Introdução
Durante a primeira metade do século XX, em especial no período Entreguerras, assistiu-se a uma intensificação do debate a respeito das formas de atividade ilegal que transcendiam as fronteiras dos países, justificada pelo incremento das ameaças políticas, associadas ao comunismo e ao anarquismo, e pelo desenvolvimento de novas práticas de delito comum, como o tráfico de pessoas, de estupefacientes e a falsificação de dinheiro. Para esta situação contribuiu um importante conjunto de fatores relacionados com o próprio contexto da época. A nível político, há que destacar o triunfo do comunismo na Rússia, em 1917, e a emergência dos regimes autoritários a partir da década de 1920. No domínio económico, a ocorrência da Grande Depressão de 1929 e as graves repercussões daí resultantes também contribuíram para incrementar a circulação de pessoas no espaço euro-americano. No mesmo sentido, momentos bélicos como a Guerra Civil de Espanha (1936-1939) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foram impulsionadores de uma deslocação massiva de pessoas, com destaque para as vagas de refugiados.
Para fazer frente a estas ameaças, as polícias europeias, mas não só, procuraram internacionalizar o seu diálogo e colaborar de forma mais próxima e constante (Knepper, 2011). Momentos revolucionários, como os ocorridos em 1815 e em 1848, e o desenvolvimento do anarquismo a partir das últimas décadas do século XIX, demonstraram o caráter transnacional dessas ameaças (De Graff, 2020). Este novo quadro implicou uma adaptação por parte das autoridades, preocupadas em impedir o triunfo de ações subversivas e revolucionárias, e evitar o desenvolvimento de práticas criminais que pudessem ameaçar a ordem, a segurança e a tranquilidade dos Estados. Portugal seguiu esta linha de atuação e esforçou-se para se inserir neste internacionalismo policial (Gonçalves, 2023, pp. 242-252). Dentro das suas fronteiras, o regime apostou na repressão de estrangeiros considerados suspeitos políticos e da prática de crimes de delito comum, procedendo à sua detenção e expulsão do país.
Uma vez que a historiografia portuguesa, a respeito da polícia política, tem privilegiado, em especial, a repressão exercida sobre os cidadãos portugueses por parte do regime salazarista (Farinha, 1999; Madeira, 2007), este artigo pretende explorar uma temática ainda pouco abordada, incidindo na repressão policial desenvolvida pelo Estado Novo, nos seus anos iniciais, contra os estrangeiros que entram em Portugal. Assente particularmente em processos individuais instaurados pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), demonstra-se que a vigilância efetuada para além das fronteiras nacionais e o controlo da passagem e da presença de estrangeiros por Portugal, constituíam uma importante dimensão do trabalho desenvolvido pela polícia política neste período e que não era feita uma distinção clara entre os vários grupos de estrangeiros. Para tal, recorre-se, essencialmente, a fontes policiais e a fontes diplomáticas disponíveis em arquivos portugueses, como o Arquivo da Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direção Geral de Segurança (PIDE/DGS) e o Arquivo do Ministério do Interior, à guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, e o Arquivo Histórico do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
O presente artigo demonstra que a população estrangeira entrada em Portugal neste período era bastante diversificada e composta por várias categorias. No entanto, quando se tratava da repressão policial, as autoridades salazaristas não olhavam para as diferenças existentes entre estes estrangeiros, interessando-lhes apenas a supressão da ameaça que acreditavam representarem. Apresentam-se, a seguir, as categorias de estrangeiros consideradas suspeitas pela polícia e a repressão desenvolvida pelo Estado Novo, numa época em que as dissidências políticas e a criminalidade transnacional estavam na agenda das autoridades portuguesas e estrangeiras.
Mobilidades transnacionais
A posição geográfica de Portugal, enquanto elo de ligação entre a Europa e a América, levou a que o país fosse procurado por quem desejava movimentar-se entre os dois continentes, circulações que se intensificaram a partir dos finais do século XIX devido aos desenvolvimentos registados ao nível dos transportes. Migrantes económicos, sujeitos criminalizados, revolucionários e pessoas forçadas à deslocação, como os refugiados, foram os protagonistas desta mobilidade transnacional (Pereira, 2009; Schwarzstein, 2001), realidade percebida nos próprios lugares de destino. Por exemplo, as autoridades nos países do continente americano demonstravam estar conscientes da presença de criminosos entre as várias vagas de estrangeiros que entravam nos seus territórios, afirmando que entre a Europa e os portos sul-americanos deslocavam-se pessoas que procuravam encontrar melhores condições de vida, mas também “gatunos internacionais” (Oliveira, 2020, p. 117).
Assim, importa salientar que as mobilidades deste período contemplavam uma variedade de situações, entre as quais, populações forçadas à migração, que não devem ser confundidas com sujeitos criminalizados. Devido aos eventos políticos e bélicos da década de 1930, formou-se uma imensa e diversa multidão de deslocados, incluindo fugidos da Guerra Civil de Espanha, apátridas, dissidentes políticos do franquismo, fascismo e nazismo e, ainda, judeus europeus e outros refugiados. Neste contexto, devemos ter presente que abordamos categorias diferentes quando nos referimos a “criminosos” - pessoas que se deslocavam entre os países com intenção de desenvolver atividades ilícitas (Galeano, 2016) -, e a “refugiados”, neste caso, pessoas cuja situação política dos seus países havia impulsionado a sua saída obrigatória como forma de preservação da vida (Pimentel, 2006; Vaquinhas, 2015; Pereira, 2017; Faria, 2021).
