Porcos fascistas: organismos tecnocientíficos e a história do fascismo é um livro com uma oportuna e cuidada edição, considerando a sua inovadora análise historiográfica, muitas vezes em rutura com estudos anteriores. É, também, um livro que aproxima a historiografia a interrogações que permanecem no presente e reconcilia o historiador com o público, recetivo à sua leitura, sabendo-se que há, atualmente, uma grande procura sobre temas históricos a que livros como este respondem amplamente.
Esta história é construída a partir da materialidade do passado contida nos arquivos e nas memórias. Neste caso, as fontes são analisadas e interpretadas a partir de questões colocadas pelo próprio historiador/investigador e, também, abordadas através de um método crítico, o que lhe permite responder às interrogações do presente. Neste sentido, a pesquisa que deu forma a esta publicação revela um conhecimento específico e vasto do autor sobre o contexto histórico analisado.
Não é por acaso que o livro se inscreve nas novas formas de fazer história que, após a crise das grandes narrativas e a previsível crise do linguistic turn, procuram o fundamento material do passado. Nas palavras de Norton Wise, “visam o universal através do particular”, afirmação que Tiago Saraiva refere nas conclusões do livro (p. 320), contrapondo a Wise que, em vez de procurarmos explicações causais, melhor será adotar a metodologia habitual assumindo “o caso individual como sendo representativo de maiores desenvolvimentos, apesar de nunca poder ser abstraído das suas circunstâncias específicas”.
Tal como esta declaração de como fazer a história, o objetivo do livro é remetido para as conclusões: “compreender melhor o modo como as sociedades fascistas surgiram e se expandiram” (p. 320). O autor rejeita usar a ciência como categoria abrangente da modernidade - o que argumenta de forma sustentada, a qual partilho - pois neste caso, teria de falar tanto de fascismo, como de democracia ou de comunismo. Por isso, procura “usar o poder explicativo das narrativas históricas sobre coisas tecnocientíficas para examinar regimes políticos concretos” (p. 320). Nesta obra o autor combina narrativas “centradas em organismos, de historiadores e estudiosos da ciência e da tecnologia, com preocupações mais gerais de historiadores políticos e culturais acerca da natureza histórica do fascismo” (p. 23). É neste aspeto que reside o elemento fulcral do livro: explorar o fascismo como biopolítica, investigando o melhoramento de plantas e animais - sementes de trigo hibridadas, cruzamento de porcos, entre outros - cuja produção é inerente à realidade fascista. Para tal, Saraiva indaga como os organismos tecnocientíficos, criados para sustentar organicamente a nação fascista, foram parte importante da institucionalização dos regimes de Mussolini, Salazar e Hitler, os três casos escolhidos. Mas, diria eu, também da implantação, da adesão e do reconhecimento, mesmo internacional, daqueles regimes antes de 1938.
Uma das utilidades do livro é precisamente a vasta e completa bibliografia sobre os assuntos centrais abordados, à qual o autor recorre não só na argumentação, mas, também, para debater a história das ideologias nacionalistas, especialmente, o tratamento e a abordagem historiográfica do fascismo e, claro, da história da ciência, pois é nesta disciplina que o autor se apoia. Enfrenta, assim, uma tradição historiográfica mais preocupada, a meu ver, pela tipologia e a taxonomia do que pelo enfoque histórico, identificando dois casos canónicos, Itália e Alemanha, tendo, porém, dificuldade em abordar Portugal tal como Espanha, Roménia, Áustria, Grécia ou França. Como bem refere o autor, não há consenso historiográfico sobre estes casos. Há sim, parece-me, na identificação dos movimentos ou das ideologias desses e de outros países, mas não dos seus regimes. Tal deve-se a razões perfeitamente a-históricas mais relacionadas com o relato político das sucessivas realidades posteriores ao tempo em que surgem os fascismos, do que com uma construção baseada em narrativas historiográficas. O tempo da guerra fria não passou em vão sobre este assunto, mas, para os historiadores, está já distante para continuarem interessados nesta questão.
