudo indica que a estrutura no exterior do Partido Socialista estivesse focada em colocar os seus militantes em alguns setores-chave da classe trabalhadora, de modo a ganhar influência. Isso aconteceu com algum sucesso no Sindicato de Professores da Grande Lisboa (que seria dirigido por Joaquim Pagarete e que contaria também com Carmelinda Pereira) e na Lisnave.
A sua política, que poderia identificar-se como socialista de esquerda, caracterizava-se pelo apoio à Assembleia Constituinte - o que contrastava com parte da esquerda radical - e pela tentativa de pressão sobre a direção do PS. Nas vésperas das eleições para a Assembleia Constituinte, de 25 de abril de 1975, o CLMRP apelava ao voto no PCP e no PS, considerados os “dois grandes partidos operários”47, omitindo, assim, a LCI - o único partido trotskista a concorrer. O CLMRP defendia um governo operário e este voto pretendia ir ao encontro desse objetivo48.
No chamado “verão quente”, o CLMRP apelaria à formação de um Governo PS-PCP, “sem ministros burgueses” e “responsável diante da Constituinte soberana”49. Num texto intitulado Revolução e Contrarrevolução em Portugal50, Mário Abreu/”Gil Martins” reconhecia que apenas os “trotskistas [ou seja, os lambertistas] se batem [...] por esta solução”, mas isso não o intimidava: “estar aqui 'sozinhos' não nos assusta. Temos por nós Lenine e Trotsky e a vontade da maioria do povo trabalhador que no seu gigantesco comício da Fonte Luminosa gritou “Fora Vasco! PS ao poder”, ou seja: rutura com a burguesia”51.
I Congresso do PS e a subida de Aires Rodrigues
A política dos lambertistas dentro do PS, identificada por António Reis como uma “devotadíssima militância anti-estalinista”, foi mostrando-se profícua e possibilitou a alguns elementos obter um espaço relevante na direção do partido (Reis, 2005, p. 97), mas também na base operária - em grande parte construída por aqueles militantes. Foi nesse contexto que os militantes lambertistas foram ganhando a confiança da direção socialista ao ponto de Marcelo Curto (Madeira, 2016b, pp. 241-242) convidar Carmelinda Pereira para presidir à Coordenação dos núcleos de trabalhadores socialistas das empresas da região de Lisboa52.
Em dezembro de 1974, no I Congresso legal do PS, Aires Rodrigues, secundado por Abreu e Lambert - que viria a Lisboa algumas vezes - alinhou-se com Mário Soares e foi, então, eleito membro da Comissão Diretiva, da Comissão Nacional e, entretanto, do restrito Secretariado Nacional. O congresso seria marcado pela oposição de esquerda da tendência obreirista de Manuel Serra à liderança de Soares. Alcançando uns significativos 45% dos votos do congresso, Serra abandonaria de seguida o partido53. Aires Rodrigues não fez oposição. Estava ao lado de Soares.
Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues foram, então, adquirindo grande preponderância política na zona industrial da Marinha Grande, acabando por desempenhar um papel importante para a implantação operária do PS na região centro do país. Foi precisamente a partir desse trabalho político, numa região antes dominada pelo PCP, que Aires Rodrigues foi cooptado para o Secretariado Nacional do PS. A 25 de abril de 1975 foram ambos eleitos deputados à Assembleia Constituinte, sendo Carmelinda Pereira, com 26 anos, a mais nova deputada entre as 20 mulheres eleitas54. A confiança da direção socialista em Aires Rodrigues, de apenas 29 anos, era evidente e este tornava-se presidente da Comissão Parlamentar de Trabalho do PS (Madeira, 2016b, pp. 241-242).
A linha política destes deputados confundia-se com a política socialista contra o denominado gonçalvismo. Aquando do 25 de Novembro, Aires Rodrigues era um dos principais colaboradores de Soares e responsável pela organização do partido. Seria mesmo uma das pessoas responsáveis pela movimentação de dinheiro no PS. A 14 de novembro receberia de Vítor Cunha Rego 500 mil escudos e, no próprio 25 de Novembro, recolheria 100 mil escudos de Rui Mateus. Este dinheiro servia para financiar o partido num período particularmente crítico (Mateus, 1996, p. 89).
