Introdução
Atualmente, assiste-se ao interesse crescente do público pelo tema da burla romântica ou, como habitualmente tem sido designado, romance fraud ou romance scam. O reconhecimento desta forma de criminalidade tem sido claramente exponenciado por programas televisivos de sucesso, dirigidos ao grande público internacional, sobretudo via canais de streaming (e.g., o programa Tinder Swindler, na Netflix, que se baseia na história do burlão Simon Leviev). Existem ainda outros exemplos de burla romântica, alguns já mais antigos, como o paradigmático caso “Capitão Roby”, que remonta aos anos 1970/1980 e que alcançou mediatismo na imprensa nacional, referindo-se a Jorge Veríssimo Monteiro, indivíduo distinto e bem parecido, que se apresentava como adido naval da embaixada de Portugal na Suécia e que enganou dezenas de mulheres ao longo da sua vida adulta, falseando relações amorosas para destas conseguir ilegítimas vantagens económicas1.
Mas, hoje, a burla e, em concreto, a burla romântica, tem despertado particular atenção da criminologia pela sua novidade, frequência e por se encontrar normalmente aliada à cibercriminalidade, implicando novas dinâmicas e consequências mais complexas e multifacetadas. Veja-se que, em 2023, a burla amorosa foi a terceira causa dos pedidos de ajuda dirigidos à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), tendo este número triplicado, quando comparado com os dados do ano anterior (Relatório Linha Internet Segura)2, o que facilmente se compreende. Não se pode esquecer que o advento de um contexto pandémico em 2020, que perdurou por mais de dois anos, redefiniu não apenas as normas sociais e de saúde pública, mas também precipitou uma transformação expressiva na adoção e utilização de meios tecnológicos, quer pela imposição de lockdowns e transição massiva para o teletrabalho, quer pelo aumento exponencial da dependência digital. Ora, estes fenómenos tiveram, naturalmente, consequências em diferentes vertentes da vida tal como a conhecíamos, e a criminalidade não foi aqui exceção. Na verdade, o desenvolvimento galopante e, na falta de melhor termo, precipitado dos meios tecnológicos, como é evidente, trouxe consigo desafios imensos, no que respeita à segurança cibernética, à privacidade (Gouveia, 2020) e à evolução das relações interpessoais - como as relações de amizade e as relações amorosas que encontraram guarida nos contextos online (e.g., Dibble & McDaniel, 2021).
Ora, quando o crime de burla é perpetrado no mundo cibernético, sobretudo através do estabelecimento de relações de confiança no palco das redes sociais3, em concreto, nas aplicações e/ou plataformas de encontros4, as peculiaridades que ressaltam resultam, em geral, da construção de uma realidade virtual enganadora e intencionalmente atrativa, construída à medida das necessidades da vítima escolhida, que se conhecem pela exposição pessoal a que, não raras vezes, as pessoas se sujeitam nas redes sociais, de certa forma, devido à falsa segurança que advém do distanciamento físico ou geográfico entre a vítima e o ofensor. Esta é, de facto, uma nova realidade que, por motivos vários, não pode mais ser ignorada.
É neste enquadramento que o presente artigo se desenvolve, ao objetivar compreender o fenómeno da burla romântica, quer do ponto de vista legal, quer do ponto de vista criminológico, destacando ainda as dinâmicas do processo de vitimação: numa primeira parte, procurando contextualizar e caracterizar o crime de burla, assinalando os aspetos distintivos e as dinâmicas da burla cometida no seio duma falsa relação amorosa, criada como instrumento para ludibriar a vítima da qual se pretende obter uma vantagem indevida, a maior parte das vezes, de natureza patrimonial; depois, desenvolvendo as dinâmicas, consequências e o impacto que a burla romântica representa para a vida da vítima, uma vez que, pelas suas características peculiares, os efeitos desta forma de criminalidade perpassam o foro económico ou patrimonial, podendo promover prejuízos muito significativos ao nível psicológico, mental e social, o que requer especial atenção. Para tal, este artigo baseia-se numa revisão compreensiva da literatura científica complementada com a discussão de dados estatísticos nacionais e internacionais que permitem retratar a dimensão do fenómeno.