Porém, Saraiva libertou-se, com fundamento, dessa pesada lousa que oculta parte importante dos fascismos, seguindo historiadores como R. Griffin e outros, que os apresentam como modernidade alternativa. O autor começa por entender o contexto do fascismo, citando uma afirmação de Mussolini: “todas as experiências políticas do mundo contemporâneo são antiliberais” (p. 11) e outra de Salazar que, após analisar o “grande laboratório do mundo contemporâneo”, concluiu: “dentro de vinte anos, se não aparecer algum movimento retrógrado na evolução política, já não haverá nenhuma assembleia legislativa na Europa” (p. 11). Não se pode sintetizar melhor o tempo, o pensamento, a expectativa e, também, o carácter revolucionário dos fascismos que querem romper com o passado.
Uma vez liberto dessa lousa, o autor formula um debate com historiadores que, contudo, raramente são citados explicitamente, preferindo referir-se a historiadores generalistas ou a fazer alusão ao consenso historiográfico, o que, penso, desmerece o debate necessário.
Uma outra utilidade prática do livro são os balanços introduzidos em cada um dos capítulos, pelo autor, após expor os seus argumentos, descrever, ou mesmo detalhar, a documentação que analisa para fundamentar as suas interpretações. No conjunto da obra, estes balanços constituem conclusões parciais ou contundentes, sendo, também, afirmações clarificadoras, como declara na introdução: “este livro interessa-se pelo mundo fascista alternativo que a ciência produziu, não pela ciência alternativa que o fascismo produziu” (p. 12).
Outra forma de construir o fascismo apresenta-se aqui materializada na tecnociência impulsionada e aplicada pelos fascismos. Ou seja, a modernidade alternativa fascista completada e integrada na sua forma mais básica, material e produtiva. Já não é só o artefacto estético do futurismo de Marinetti, mas a modernidade radical de que falou Griffin e, além disso, a participação dos cientistas através dos seus organismos tecnocientíficos - sementes e novas variedades de alto rendimento criadas por hibridação. Tal foi possível, sobretudo, pela participação ativa de uma nova geração de cientistas na construção do Estado corporativo do fascismo, de que as suas instituições de investigação fizeram parte, e que, simultaneamente, o estruturaram e legitimaram. Como é claramente identificado no livro, alguns centros e laboratórios já existiam, sendo, por vezes, significativamente ampliados, e foram criados outros novos desde o início da estabilização dos regimes fascistas. A nação orgânica estava assim alimentada e em crescimento devido aos novos trigos tecnocientíficos dos geneticistas, como por exemplo António Sousa da Câmara, em Portugal, entre outros (p. 92-93).
Sobre este aspeto, para o autor a questão sobre a ciência e o fascismo não é a de saber se os cientistas eram ou não fascistas, ou se foram reprimidos sob os regimes fascistas - e aqui o conhecimento dos seus percursos pessoais, como é o caso do agrónomo antifascista Aurélio Quintanilha (pp. 230-232), é claramente demonstrativo da força deste paradigma. O mais inesperado nesta questão, sublinha Saraiva, é o facto de os agrónomos e os seus organismos tecnocientíficos - de espécies e variedades - participarem diretamente na construção de um Estado corporativo. Este é outro assunto fulcral no livro, ao qual são dedicadas muitas páginas nos três casos de estudo, estabelecendo a relação entre os cientistas e a sua experimentação, as batalhas e as campanhas agrárias do trigo, do grão e da colheita, e as estruturas corporativas do Estado totalitário capaz de enquadrar multitudes, setores e grupos.
Este livro demonstra a ligação paradigmática entre o fascismo e as próprias sementes, indo para além do que alguns de nós demonstraram, por exemplo, em relação às políticas agrícolas, e de forma muito mais poderosa.
Neste aspeto, embora não seja referido na obra, não se pode deixar de assinalar a existência e semelhança das estruturas espanholas com as italianas, alemãs e portuguesas, criadas pelo Nuevo Estado em plena guerra, a partir de 1937. O que nunca existiu em Espanha foi a Batalha do Trigo italiana (1925), nem a Campanha do Trigo portuguesa (1929), nem o Dia das Colheitas alemão, em Bückeberg (Hamelin), a partir de 1933. Mesmo assim, os construtores do fascismo espanhol imitaram as campanhas agrárias.