No entanto, é também importante sublinhar que para a polícia portuguesa não existia uma fronteira entre opositor político e criminoso comum, quando nos referimos à presença de estrangeiros no país. Como veremos mais à frente, não raras vezes a polícia atribuía a prática de crimes a indivíduos que se encontravam em fuga por outros motivos.
A vigilância e o controlo de estrangeiros em Portugal representaram uma importante vertente do trabalho desenvolvido pela polícia política, em particular durante a década de 1930, quando a Europa foi assolada por acontecimentos que impulsionaram a circulação de pessoas. Além disso, sujeitos criminalizados e revolucionários incrementaram também as suas mobilidades. Esta realidade fez com que as autoridades portuguesas se mostrassem cada vez mais preocupadas com o que se passava além-fronteiras e se empenhassem em reforçar a vigilância, a repressão e a expulsão de estrangeiros do país, no intuito de preservar a ordem e a segurança internas.
Contudo, nem todos os estrangeiros eram considerados suspeitos pelo regime. Entre aqueles que eram vistos como suspeitos pelo salazarismo na década de 1930 encontravam-se os opositores políticos, os refugiados políticos, os refugiados judeus, os estrangeiros suspeitos de terem cometido algum crime de delito comum, os acusados de indigência e, ainda, aqueles que eram considerados uma ameaça à mão-de-obra portuguesa, quando o país ainda sentia os efeitos da crise económica de 1929. Foi, portanto, sobre estas categorias de estrangeiros que recaiu a repressão das autoridades salazaristas.
Estrangeiros indesejáveis
Dentro das suas fronteiras, os Estados procuraram anular as ameaças políticas e sociais, razão pela qual os estrangeiros percecionados como suspeitos eram considerados “indesejáveis”. Ou seja, eram categorizados dessa forma todos os “estrangeiros que, por palavras ou ações, se voltassem contra a ordem política, económica, moral e social existentes, considerados nocivos à sociedade e perigosos à segurança pública” (Menezes, 1996, p. 91). Portugal também alinhou nesta lógica repressiva.
Estas políticas foram, de resto, comuns entre os governos e as autoridades um pouco por todo o mundo, categorizando estes estrangeiros como “indesejáveis”. Em Espanha eram assim considerados os estrangeiros cuja presença no país fosse percecionada como passível de interferir negativamente na tranquilidade pública (Aizpuru, 2010, p. 602). Já em França, através de legislação publicada em 1937, optou-se por detalhar e subdividir esta categoria de “indesejáveis” em económicos (aqueles que não possuíam um contrato de trabalho válido no país); sociais (estrangeiros cujas práticas exercidas fossem socialmente condenáveis, como nos casos das prostitutas e dos delinquentes); e políticos (ativistas contrários à política então vigente) (Pérez Rodríguez, 2022, pp. 49-50). Quanto ao Brasil, a mesma categoria englobava todos os estrangeiros que não se enquadrassem no modelo político e social imposto pela sociedade brasileira, nomeadamente vadios, proxenetas, ladrões e anarquistas (Zamorano Blanco, 2006, p. 172). A este conjunto devemos ainda acrescentar os comunistas, que se tornaram os principais “indesejáveis” políticos, sobretudo nos países em que vigoravam regimes autoritários de direita, como foi o caso de Portugal a partir da década de 1930.
Para o Estado Novo era fundamental exercer uma rigorosa vigilância sobre os estrangeiros que se encontravam no país, ou que nele pretendiam entrar, garantindo, assim, a sua manutenção no poder. Os dirigentes salazaristas receavam o contágio ideológico e revolucionário que acreditavam poder ser protagonizado por muitos destes estrangeiros, considerando as suas simpatias políticas. Mas, pretendiam, também, impedir que o território português fosse utilizado para o desenvolvimento de atividades criminais de dimensão transnacional, nomeadamente como uma plataforma de passagem até ao continente americano. Neste sentido, as autoridades portuguesas procuraram exercer uma repressão mais eficaz sobre a população estrangeira, o que implicou o aumento de contactos e de troca de informações sobre indivíduos suspeitos com as polícias de outros países (Gonçalves, 2022) e um maior controlo de estrangeiros no país através da elaboração do seu registo detalhado, da compilação de todas as leis que se referissem a esta população e de alterações ao nível da legislação sobre passaportes2.
Contudo, a elaboração deste registo pormenorizado de estrangeiros residentes em Portugal, ou que tencionavam entrar no país, facilitaria parcialmente o trabalho da polícia, pois era apenas referente aos estrangeiros residentes e não contemplava aqueles que apenas transitavam ou cometiam crimes que envolviam o território português e que, como tal, poderiam não ter uma residência demorada. Acresce ainda o caso daqueles que entravam ilegalmente e sobre os quais não existiam informações.
Criminalização da política
Desde os finais do século XIX que o anarquismo constituía a principal ameaça revolucionária considerada pelos Estados (Jensen, 2014), juntando-se-lhe, a partir de 1917, a ameaça comunista, que alcançou cada vez mais protagonismo no Ocidente ao longo das décadas de 1920 e, sobretudo, de 1930.
Neste contexto, era associada uma dimensão subversiva e revolucionária às ações anarquistas e comunistas, que justificava a necessidade, por parte dos governos ocidentais, da sua repressão e eliminação face à ameaça que representavam para a sua sobrevivência. Os indivíduos responsáveis pelo despoletar destas ações revolucionárias eram considerados criminosos políticos, uma vez que na origem dos seus atos estavam motivações do foro político, assistindo-se, por isso, a uma crescente preocupação com a vigilância internacional de pessoas. O crime político tornou-se uma preocupação internacional, “because subversive and treasonable activities were often conducted with complicity of foreign governments” (Knepper, 2011, p. 146).