Enquadramento jurídico da burla romântica em Portugal
A burla romântica, como o próprio nome indica, é comumente integrada no contexto do crime de burla, cujo tipo legal se prevê no art.º 217º do Código Penal (CP) e no art.º 218º do CP, quando qualificada. Ainda que os objetivos do presente artigo não contemplem uma análise exclusivamente jurídica (antes criminológica) deste fenómeno criminal, impõe-se, naturalmente, um breve excurso por estas disposições legais5.
Dispõe o art.º 217º do CP que comete o crime de burla “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”. Trata-se de um crime, por via de regra, semipúblico (art.º 217º, nº 3), portanto, dependente de queixa (exceção feita às situações referidas no nº 4 do art.º 217º, onde é necessária a dedução de acusação particular, como será o caso de, por exemplo, o agente do crime ser cônjuge da vítima), que é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. A incriminação do art.º 217º do CP confere proteção ao bem jurídico património, diretamente tutelado na Constituição da República Portuguesa (CRP, art.º 62º).
Ora, a burla implica o uso da astúcia pelo agente (e.g., alegação ou invocação, com ardileza e oportunidade, de falsidade de facto, qualidade ou documento) que, com intenção de obter um enriquecimento ilegítimo para si ou para terceira pessoa, assim induz a vítima em erro ou engano (tomando por verdadeira uma realidade falsa, seja por ausência, seja por representação inexata ou incorreta da realidade), o que a conduz à prática de atos lesivos do seu património (a astúcia do agente tem de ser causa adequada e necessária à prática destes atos, o que se afere tendo em conta o contexto concreto em que atua). Implica, ainda, o efetivo prejuízo patrimonial da vítima, como consequência desses atos (exigindo-se também aqui um nexo de imputação objetiva entre os atos praticados pelo ofendido e o prejuízo efetivo do seu património).
Veja-se, todavia, que o art.º 218º do CP prevê a qualificação da burla para quem praticar um facto - com os contornos aqui descritos -, mas que apresenta uma ou mais das seguintes particularidades:
O prejuízo patrimonial ser de valor elevado (situações em que é aplicável pena de prisão até cinco anos ou pena de multa até 600 dias) ou de valor consideravelmente elevado (aqui já é aplicável pena de prisão de dois a oito anos)6;
O agente fazer da burla modo de vida, o que se refere ao modo como este consegue “obter os proventos indispensáveis à sua vida em comunidade, não sendo absolutamente preciso que se trate de uma ocupação exclusiva ou contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do visado”7. Portanto, a burla tem de ser fonte de proveitos para o sustento do agente, “ainda que tenha meios próprios de subsistência ou rendimentos lícitos”8. Este modo de vida resulta de uma “unificação de condutas reiteradas, que, vistas isoladamente, constituem, cada uma delas, um crime de burla «simples» (art.º 217º do CP) e, no seu conjunto, uma situação de concurso de infrações”9. O que obviamente não resultará na punição do autor em moldes de um concurso efetivo de crimes de burla qualificada (quando muito, seria punido em concurso pelas condutas de burla simples, nos termos dos art.os 30º, nº 1 e 77º do CP, caso não se verificasse esta qualificativa), mas antes por um único crime de burla qualificada, “sob pena de a condenação por crimes de burla qualificada em concurso resultar em insuportável violação do conteúdo material do princípio constitucional ne bis in idem (art.º 29º, nº 5, da CRP) ou da proibição da dupla valoração”10;
O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença, donde resulte uma minoração considerável das capacidades físicas e/ou psíquicas da vítima, que a torne especialmente indefesa contra uma atuação de aproveitamento intencional por parte do autor do crime11;
Finalmente, a burla é qualificada quando a pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica, que há de ser avaliada no caso concreto, tendo especial atenção à situação económica da vítima antes e depois da burla.