Nesta linha de pensamento, o autor demostra convincentemente que a construção do fascismo não está apenas relacionada com as estruturas políticas e faz-se, também, através da continuação da criação de organismos tecnocientíficos. Saraiva argumenta e constrói a sua narrativa não só a partir da análise do discurso, mas da materialidade dessa mesma infraestrutura tecnocientífica criada nessas décadas pelo fascismo e em prol do fascismo, medindo como se desenvolvem os centros, analisando quem os dirige e quais foram os seus percursos científicos. O autor vai além das caracterizações ideológicas e históricas fixadas num único fotograma, tem em conta que as vidas - tal como as longas-metragens - são muito longas e mutáveis e, por isso, ultrapassa os argumentos escleróticos sobre a natureza dos sistemas políticos que são mais frequentemente construídos com base em narrativas políticas do que na ciência política académica.
O fascismo construía um mundo novo, empenhado em romper com o passado. Deste facto decorre o protagonismo de uma nova geração de cientistas, particularmente jovem, que substitui a anterior, o que é perceptível ao longo das experiências abordadas no livro, mesmo que o autor não o destaque. Disso é exemplo o papel de António da Câmara, com 36 anos, à frente da Estação Agronómica Nacional, criada em 1936, ou a substituição, no BRA (Instituto Imperial de Biologia), de Otto Appel por Eduard Riehn, em 1933, ou mesmo o papel de Walther Darré, agrónomo e ministro.
Se Tiago Saraiva tem grande preocupação com os conceitos, não o tem menos com a escrita, pontuada com humor, o que resulta em páginas e fragmentos de grande valor para o leitor, pelo qual o autor manifesta um enorme respeito. Assim, identifica e constata a coincidência nominal e conceptual procurada pelos fascistas entre propostas científico-técnicas e políticas, como por exemplo o trigo Arditi que assume o nome de um dos primeiros camisas negras fascistas e dos seus antecessores, os soldados italianos de assalto (Arditi, ou seja, ousados), de 1917. Ou, também, como é o caso de um integralista português e latifundiário, José Pequito Rebelo, o mais esforçado desenhador do método integral de cultivo de trigo no Alentejo. Destaca-se, ainda, a referência ao facto de Heinrich Himmler, que tinha estudado Agronomia e que, em 1932, nomeou Walther Darré chefe do Departamento Central da Raça e Colonização, ter entre as suas tarefas a seleção dos candidatos às SS. Esta situação leva Tiago Saraiva a perguntar-se, ironicamente, quem seria mais apropriado para a tarefa de selecionar os humanos das SS do que um especialista na criação de porcos? Darré, o grande ideólogo agrário do “Blut und Boden” (“Sangue e Terra”) nazi, que estudara Agronomia na Universidade de Halle, fora mesmo “assistente” de investigação de Gustav Frölich quanto ao problema da herança da cor dos porcos. Em 1929 publicara um ensaio de referência: “O Porco como Critério para os Povos Nórdicos e Semitas”. O círculo fechava-se sobre si mesmo.
Não é menos interessante o propósito do autor em demostrar, contra o que muita historiografia tem dito, que nos fascismos não havia nenhuma contradição entre ruralismo e modernismo, como evidenciam diversas publicações sobre agricultura.
Um terço do livro é dedicado à inequívoca vontade imperial dos três fascismos, abordada do ponto de vista de como os organismos tecnocientíficos então criados e as instituições que implementaram um sistema de inovação, materializaram as visões imperiais dos respectivos fascismos nacionais, fossem os carneiros caraculos, o cultivo do Taraxacum kok-saghyz, ou do café, fator que definiu a presença italiana na África Oriental.
O cultivo na Europa Oriental ocupada pela Wehrmacht, do kok-saghyz, para substituir a borracha das colónias que a guerra impedia de abastecer a Alemanha, ocupa um lugar central nesta parte do livro. Além disso, o autor identifica e descreve outras interessantes dimensões imperialistas do fascismo, centrando-se na genética. Por exemplo, em Moçambique, foi o melhoramento do algodão promovido pelos colonialistas portugueses, contudo, o autor dedica mais atenção aos carneiros caraculos existentes nos territórios de fronteira dos três regimes fascistas. Mas, neste caso, o argumento é inverso. A diferença dos trigos e dos porcos não seria gerada pelos caraculos, mas antes pelo próprio colonialismo, uma vez que este tipo de atuação é uma característica fundamental do fascismo no intuito de materializar ideias de superioridade racial, independência económica e destino nacional.
Para concluir, segundo o autor, numa democracia em que se não separe a natureza da sociedade, não há qualquer virtude intrinsecamente democrática ao falar de «coisas científicas», dada a sua história que o fascismo materializou e que o livro aborda.