Tal como noutros países, também em Portugal se assistiu a uma maior criminalização dos atos de cariz político com o objetivo de suprimir estas ameaças. Neste âmbito, o Decreto-lei nº 21.942, datado dos inícios de dezembro de 1932 e destinado a regular a punição dos delitos políticos e das infrações disciplinares de caráter político, considerava que “Os delitos políticos têm porém atingido desde o início do século uma violência por vezes extraordinária”. Para o governo português, estes delitos eram entendidos como crimes de rebelião contra a segurança do Estado, executados sob a forma de atentados3.
Este Decreto constitui um exemplo da atenção que o governo português prestava aos desenvolvimentos que as questões penais tinham noutros países, assim como elucida sobre a forma como se passou a priorizar o motivo do crime na definição da pena a atribuir aos acusados. De facto, esta orientação já vinha a ser seguida por outros Estados ao longo das décadas de 1920 e de 1930, nomeadamente em Itália, Alemanha, Suíça, Checoslováquia e Noruega. De acordo com esta legislação, havia “que distinguir entre os criminosos políticos impelidos por motivos patrióticos e altruístas, embora viciados de errada visão, e criminosos impelidos por motivos egoístas - a ganância, a inveja, o ódio e o prazer de fazer mal”4.
Estes últimos deveriam ser afastados da atividade política e, como tal, seriam equiparados a criminosos comuns, sofrendo a mesma pena que lhes era atribuída. Por outro lado, aqueles que fossem “impelidos por motivos altruístas, patrióticos”, beneficiariam de penas mais suportáveis e reduzidas, importando, sobretudo, a separação entre os criminosos de delito comum e os de delito político aquando do cumprimento dessa pena5. Em simultâneo, foi publicado o Decreto-lei nº 21.943 com o objetivo de regular a situação dos acusados de praticarem crimes de natureza política, salientando-se que a sua existência se justificava pela necessidade de garantir “A defesa da Ditadura, a boa ordem social e a tranquilidade pública”6.
Já antes, aquando da recriação da Polícia Internacional Portuguesa (PIP), em julho de 1931, observara-se a atribuição de uma centralidade particular à repressão do comunismo, sendo este um dos principais aspetos diferenciadores comparativamente à Polícia Internacional emergente em agosto de 1928. De facto, se esta última “tinha a seu cargo apenas o controlo de estrangeiros e fronteiras, a de 1931 tinha uma ação marcadamente política e de repressão à criminalidade internacional”, a que não foi estranha a instauração da Segunda República em Espanha (Gonçalves, 2022, p. 217).
Encontramos expressas no Decreto-lei que recriou a PIP algumas das competências que remetem para a dimensão política e para a vertente internacional da polícia portuguesa, mais tarde reforçadas aquando do aparecimento da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), em agosto de 1933, já no contexto do Estado Novo. Neste âmbito, cabia à PIP e, posteriormente, à PVDE
combater a ação dos indivíduos que exerçam espionagem no país ou contra ele, efetuar a repressão do comunismo, designadamente no que toca às ligações entre elementos portugueses e agitadores internacionais e colaborar diretamente com os organismos policiais estrangeiros no serviço de informações relativas aos malfeitores internacionais, na repressão de crimes de falsificação de moedas, cheques e de passaportes, publicações ofensivas dos bons costumes, comércio ilícito de estupefacientes e outras matérias que sejam ou venham a ser objeto de entendimentos internacionais7.
Adicionava-se, ainda, outra função que, aliás, já se verificava em 1928 com a Polícia Internacional, que aludia à crescente preocupação com a presença de estrangeiros no país, cabendo a estas várias polícias criadas em contexto de ditadura “impedir a entrada no país de estrangeiros indocumentados ou indesejáveis”8.
Observamos, portanto, que as competências atribuídas à polícia portuguesa no decorrer da década de 1930 já refletiam o contexto internacional face ao aumento da inquietação com as ameaças políticas e as novas práticas criminais que assumiam um caráter transnacional, uma vez que, na sua generalidade, implicavam a existência de redes organizadas que atuavam além-fronteiras. Já verificámos que o comunismo foi entendido pelo governo da Ditadura Militar e, posteriormente, do Estado Novo, como uma importante ameaça política que era necessário controlar e eliminar, não apenas em relação aos cidadãos portugueses, como também aos estrangeiros. Este entendimento enquadra-se no modo como os regimes autoritários de direita percecionavam o comunismo, identificando-o como a ideologia do “mal”.
Para o Estado Novo, que apresentava o anticomunismo como um dos seus principais traços dominantes, o comunismo era considerado “um inimigo da sociedade, um inimigo da Pátria que, além de se traduzir por uma diferença ideológico-política, é quase sempre visto como ‘a destruição de todos os sistemas existentes’” (Faria, 1995, pp. 230-231). Na ótica dos regimes autoritários de direita deste período, marcadamente nacionalistas, o comunismo, de génese internacionalista, era encarado como a expressão do mal, capaz de causar a desordem e a desestabilização da sociedade (Ribeiro, 2008, pp. 164-167). Na prática, o regime vigente receava o despontar de uma revolução comunista que ameaçasse a manutenção do poder. Aos olhos da polícia portuguesa, os estrangeiros apoiantes do comunismo e do anarquismo, por terem preferências político-ideológicas diferentes das oficialmente vigentes em Portugal, eram considerados criminosos políticos. Por esta razão, eram alvo de medidas normalmente aplicadas aos criminosos comuns.