Aqui chegados, e contextualizada juridicamente a burla romântica em Portugal, há que ter em conta que, consoante as circunstâncias de desenvolvimento desta atividade, outras formas de responsabilidade podem advir da conduta do burlão. Desde logo, a responsabilidade civil associada à indemnização pelos danos causados à vítima - patrimoniais, mas também morais (art.º 483º e seguintes do Código Civil [CC]) -, e por eventuais contratos celebrados entre a vítima e o autor do crime e, por estes, incumpridos. Mas, não nos esqueçamos que os contextos de burla romântica podem também entrecruzar outras formas de criminalidade, como será o caso de, na conjuntura da burla, se cometerem cibercrimes, no âmbito da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, ou de a burla se desenvolver num cenário paralelo de violência doméstica (nos termos do art.º 152º do CP), de se verificar fraude sexual (art.º 167º do CP), ou de serem cometidas burlas informáticas (de acordo com o disposto no art.º 221º do CP).
A burla romântica e a cibercriminalidade
O desenvolvimento das novas tecnologias e a normalização da internet são características inegáveis nas sociedades contemporâneas, tendo vindo a proliferar, sobretudo desde os anos 90 do século XX. A par do contributo destes fenómenos para a evolução social, nas mais diversas áreas, é igualmente reconhecido que estes novos meios de comunicação se tornaram bastante atrativos para o desenvolvimento de atividades ilícitas. Efetivamente, a cibercriminalidade é hoje uma das maiores preocupações securitárias a nível internacional (Goddard, 2021).
O cibercrime ou o crime informático, entre outras designações possíveis (Guedes, Moreira & Cardoso, 2021), é, em linhas gerais, caracterizado pelo conjunto de atos ilícitos que são cometidos através do ciberespaço (e.g., Furnell, 2003).
Ao nível dos crimes informáticos, a EUROPOL (2018) destacou a existência de duas realidades distintas: i) os crimes ciberdependentes; e ii) os crimes ciberassistidos. Os crimes ciberdependentes são os que recorrem a um sistema informático, com vista à prática de crimes; por sua vez, os crimes ciberassistidos dizem respeito às ofensas comuns, mas que fazem uso da internet com vista a facilitar a prática criminosa, ainda que os crimes possam continuar a ser cometidos sem a intervenção direta das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Outras tipologias conceptuais são, contudo, relevantes. Albuquerque (2006) dividiu este tipo de criminalidade em: i) crimes informáticos impuros, que são os respeitantes aos factos já tutelados num quadro penal, mas que recorrem a uma forma inovadora de cometimento (e.g., crimes contra a honra); e ii) crimes informáticos puros, relativos a ações em que o meio informático constitui condição essencial para a prossecução do crime (e.g., sabotagem informática).
Também o papel que as TIC assumem na viabilização do facto criminal pode ter diferente natureza (Chawki et al., 2015): i) como sujeito, quando proporciona o contexto para a ocorrência de um crime; ii) como ferramenta, quando permite ao agente planear um crime posterior sem que, para isso, o agente pratique qualquer ilícito criminal quando utiliza a TIC; ou iii) como símbolos, quando o autor utiliza o dispositivo para lograr enganar, fraudar ou burlar as vítimas.
Importa agora referir que, segundo Dias (2012), a prática da cibercriminalidade apresenta três elementos fundamentais: i) a transnacionalidade; ii) a deslocalização; e iii) o anonimato. A transnacionalidade torna-se possível através da utilização de redes informáticas internacionais, a transferência de dados e informações a nível global, num período temporal muito curto, senão imediato, o que dificulta o controlo e a interceção, por parte das instâncias formais, destas práticas criminais. O agente do crime consegue, assim, perpetrar o ilícito criminal, a partir da sua casa, em qualquer parte do mundo. A deslocalização entende-se como a transferência dos métodos tradicionais de cometimento de crimes para o uso destas ferramentas que a evolução tecnológica proporciona e que permitem praticar atos de forma anónima. Finalmente, o último elemento - o anonimato -, que, como se sabe, é um dos grandes “trunfos” do cibercrime e que possibilita, nomeadamente, ocultar toda a informação circulante, através de práticas de encriptação e, consequentemente, dificultar, de forma quase impeditiva, a localização do infrator.