Aires Rodrigues esteve alinhado com Soares também no que respeitou ao movimento da Carta Aberta55. Em janeiro de 1976, com Alberto Antunes, presidiu ao Encontro Nacional da Corrente Sindical Socialista (CSS), realizado em Aveiro. Na conferência de imprensa, estes dois socialistas defenderam “a necessidade de construir uma central sindical única, democrática e independente e em que se assegure o direito de tendência” (Brito & Rodrigues, 2013, p. 142).
Dias depois, a 14 de fevereiro de 1976, era eleita uma Comissão de Redação da Carta Aberta. Entre os redatores estavam Carmelinda Pereira e José Luís Gaspar (Brito & Rodrigues, 2013, p. 550), então dirigente do Sindicato dos Trabalhadores dos Escritórios de Lisboa. Este último era um dos principais rostos da tendência sindical socialista, em Coimbra (Brito & Rodrigues, 2013, p. 152).
Da crítica a Eanes à critica do I Governo Constitucional
Foi, contudo, nos meses seguintes que surgiram divergências fundamentais com a maioria da direção do PS. Aires Rodrigues terá sido o único membro do Secretariado do PS a manifestar-se contra o apoio do partido a Eanes nas eleições presidenciais daquele ano. Para o dirigente, o PS deveria promover uma candidatura civil (por exemplo, António Macedo, então presidente do partido, ou Henrique de Barros, presidente da Assembleia Constituinte)56. No entanto, estava isolado. Todos os outros membros do Secretariado Nacional concordaram no apoio do partido a Eanes57. O CLMRP, por sua vez, apelaria ao voto em Octávio Pato, do PCP.
Após as eleições presidenciais, a hipótese de rutura de Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira com o PS foi parecendo cada vez mais provável. No verão de 1976, os dois deputados foram manifestando posições distintas das do restante grupo parlamentar socialista e do I Governo Constitucional, liderado por Soares. Em causa estavam, entre outros assuntos, a política educativa, a política laboral, os compromissos celebrados com o Fundo Monetário Internacional e o processo de desmantelamento da Reforma Agrária. A crise no partido tornou-se manifesta quando, pela primeira vez na Assembleia da República, foi quebrada a disciplina de voto e, em agosto de 1976, Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira votavam contra o Orçamento Geral do Estado para 1977. De acordo com Carmelinda Pereira, aquando da tomada de posição dos dois deputados, Carlos Brito, do PCP, pediu a suspensão do Plenário. Segundo a antiga deputada, o PCP abster-se-ia na votação e o PSD votaria contra, de tal forma que o orçamento passaria como um “orçamento de esquerda”. Assim, o PCP votou contra, enquanto o PSD acabou por se abster58.
A dissidência em relação à direção do PS e ao Governo permaneceu. Os dois deputados apoiariam António Lopes Cardoso, ministro da Agricultura e das Pescas, que abandonava o governo no início de novembro de 1976 por discordar da política agrária preconizada por Soares.
O II Congresso do PS e a expulsão
Foi nesse quadro que Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira dinamizaram uma lista ao II Congresso do PS, em novembro de 1976. A encabeçar a lista estariam José Luís Mendes e José Luís Gaspar. O debate no congresso foi iniciado por Soares que procurou atacar os opositores, afirmando que, nos meses anteriores, estes foram manifestando “claras intenções cisionistas”, através de uma “guerra de comunicados públicos e de moções e contramoções de apoio a determinados membros do Governo e do Partido”59. Por sua vez, Alberto Arons de Carvalho, dirigente de uma dividida Juventude Socialista apelou à sua própria estrutura, em grande parte influenciada pelos opositores, e cujo II Congresso realizar-se-ia dentro de duas semanas. Na sua intervenção, Arons de Carvalho procurou alertar a JS para a necessidade de apoiar a direção do partido e o Governo: “a Juventude Socialista não deixará de manifestar o seu apoio genérico à ação do governo”60.
De todo o modo, a imprensa não identificava aqueles opositores como militantes que procurassem uma cisão no PS, muito menos a sua filiação ideológica no trotskismo. Por exemplo, o Diário de Lisboa por diversas vezes reconhecia naquela lista os “ativistas sindicais, trabalhadores e membros das Comissões de Trabalho do Partido”, em contraste com a lista de Soares, na qual prevaleciam “advogados e licenciados”61.