Importa ter em consideração que o crescimento de crimes como o tráfico de mulheres para a prostituição, de estupefacientes e de armas, e a falsificação de dinheiro e de documentos, também despertava a atenção dos governos e das autoridades dos vários países (Gonçalves, 2022). A repressão de alguns destes crimes, como vimos, já estava contemplada nas competências da PIP e da PVDE nos inícios da década de 1930, nomeadamente a “falsificação de moedas, cheques e passaportes” e o “comércio ilícito de estupefacientes”. Desta forma, verifica-se que a polícia não priorizou apenas a questão da vigilância política, preocupando-se também com a repressão de outras práticas criminais de dimensão transnacional.
De destacar, neste capítulo, o papel da Sociedade das Nações, criada em 1919, que promoveu inúmeras conferências e congressos destinados a implementar medidas e acordos que permitissem combater as ameaças à paz nos diferentes países e, também, internacional. Estes encontros incidiram sobre práticas criminais transnacionais, como a pirataria, a falsificação de moeda, o comércio de escravos, de mulheres e crianças, o tráfico de estupefacientes e de publicações obscenas (Silva, 1928, pp. 38-39). São exemplo duas conferências realizadas em Genebra, em 1925, nas quais Portugal marcou presença, que visaram a regulamentação da circulação internacional de estupefacientes destinados a tratamentos medicinais e a punição da sua ilegalidade9. Em abril de 1929, teve lugar a Convenção Internacional para a Supressão da Moeda Falsa (Gonçalves, 2022, p. 205), uma vez que o dinheiro falsificado acabava por sair de um determinado país e por entrar em circulação noutros Estados devido à ação de gangues internacionais (Broekhoff, 1929, p. 15).
Repressão policial sobre estrangeiros
No caso destes “indesejáveis” conseguirem entrar em Portugal, recorrendo à via clandestina, por exemplo, era necessário que as autoridades nacionais atuassem no terreno. Como tal, nos anos iniciais do Estado Novo, são inúmeros os registos no arquivo da polícia política que remetem para a captura e expulsão de estrangeiros por motivos políticos e pela prática de outros tipos de crime, nomeadamente de natureza transnacional. No entanto, devemos ter em consideração que tal procedimento não foi exclusivo do regime salazarista, recorrente já em momentos anteriores, como durante a Primeira República e a Ditadura Militar. Nestes períodos, do ponto de vista político, a vigilância e a repressão exercidas pelas autoridades portuguesas incidiam especialmente sobre os anarquistas, uma prática já seguida em muitos outros países, em particular desde os finais do século XIX com o crescimento da “propaganda pelo facto”, associada a atuações revolucionárias violentas (Gonçalves, 2023, pp. 218-223).
De acordo com um relatório elaborado pelo capitão Agostinho Lourenço, diretor da polícia política, nos finais da década de 1930, foram expulsos 1407 estrangeiros de Portugal entre 1931 e 1938, registando-se os números mais elevados nos últimos cinco anos deste período, sensivelmente a partir do momento em que a PVDE entrou em funcionamento: 238 em 1934, 269 em 1935, 202 em 1936, 274 em 1937 e 257 em 1938. Em termos de nacionalidades, destacaram-se, a larga distância, cidadãos espanhóis, que contabilizaram 788 casos de expulsão, seguindo-se, com números bastante inferiores, pessoas oriundas de países como Itália (76), Alemanha (73), Polónia (67) e França (61)10. Registaram-se ainda 25 expulsões de indivíduos sem nacionalidade que, em virtude de diversos acontecimentos ocorridos após a Primeira Guerra Mundial, tais como o desmembramento dos grandes impérios e as políticas de desnacionalização desenvolvidas pelos Estados autoritários contra as minorias que habitavam nos seus territórios, deixaram de ser reconhecidos como cidadãos de qualquer país e tornaram-se apátridas.
O receio relativamente às ações anarquistas suscitou, também, a troca de informações entre as autoridades europeias a respeito da movimentação de indivíduos suspeitos no espaço ibero-americano, como Portugal, Espanha e Argentina. Muitos destes casos datam do período da Primeira Guerra Mundial, como o ocorrido em abril de 1915. O governo italiano, por intermédio da sua legação em Lisboa, pedia que as autoridades portuguesas exercessem uma rigorosa vigilância sobre Emma Rocco, anarquista italiano que chegara há poucos meses da Argentina e que se estabelecera em Portugal, no sentido de controlar os seus movimentos e o informar caso este saísse da capital portuguesa, “pois se trata de pessoa perigosa cuja pista muito convém não perder” e “é tido como de ideias avançadas”11.
A respeito da entrada e da circulação de anarquistas em território português, as autoridades, receando o contágio ideológico e revolucionário, preocupavam-se especialmente com os contactos mantidos entre elementos portugueses e estrangeiros. Já no contexto da Ditadura Militar foram detidos dois espanhóis cujos casos demonstram, não só este temor do governo português, como também o colaboracionismo policial existente entre Portugal e Espanha em muitos momentos durante este período12.
Frequentemente, os governos e as autoridades dos países autoritários de direita conotavam os suspeitos de anarquismo e de comunismo com a difusão de “ideias avançadas e extremistas”, aquelas que se pretendia evitar que “contaminassem” a população local e levassem ao despontar de movimentos revolucionários. Um claro exemplo da existência desta preocupação em Portugal reporta-se ao período final da Ditadura Militar, aquando da detenção de Bernard Freund, que entrou em Portugal em 1929 para trabalhar como correspondente estrangeiro numa empresa comercial portuguesa. Este cidadão originário do Leste da Europa, provavelmente checo ou eslovaco, foi detido nos inícios de 1932 “pela Polícia Internacional Portuguesa como agitador internacional de ideias extremistas”13, uma designação bastante usada pelas autoridades a respeito de anarquistas e comunistas estrangeiros ao longo deste período. A mesma designação será aplicada aos refugiados republicanos espanhóis poucos anos mais tarde, sugestivamente apelidados de “vermelhos”, em alusão à sua identificação com o comunismo (Faria, 2021, p. 342). Em Portugal, Freund contactou com importantes figuras do comunismo português, como foi o caso do Secretário-Geral do Partido Comunista, Bento Gonçalves14, e acabou por ser expulso do país, na companhia da sua esposa Wilma, também comunista (Nunes, 1981, p. 718).
Apesar de nem sempre se confirmarem as suspeitas políticas que recaíam sobre alguns estrangeiros, estes também acabavam por ser expulsos de Portugal, o que demonstra a intransigência do governo português a respeito da sua presença. Por motivos políticos, económicos e sociais, no período Entreguerras, os países tornaram-se cada vez menos permissivos quanto à entrada de estrangeiros nos seus territórios e reprimiram todos aqueles que consideravam representar uma ameaça à ordem e à segurança internas. Além de França, Espanha e Brasil, que já referimos anteriormente, também na União Soviética dos anos 1930, em virtude de acontecimentos como a ascensão política de Hitler, a Guerra Civil de Espanha e a consolidação do fascismo no Ocidente, se passou a percecionar os estrangeiros e os emigrantes políticos como “elementos potencialmente perigosos”, empreendendo-se uma verdadeira “caça ao estrangeiro” (Iordache Cârstea, 2018, pp. 111-112).
Em dezembro de 1935, a PVDE deteve e expulsou um estrangeiro, caso que exemplifica a implacabilidade do Estado Novo relativamente aos não portugueses que não apresentassem um motivo suficientemente válido para permanecer ou circular no país, recorrendo frequentemente às alegadas simpatias comunistas como justificação para a aplicação de medidas repressivas. Trata-se do italiano Paoli Bonfanti, preso por estar indocumentado e por suspeita de ser comunista, cujo caso é também revelador do internacionalismo e do colaboracionismo policial em crescimento neste período, uma vez que as autoridades portuguesas solicitaram informações a outras polícias europeias para esclarecer a sua situação. Destes contactos resultou apenas a confirmação da sua condição de indocumentado, não se comprovando as suspeitas relacionadas com a militância comunista. Ainda assim, a PVDE considerava que Paoli Bonfanti era um “elemento perigoso e ligado à ação desenvolvida por elementos que comungam dentro daquela doutrina”, justificando a sua expulsão de Portugal nos finais de 193515.
A par dos suspeitos políticos, também foram alvo da repressão do Estado Novo os estrangeiros acusados de associação a crimes de delito comum de natureza transnacional, procurando evitar que o país se tornasse num ponto de passagem e de paragem para criminosos dedicados a estas práticas, como o próprio Agostinho Lourenço considerava, no citado relatório de 1939, que já acontecia. Neste sentido, podemos entender que a vigilância e a repressão das autoridades portuguesas não foram totalmente eficazes, uma vez que muitos destes “criminosos internacionais”, como eram designados pela polícia, lograram entrar em território português.
No âmbito da criminalidade transnacional, os estrangeiros detidos e expulsos de Portugal enquadravam-se na prática de crimes associados à prostituição, ao tráfico de mulheres, de armas e de estupefacientes e à falsificação de dinheiro. O Estado português olhava para a entrada e a presença de proxenetas e de mulheres destinadas à prostituição, aplicando-lhes a expulsão do país, como sucedeu ao espanhol José Rey Martínez e a duas mulheres por ele exploradas, a romena Pepi Hirsch e a francesa Marie Therese Chayne, em agosto de 1933, a quem era também imputado o crime de falsificação de documentos16.
Quanto ao tráfico de drogas, a Ditadura Militar já havia produzido vários decretos-lei com o objetivo de guiar a ação das autoridades relativamente ao consumo e ao tráfico de estupefacientes (Gonçalves, 2022, p. 210). Neste contexto, procedeu-se a um incremento da vigilância e da repressão dirigidas aos indivíduos sobre os quais recaíam suspeitas de envolvimento nestas atividades ilícitas. O mesmo se verificou a respeito dos suspeitos de estarem associados ao crime de falsificação de dinheiro, como o demonstra o caso do cidadão chinês Shen Kolo. Em junho de 1934, a diretoria da PVDE alertou o posto de Barca de Alva para a necessidade de se vigiar a sua entrada ou saída do país, devendo ser alvo de uma rigorosa revista “por constar que se dedica ao contrabando de pedras preciosas ou passagem de moeda falsa”17.