Durante o congresso, os opositores procuraram explicar que “não pretendiam ser lista de oposição, mas [que] apenas defendiam a permanência das Comissões de Trabalho dentro do PS, como forma de alargamento da base social de apoio ao partido”62. Ainda assim, Carmelinda Pereira pautou o seu discurso destacando a necessidade de o I Governo Constitucional avançar com medidas revolucionárias. Soares e Manuel Alegre - ao contrário de António Reis, que parecia contemporizar as divergências com os oposicionistas - atacaram-nos. O primeiro procurou demonstrar que aquela disputa intrapartidária era mesmo decisiva para a “própria democracia portuguesa”, ao passo que o segundo afirmava a impossibilidade da existência de “minipartidos” no PS63.
A Lista B alcançaria uns expressivos 210 votos (cerca de 25% dos votos do congresso) contra os 610 da Lista A de Soares. Aplicado o método de Hondt, o grupo de Aires Rodrigues obteve 39 mandatos na Comissão Política, enquanto a Lista A alcançou 112. Nesse mesmo congresso foi ainda eleita, com 751 votos a favor, uma Comissão Nacional de Conflitos. No entanto, esta não contou com nenhum dos opositores que, logo depois, começariam a ser impedidos de entrar na sede do PS, no Largo do Rato.
Diga-se que o principal órgão do PS, o Portugal Socialista, absteve-se de referir as críticas da Lista B à direção do partido. Omitindo a disputa política, escreveu em título na edição relativa ao congresso “Sinais de saúde”, revelando no corpo do texto que, apesar das divergências, “os verdadeiros fundamentos da unidade do Partido nunca estiveram em causa”64. Mas não seria bem assim. Joaquim Pagarete, então presidente do Sindicato de Professores da Grande Lisboa, era expulso65. Logo depois, a 4 de novembro de 1976, Soares nomeava Francisco Marcelo Curto como principal dirigente da Comissão de Trabalho66, relegando os opositores para uma posição subalterna naquela estrutura. E o Secretariado Nacional do PS pedia, então, a suspensão de Aires Rodrigues, Carmelinda Pereira, José Luís Mendes, Francisco Fortunato67 - todos membros da Comissão Nacional - e Henrique Gomes da Costa.
A divisão no PS reproduzia-se na sua juventude. Também em novembro de 1976 a JS realizou o seu II Congresso e a lista associada ao lambertismo, encabeçada por Henrique Fernandes e Maria da Paz Lima (e que contava também com Filipa Homem Christo), ficou apenas a 5 votos da lista pró-Mário Soares, de Arons de Carvalho. Em dezembro, O Militante Socialista, cujo responsável era Gomes da Costa, manifestava-se contra a “suspensão de militantes” que apenas expunham “opiniões no quadro dos princípios e do Programa do partido”68 e a favor do desenvolvimento da reforma agrária. Este pequeno jornal de oito páginas publicava igualmente respostas de Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira, na Assembleia da República, a deputados do partido conservador Centro Democrático Social (CDS). Além disso, o jornal fazia referência a uma Conferência Nacional de Militantes de núcleos e secções socialistas e da Juventude Socialista, dinamizada por Aires Rodrigues, que se manifestava a favor da Reforma Agrária.
A 15 de dezembro, o Secretariado Nacional do PS fazia um “pedido de ratificação da deliberação de suspensão preventiva”69 à Comissão Nacional de Conflitos. Em causa estaria a distribuição aos órgãos de comunicação social, a 6 de novembro, de comunicados provindos da Comissão de Trabalho que contrariavam as decisões do II Congresso e do Secretariado Nacional - o que ia igualmente contra os estatutos do partido “que impedia[m] a tomada de posições gerais e importantes por órgãos regionais do Partido e, muito menos, por órgãos não deliberativos e especializados”70. O documento avançava também que, neste processo de confrontação, os opositores procuraram constituir reuniões “divisionistas”. Mais ainda, chamava-se a atenção para o facto de o mesmo grupo ter feito publicar no jornal A Capital um outro comunicado, subscrito pela Comissão de Trabalho de Lisboa do Partido Socialista, apelando a “uma participação num comício” a realizar a 24 de novembro, quando nenhum dirigente da Comissão teria assinado ou tomado conhecimento de tal comunicado71.