Os anos de 1930, além de terem sido especialmente intensos ao nível de reformulações policiais, como já se havia verificado nos últimos anos da década anterior, demonstraram que a polícia portuguesa se encontrava desorganizada e carente de meios, dificultando a forma como procurava responder no terreno, o que facilitava as atividades criminosas. Entre os problemas apontados pelo capitão Agostinho Lourenço contava-se a carência de meios humanos e materiais, o desconhecimento de idiomas estrangeiros por parte dos funcionários dos serviços internacionais, a carência de um serviço de vigilância dos estrangeiros residentes e a inexistência de relações com as polícias de outros países. Foi a partir da tomada de consciência da inexistência deste relacionamento que a polícia portuguesa, por intermédio do capitão Agostinho Lourenço, começou a dialogar com as polícias de outros países. Como tal, “foi tarefa bem espinhosa essa de sanear Portugal de elementos estranhos e nocivos”18. Ainda assim, muitos foram detidos e expulsos do país.
O impacto da política Ibérica
A realidade política da Península Ibérica na década de 1930, sobretudo no seu período inicial após a instauração da Segunda República em Espanha, em abril de 1931, em choque com a Ditadura Militar (e depois com o Estado Novo), contribuiu para que Portugal se mostrasse receoso em relação ao apoio concedido pelo governo republicano espanhol aos opositores políticos portugueses (Clímaco, 2017). O governo português temia, particularmente, que o contrabando de armas favorecesse a ocorrência de movimentos revolucionários capazes de abalar a sua estabilidade. Deste modo, existia uma questão política muito presente nas preocupações das autoridades portuguesas em relação ao tráfico de armas, exemplo de uma prática que comportava uma dimensão simultaneamente política e de crime comum. Como tal, as autoridades portuguesas agiam nesses espaços onde as comunicações e os contactos entre os exilados portugueses eram mais significativos, sobretudo no Norte, no sentido de eliminarem os pontos de ligação estabelecidos na região fronteiriça por onde ocorria a passagem ilícita de armas19.
Considerando as várias mudanças políticas ocorridas em Espanha na década de 1930, encontramos frequentemente associada uma dimensão política no caso de espanhóis detidos em Portugal, não obstante a sua participação em crimes de outra natureza. Após solicitação das autoridades espanholas, Ángel Samper de Juan, natural de Badajoz, foi detido na capital portuguesa em agosto de 1931, acusado de ter falsificado dezassete letras de câmbio. No entanto, este espanhol terá declarado que o seu pedido de prisão se encontrava relacionado com o apoio político que dera à ditadura do general Primo de Rivera, entretanto dissolvida, argumento que não convenceu a polícia portuguesa, que suspeitava que Samper de Juan não era um perseguido político pela República espanhola, mas sim um criminoso comum que tentava utilizar as mudanças políticas ocorridas no seu país a seu favor, acabando por ser expulso em março de 193220.
Em muitos casos, os estrangeiros detidos eram tanto suspeitos políticos, como suspeitos da prática de outros tipos de crime, o que reflete o receio manifestado por parte do governo português a respeito da presença de estrangeiros no país, sendo estes frequentemente acusados de vários crimes em simultâneo. Dada a oposição política patente na Península Ibérica em vários momentos da década de 1930, os espanhóis constituem um bom exemplo desta situação.
Em meados de 1934, por exemplo, o posto da PVDE localizado em Valença do Minho, era instruído a prestar especial atenção à possível entrada em Portugal do espanhol Enrique Alonso Pacheco, duplamente “indesejável” pelo facto de manter contactos com a oposição política portuguesa em Espanha e de se dedicar ao contrabando de estupefacientes21. Esta situação foi ainda mais evidente no contexto da Guerra Civil de Espanha, na qual Portugal apoiou os sublevados de Franco contra o governo da República e reprimiu os espanhóis que se opunham ao golpe militar franquista, associando-os também à prática de outros crimes. Nos inícios de outubro de 1936, o mesmo posto da PVDE informava as chefias da polícia política sobre a presença de um médico espanhol em Espinho, que “dedica-se ao contrabando de estupefacientes, devendo ser por tal facto vigiado convenientemente, merecendo também atenção especial a sua atuação política, porquanto existem suspeitas que habilmente exerça espionagem a favor do Governo de Madrid”22.
Interessava ao Estado português, assim como aos governos de tantos outros países, eliminar a “perigosidade política” que era associada a estes indivíduos, imputando-lhes a prática de atividades que atentavam contra a ordem pública, a segurança e os interesses do Estado, de modo a que a sua presença fosse indesejada nesses territórios (Aizpuru, 2010, p. 602). No decorrer da guerra civil e nos anos que se seguiram, a partilha do anticomunismo entre o governo salazarista e a Espanha franquista foi um dos principais traços que aproximou ambos os regimes, traduzindo-se na entrega de “suspeitos comunistas” entre os dois países, sempre identificados como elementos nocivos e acusados de várias ações prejudiciais à ordem interna23.
Neste período, os espanhóis que se encontravam em Portugal na condição de refugiados, eram maioritariamente detidos por suspeita de apoiarem a República e a Frente Popular e de se oporem ao golpe militar franquista, pelo que eram associados à defesa da ideologia comunista (Faria, 2021). Em Espanha, os antifranquistas eram apelidados de “peligrosos, rojos, subversivos, hereges, perversos; personas de naturaleza psicosocial degenerativa” (Simões & Espinosa Maestre, 2021, p. 42). Considerando a afinidade político-ideológica com o grupo franquista e a posição assumida por Portugal no conflito espanhol, esta categorização também se aplicava aos espanhóis que se encontravam no país vizinho e constituía uma forma de justificar a repressão exercida sobre os refugiados por parte do governo português.