Estas atividades, que também terão sido empoladas pela direção socialista, tornaram praticamente impossível a permanência daqueles militantes no partido. A 5 de janeiro de 1977, A Luta, órgão oficioso do PS, avançava que a Comissão Nacional de Conflitos havia notificado os opositores para uma audição, ao que estes contestaram que responderiam apenas por escrito. No entanto, a resposta não foi além de um texto intitulado “resolução geral”, alegadamente aprovado numa “conferência nacional de militantes de núcleos e secções socialistas e da Juventude Socialista” e assinado por alguns militantes72. A Comissão Nacional de Conflitos acatou o pedido do Secretariado Nacional e a 8 de janeiro, Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues, identificados pelo Diário de Lisboa como “influentes elementos ligados às comissões de trabalho do PS”, e outros elementos da lista B estavam já suspensos73. Nos dias seguintes aconteceria o mesmo com Maria da Paz Lima, Carlos Cabanita, Henrique Fernandes, Henrique Guimarães, José Gonçalves, Maria José Pita, José Simões, Alcides Guimarães, Artur Borges Nunes e Carlos Almeida74.
Finalmente, a 20 de janeiro, o Secretariado Nacional lançava um comunicado intitulado “Infiltrações trotskistas no partido”. Para a direção do PS, “certas correntes trotskistas encontraram […] na luta antigonçalvista do PS um terreno privilegiado para a divulgação das suas teses históricas e de palavras de ordem habituais nesta família ideológica”, reconhecendo que essa militância deu “alguns frutos no seio do PS e, particularmente, em algumas das suas estruturas”75. A intenção destes opositores seria “criar uma estrutura paralela autónoma do partido, concorrente dos órgãos diretivos democraticamente eleitos”76. O documento assinalava ainda a responsabilidade do “grupo de inscritos” (não de militantes) no estabelecimento de “estruturas e órgãos piratas dentro do PS” que evidenciavam “obreirismo, radicalismo-basista, antimilitarismo primário, anarquismo”77. Ainda assim, apesar das graves acusações enunciadas, o nome dos alegados trotskistas não era referido.
O Diário de Lisboa não adotava o discurso - em larga medida exagerado - da direção do PS, limitando-se a identificar aquele grupo como uma ala esquerda e operária do partido que se opunha à política do I Governo Constitucional, nomeadamente no que dizia respeito à Reforma Agrária, à legislação laboral, à libertação de antigos elementos da PIDE e à impunidade dos bombistas.
A 24 de janeiro, o jornal assinalava que o documento da direção socialista não era político, mas uma “nota de culpa” de “teor inquisitorial”, chamando à atenção para o facto do documento ser assinado pelo Secretariado Nacional do PS quando aquele era um assunto da responsabilidade - indicada pelos estatutos - da Comissão Nacional de Conflitos78. O Diário de Lisboa era incisivo: “Foi-se muito longe na imitação de um modelo deplorável e deplorado. Não estamos perante um 'documento interno' destinado a ser discutido com os suspeitos de heresia; estamos perante uma justificação expeditiva de uma decisão administrativa que, por antecipação em relação ao processo estatuário regular, nos é comunicada”79.
A 26 de janeiro de 1977, o jornal A Luta anunciava a expulsão de José Luís Mendes, José Luís Gaspar, Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues, justificada, pela direção do PS, pela “gravidade das infrações cometidas e as agravantes de todo o processo”80. A exclusão havia sido decidida por unanimidade na Comissão Nacional de Conflitos. O acórdão relatava que Carmelinda Pereira havia usado da palavra num “comício de Coimbra promovido pela JS”, que havia partilhado “um documento […] na Assembleia da República” com os deputados socialistas e que havia liderado “uma reunião fora das instalações”81 do PS. O acórdão referia também que a deputada, Francisco Fortunato e José Luís Mendes eram os principais culpados das “perturbações” ocorridas na reunião da Comissão Nacional do partido a 8 de janeiro, na Figueira da Foz. Por sua vez, Aires Rodrigues era indicado como aquele que “desenvolveu maior atividade no sentido de aliciar militantes do Partido para participarem em reuniões não autorizadas”82. A comissão concluiu, por fim, que existia “um desígnio comum” entre aqueles militantes, materializado na constituição de um “Executivo Provisório da Comissão e Trabalho de Lisboa”, na publicação de “um número [de] O Militante Socialista” e na realização de uma “conferência nacional”83. Nesse sentido, a ação política dos opositores ultrapassava “em muito os direitos de crítica e de tendência inscritos nos Estatutos e nos Regulamentos”84.