A proximidade geográfica foi um fator determinante para que a grande maioria dos estrangeiros detidos e expulsos de Portugal, no período que aqui abordamos, fosse de nacionalidade espanhola, como já salientámos. Devemos ainda considerar o facto de a Península Ibérica, Espanha em particular, ter sido um centro de convulsões políticas na Europa ao longo da década de 1930, impactando de forma decisiva as movimentações populacionais na região.
O posicionamento da polícia portuguesa
Alguns autores consideram que a prioridade inicial do internacionalismo policial neste período assentou na repressão política, passando posteriormente a atentar a outros tipos de crimes transnacionais (Deflem, 2002). Para outros (Jensen, 2014; Mazower, 1997), a barreira entre estas duas vertentes não tinha uma divisão muito clara, sendo categorias que acabavam por se sobrepor (Gonçalves, 2022, p. 202). Relativamente a Portugal, prevalecia esta última visão, uma vez que as autoridades salazaristas não estabeleciam esta distinção clara entre o “criminoso político” e o “criminoso comum” quando se referiam aos estrangeiros “indesejáveis”. Esta associação, entre a dimensão política e a criminalidade comum, está patente no discurso de altas individualidades do regime salazarista.
A questão judaica também mereceu a atenção por parte de Portugal, devido à possível entrada de um elevado número de estrangeiros no país, e constitui um exemplo desta correlação de ideias, entendendo Agostinho Lourenço que “o judeu estrangeiro é, por norma, moral e politicamente indesejável” (Pimentel & Ninhos, 2013, p. 301). Desta forma, o regime considerava que muitos dos judeus que poderiam tentar entrar no território português se opunham a governos ditatoriais, como o nazi, do qual pretendiam fugir, e desempenhavam atividades que atentavam contra a moral e os bons costumes defendidos pelo Estado Novo, em particular as de índole criminal, justificando-se a proibição da sua entrada em Portugal.
Em 1934, neste contexto, o tenente José Catela, na qualidade de secretário-geral da PVDE, entendia que Portugal deveria fazer o que estivesse ao seu alcance para impedir que certos grupos da Europa de Leste, nomeadamente judeus polacos, entrassem no país por lhes ser atribuída a prática de crimes como o “tráfico de brancas”, o tráfico de estupefacientes e, ainda, a espionagem (Schaefer, 2014, p. 70). Desta forma, as autoridades portuguesas estabeleciam uma correlação direta entre alguns dos seus principais receios, nomeadamente judeus, tráfico, espionagem e comunismo (Chalante, 2011, p. 51).
Com o início das perseguições nazis, a mobilidade de pessoas na Europa aumentou significativamente, estimando alguns autores que até ao final de 1933, saíram 65.000 refugiados da Alemanha, na sua esmagadora maioria judeus (Marrus, 2002, p. 129). Esta movimentação e a perspetiva de que poderiam chegar a Portugal, levaram o governo salazarista a ponderar a criação de legislação destinada a condicionar a sua entrada no país, que seria implementada no decorrer dos anos seguintes (Chalante, 2011). No entanto, desde os primeiros momentos, conseguimos percecionar no discurso de importantes figuras do Estado Novo o receio da “perigosidade política” atribuída a estes indivíduos, associada à prática de atividades políticas que, no entender destes dirigentes, constituíam uma ameaça à ordem pública e à segurança do Estado (Aizpuru, 2010, p. 602).
De facto, aos olhos do Estado Novo, estes judeus estavam identificados como apoiantes do comunismo, pelo que a sua presença não era desejada e, como tal, a sua entrada deveria ser controlada e limitada. Assim entendia Júlio Augusto dos Santos, embaixador português em Amesterdão que, em maio de 1933, oficiava ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), pois considerava que muitos dos judeus que pretendiam entrar em Portugal eram de origem polaca e russa e defendiam “ideias demasiado avançadas” que procuravam difundir no seio das classes operárias24. Neste mesmo mês, o governo orientou as suas representações diplomáticas na Europa para que se mostrassem mais atentas à população judaica que estava a ser expulsa da Alemanha para impedir que o país fosse invadido por agitadores, extremistas, comunistas e indigentes, considerados perigosos para a ordem do Estado Novo (Chalante, 2011, p. 46).
Agostinho Lourenço considerava que na década de 1930, Portugal havia passado a ser “um retiro para os criminosos internacionais de direito comum”, ou seja, estrangeiros que facilmente conseguiam exercer as suas atividades criminais através, ou no país, o que exigia da parte das autoridades uma maior atenção e eficácia ao nível da vigilância internacional de indivíduos. Tal acabou por acontecer a partir dos inícios de 1933, aquando da criação da Polícia de Defesa Política e Social (PDPS), que alguns meses depois, a partir da sua fusão com a PIP, daria origem à PVDE, o que permitiu separar as questões políticas das questões internacionais e, consequentemente, “dedicar maior atenção aos assuntos estrangeiros e intensificar o contacto com as polícias de outros países, trocando informações e colaborando assiduamente com a ‘Comissão Internacional de Polícia Criminal’ com sede em Viena de Áustria”25.
A consciência demonstrada pelas autoridades portuguesas, aqui expressa nas palavras da maior figura policial de então, a respeito da importância de se intensificar a vigilância sobre a população estrangeira em Portugal advinha do facto de se considerar que este período havido sido uma época “em que uma onda de propagandistas de teorias dissolventes e revolucionárias se espalha por toda a parte - em que numerosos “indesejáveis” sob vários aspetos procuram um país em que recomecem a vida irregular [...] numa época em que enormes massas expulsas por outros Estados pretendem refugiar-se ou infiltrar-se em Portugal [...]”26.