A 27 de janeiro, Carmelinda Pereira, Aires Rodrigues, José Luís Mendes e Francisco Fortunato falavam numa conferência de imprensa, na qual não marcou presença o principal órgão de comunicação social do país, a Rádio e Televisão Portuguesa (RTP). Na sua intervenção, Carmelinda Pereira referiu que aqueles militantes não se haviam afastado do programa do partido. Ao contrário, salientava que “a […] orientação do Partido no Governo não foi discutida nem decidida pela instância máxima do partido que é o Congresso”85. Por sua vez, Aires Rodrigues notava que, apesar da expulsão, o grupo continuaria a sua luta política junto de outros camaradas do PS, tanto na base, ao nível dos locais de trabalho, como na Assembleia da República86.
Depois da expulsão, Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues mantiveram um ascendente sobre o jornal O Militante Socialista, que se identificava como “órgão da Coordenadora Nacional das Comissões de Trabalho Socialistas”. O jornal, cujo corpo editorial, em 1975, era constituído por Henrique Gomes da Costa, Joaquim Pagarete e José Luís Gaspar, não foi logo alvo de uma purga exaustiva. O primeiro não foi expulso e permaneceu na JS, inclusive como dirigente do jornal. Aliás, no seguimento do III Congresso da JS, em dezembro de 1978, Gomes da Costa, ainda militante do PS, era visado pelo jornal Ação Socialista como próximo do que era denominado de “grupo Aires-Carmelinda” e antigo diretor do “ilegal e abusivo panfleto [O] Militante Socialista”87.
Tudo indica que, após as expulsões, Gomes da Costa e o jornal desempenhassem um papel de ligação entre os militantes expulsos e alguns setores do partido. Em abril de 1977, mais de dois meses após a expulsão de Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues, o jornal publicava na primeira página duas fotografias dos dois parlamentares - que mantinham a condição de deputados independentes - com o título “É possível uma outra política”88. O discurso dominante no jornal ia contra a política do governo que, no seu entender, levava “à destruição das Conquistas da Revolução”89.
Na mesma edição dava-se a conhecer o que se designava de “3ª Conferência Nacional de núcleos de empresa, de dirigentes sindicais e militantes das secções do PS e da JS”90, realizada a 6 de fevereiro de 1977. Esta tomava partido dos militantes expulsos, assinalando que “a base do Partido não se pôde exprimir nem decidir” na segunda sessão do II Congresso do partido, de 8 de janeiro, e que a direção “recusou pôr à consideração do Congresso a participação de todos os militantes injustamente sancionados”91. Mais ainda, a conferência criticava a direção socialista que “sanciona[va], [...] e expulsa[va] arbitrariamente”, enfraquecendo assim “os núcleos de empresa, as coordenadoras, as estruturas do trabalho” do partido92.
A formação do partido operário de Unidade Socialista
No que diz respeito à estrutura exterior ao PS, dirigida por Mário Abreu, tudo leva a crer que não conheceu desenvolvimentos de ordem política. Depois de manifestar apoio a Octávio Pato nas eleições presidenciais de 1976, o foco do CLMRP transferiu-se para a crítica do I Governo Constitucional e para a exigência de um governo PCP-PS, ecoando as palavras de Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues no Parlamento.
Em agosto de 1977, aquando do seu congresso, o CLMRP passou a designar-se Organização Socialista dos Trabalhadores (OST), mas a mudança não se traduziu numa nova política, numa nova filiação internacional ou na integração de novos agrupamentos políticos na organização. Além disso, o Política Operária, entretanto jornal da OST, começou a perder qualidade material e o número de páginas passou de 16 para 8. No número de dezembro, as páginas centrais ficariam mesmo em branco. As dificuldades eram evidentes.
Curiosamente, aquele jornal nunca fez referência à expulsão de Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira. Apenas em abril de 1978, expôs declarações dos deputados na Assembleia da República que visavam o II Governo Constitucional PS-CDS. A partir de então, aquele duo ganhava expressão no periódico, com uma coluna assinada por ambos nas primeiras páginas cada edição.
No Parlamento, o par político mantinha a atitude de oposição ao PS, votando favoravelmente, em dezembro de 1978, a moção de rejeição do governo PS-CDS, da autoria do PCP, ao lado dos comunistas e de António Lopes Cardoso93. Entretanto, ambos iam dinamizando o Movimento para a Unidade Socialista (MUS)94 que procurava agrupar os militantes socialistas críticos do II Governo Constitucional. Este grupo político teria o seu I Congresso a 24 e 25 de fevereiro de 1979, em Lisboa. Na sua Comissão Nacional eleita estariam, entre outros, Carmelinda Pereira, Aires Rodrigues, José Luís Mendes, Francisco Fortunato, Maria da Paz Lima, Joaquim Pagarete e Gomes da Costa.
Nos documentos era clara a crítica ao PS, acusado de constituir um “governo da contrarrevolução”, e a Mário Soares, acusado de ser o principal executor da “liquidação” do partido95. Havia, então, de “reconstruir [...] o Partido Socialista do programa aprovado no Congresso de 1974” e de fundar núcleos deste movimento “por toda a parte”, através de “reuniões públicas, comícios, tomadas da palavra”96. Num tom triunfalista, apontava-se para o recrutamento de mil militantes97.
O discurso do MUS apontou sempre, numa lógica de exigência aos maiores partidos operários, para a formação de um Governo de PS e de PCP - ou, pelo menos, com o apoio deste. Tal orientação política era idêntica à da OST que, em maio de 1979, lançava um apelo ao próprio MUS, reforçando a ideia de que PS e PC amparavam Eanes - por sua vez apostado na constituição de um “governo contrarrevolucionário” e de um “Orçamento de miséria e de guerra civil”98. A lógica presente neste discurso apontava para uma traição dos dirigentes socialistas e comunistas que, por sua vez, legitimaria a fundação de um novo partido operário que lutasse efetivamente “pela unidade” dos trabalhadores, “pela expulsão” de Eanes e da “burguesia do poder” e “por um governo operário”99. Em todo o caso, de PS e PCP apenas se esperavam “novos obstáculos” e “sabotagem” para fazer frente à luta dos trabalhadores. O documento salientava o facto de o MUS ter feito a experiência - no PS - e ter chegado à “conclusão” de que PS e PCP eram “defensores de Eanes”100. Fundando um partido cuja política era “apaixonada” e “honesta” e cuja bandeira não apresentava “mancha”, os trabalhadores portugueses iriam alcançar novas vitórias políticas101.
Entretanto, a 16 de maio de 1979, Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues abstinham-se, no Parlamento, na votação relativa ao Serviço Nacional de Saúde, ao lado do PPD/PSD. E, a 30 de maio, votavam contra o Orçamento Geral de Estado, ao lado de PCP e UDP.
A unificação OST-MUS, em larga medida virtual, materializou-se, sem congresso, na fundação do Partido Operário de Unidade Socialista (POUS), em 24 junho de 1979. Para a RTP, o partido foi fundado por um “escasso milhar de militantes e simpatizantes, muitos deles oriundos dos setores comunista e socialista”102, mas a realidade foi bastante distinta. O MUS teria poucas dezenas de militantes, o mesmo se passando com a OST. Além disso, a integração de militantes comunistas que a RTP refere, a existir, deverá ter sido muitíssimo residual. A 23 de agosto, o POUS legalizava-se e a 13 e 14 de abril de 1980 celebrava o seu I Congresso. Nunca alcançaria relevância eleitoral.
Conclusão
Constituindo-se à margem de outras sensibilidades trotskistas, e manifestando um profundo sectarismo, não apenas em relação àquelas, mas também aos restantes grupos oposicionistas ao Estado Novo, o grupo lambertista português logrou ter tido uma política que lhe permitiu romper a marginalidade no período imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Muito minoritário, integrou aquele que viria a tornar-se o maior partido do país, contactando com um número significativo de trabalhadores e militantes socialistas.
O trabalho político de Aires Rodrigues haveria de o catapultar para a direção do partido e para a Assembleia da República, obtendo, com Carmelinda Pereira, uma projeção ímpar entre os trotskistas no período imediatamente posterior a Abril - mesmo que então não assumisse tal filiação política. Contudo, a saída do PS não se traduziu num aumento de influência política sobre partes significativas daquele partido, do movimento operário ou de outros setores sociais relevantes. À política entrista no PS, seguiu-se a exigência genérica e constante para a constituição de um governo PS-PCP que não teve eco nem no eleitorado socialista nem no eleitorado comunista.
Além disso, essa tática foi por diversas vezes combinada com a denúncia dos outros trotskismos “traidores”. Ao contrário destes, e à semelhança da OCI francesa, a organização portuguesa foi omissa em relação aos “novos temas”, como a emancipação das mulheres e a revolução sexual. Pouco aberto à novidade sociocultural e relevando inclusive um quotidiano partidário burocrático, foi mantendo o núcleo dirigente que no início da década de 1970 constituiu o CLMRP em França e em Portugal, regressando a uma marginalidade que havia marcado a organização no período anterior ao 25 de Abril.