Estas afirmações de Agostinho Lourenço permitem compreender, especificamente, quem eram os estrangeiros considerados pelo Estado Novo como uma ameaça política e social: opositores políticos, em especial comunistas; criminosos suspeitos ou acusados de diversos tipos de crime; e refugiados, nomeadamente os que eram perseguidos pelo nazismo e pelo franquismo.
A Primeira República procurou impor uma vigilância mais apertada dos estrangeiros que residiam ou passavam por Portugal, impulsionada pela ocorrência da Primeira Guerra Mundial e pela mobilidade transnacional daí resultante, conseguida com a legislação mais restritiva da Ditadura Militar (Gonçalves, 2023, p. 241). No entanto, foi no decorrer da década de 1930, já no Estado Novo, com a afirmação da PVDE enquanto polícia internacional, que o país passou a atentar de forma cada vez mais incisiva à entrada de indivíduos de outras nacionalidades, numa altura em que as ameaças estrangeiras eram percecionadas como mais perigosas, consequência dos acontecimentos políticos, sociais e económicos então ocorridos na Europa.
Não raras vezes, as autoridades salazaristas associaram as vertentes do crime político e da criminalidade comum para justificar a vigilância e o controlo exercidos sobre estrangeiros em território português. Desta forma, ao lidar com a população estrangeira que considerava constituir uma ameaça, a PVDE não distinguia de forma clara o opositor político do criminoso, atribuindo-lhes frequentemente a prática simultânea de vários tipos de crime e colocando o comunista, o anarquista, o judeu, o refugiado, o traficante e o falsificador debaixo de uma única categoria, a de “indesejável”.
Apesar de a nacionalidade espanhola se destacar entre os estrangeiros que em maior número sofreram a repressão das autoridades portuguesas - porque também era a comunidade estrangeira mais representada no país - neste período, há que salientar outras nacionalidades que “ameaçavam” o regime salazarista. Eram estas a alemã, a polaca e a russa, associadas ao judaísmo, ao comunismo, à criminalidade e à espionagem, como entendia o secretário-geral do MNE, Luís Teixeira de Sampaio, em março de 1936, afirmando que “são tão vastas e ardilosas as redes de espionagem internacional; tão conhecidos o perigo e a astúcia dos espiões russos e polacos de ambos os sexos, e principalmente do sexo feminino, que o Ministério dos Negócios Estrangeiros considera necessária toda a prudência e reserva nesta matéria”27.
No mesmo sentido, Agostinho Lourenço considerava que os estrangeiros de nacionalidades como a russa e a polaca não pretendiam entrar em Portugal com o objetivo de fazer turismo, mas sim em busca de trabalho, agravado pelo facto de muitos “faz[erem] o tráfico de brancas e viv[erem] à custa da prostituição das amantes e das próprias esposas”28. Desta forma, a polícia estabelecia uma relação entre a entrada de estrangeiros e um aumento de criminalidade no país, especialmente no que diz respeito a estas nacionalidades. No entanto, o emprego desta prática discursiva não significa que todos os estrangeiros entrados em Portugal durante este período fossem criminosos, uma vez que muitos, como os refugiados, apenas procuravam um lugar seguro ou melhores condições de vida.
Este tipo de argumentação possibilitava que o Estado Novo legitimasse a perseguição movida contra os estrangeiros que entendia serem prejudiciais aos valores que advogava, uma vez que, ao serem apresentados como criminosos, deveriam ser reprimidos para garantir o bem-estar social e político. O entendimento que o governo português tinha a respeito destes indivíduos enquadra-se na prática comum neste período, em particular no contexto dos regimes ditatoriais de direita, receando-se que a presença de “estrangeiros subversivos” pudesse contribuir para o despontar de movimentos revolucionários capazes de abalar a sua permanência no poder.
Conclusão
No decorrer da década de 1930, coincidindo com importantes reformulações na orgânica policial em Portugal e com a ocorrência de vários acontecimentos noutros países que contribuíram para o incremento das mobilidades transnacionais, o Estado Novo aumentou a vigilância e o controlo exercidos sobre os estrangeiros já residentes ou que pretendiam entrar no país, receando a influência negativa que poderiam exercer na sociedade portuguesa, contribuindo para o despontar de movimentos revolucionários capazes de abalar as estruturas do regime. Na prática, esta atuação do governo português significou um endurecimento repressivo e o aumento do número de prisões e de expulsões de estrangeiros. A proximidade geográfica com Espanha levou a que os naturais deste país fossem os que, numericamente, mais sentissem os efeitos da repressão salazarista, adicionando-se aos próprios conflitos políticos já existentes na Península Ibérica, que tornavam indesejável a presença de muitos espanhóis em Portugal.
Apesar da dimensão política estar muito presente na ação repressiva do regime salazarista dirigida aos estrangeiros na década de 1930, receando-se o triunfo de ideologias “subversivas e revolucionárias”, as autoridades portuguesas também se preocuparam e procuraram anular outros tipos de ameaças, relacionadas com crimes que exigiam uma prática transnacional, associando frequentemente as duas vertentes e considerando que os criminosos políticos estrangeiros eram também executantes de atividades criminosas como o tráfico de mulheres para a prostituição, de estupefacientes e de armas e, a falsificação de dinheiro e de documentos. A PVDE, ao não distinguir o criminoso político do criminoso comum, legitimava a repressão policial preconizada pelo Estado. Neste sentido, todos aqueles que se enquadrassem nestas categorias eram classificados de “indesejáveis” e merecedores de expulsão do país.