Resulta do exposto que o cometimento do crime através do ciberespaço traduz-se num fenómeno que se diferencia da criminalidade dita tradicional, por se concretizar em sistemas informáticos e redes de internet, prescindindo do habitual espaço físico (Klymenko et al., 2020), e que, por isso, merece especial atenção. Mas, existem outras características que tornam a cibercriminalidade única e desafiante, sobretudo quanto à sua prevenção e repressão, entre as quais, a natureza transnacional das infrações, a dificuldade em identificar os infratores, as dificuldades em matéria probatória (e.g., com a recolha de evidências eletrónicas ou digitais), a crescente expertise técnica dos próprios criminosos.
Outro aspeto que merece destaque é a atual grandeza deste fenómeno criminológico. De acordo com os dados disponíveis no Internet Crime Report do Federal Bureau of Investigation (FBI, 2022), foram registadas, entre 2018 e 2022, 652 000 queixas de esquemas de burla pela internet. No mesmo período, registou-se também um aumento de 300% no número de queixas por burla informática em todo o mundo.
Esta tendência foi igualmente verificada em Portugal, onde se tem evidenciado um aumento gradual do cibercrime, no geral, e das burlas informáticas, em particular, sobretudo entre os anos de 2018 a 2023. Segundo os dados adiantados no Relatório Anual de Segurança Interna (SSI, 2023), entre 2018 e 2019, registou-se uma subida acentuada do número de burlas informáticas, de 9783 para 16 310, de tal modo que este foi considerado o crime com maior relevância, em termos de crescimento (aumento de 66,7% em relação ao ano anterior). Em 2020, o valor aproximou-se do registado em 2019, mas, já em 2021, verificou-se uma subida de 7,7%, com um total de 21 374 participações (SSI, 2023). Em 2022, o mesmo relatório deu conta de uma inversão de tendências, com um ligeiro decréscimo, na ordem dos 2,2%, quando comparado com o ano anterior (SSI, 2023). Esta descida, ainda que pouco expressiva, consolidou-se em 2023, com uma redução de 3,6% (SSI, 2024). Ainda assim, a tendência, em termos absolutos, desta “moderna” forma de criminalidade é de aumento (Europol, 2023), o que, particularmente nos últimos anos, pode estar relacionado com a situação pandémica da Covid-19, que acarretou, entre outras medidas, a imposição de restrição da circulação de pessoas e, por conseguinte, forçou a um isolamento social para o qual as pessoas não estavam preparadas, potenciou um acesso muito mais frequente à comunicação online, designadamente, no que agora mais nos interessa, para fins de manutenção dos relacionamentos interpessoais. É o que Geraldes (2020, p. 9) designa de uma “maior dependência do ciberespaço para vivências pessoais, sociais, profissionais”, potenciando, em paralelo, a vivência criminosa pela mesma via.
Já quanto ao crime de burla, e como vimos, este constitui-se como um dos principais meios de “captação do alheio” (Santos & Leal-Henriques, 2023, p. 967), e é um crime que se materializa através do embuste, engano e mistificação, que o agente, de forma astuta, utiliza para obter vantagens ilegítimas, para si ou para terceira pessoa. E, neste sentido, é um crime com características e dinâmicas muito próprias, sobretudo no que respeita à pessoa do ofensor, uma vez que este é, normalmente, uma pessoa capaz, apta e integrada na comunidade, o que é um ponto comum com a criminalidade económico-financeira, e mais distanciado dos crimes ditos tradicionais (Santos & Leal-Henriques, 2023).
Mas, o fenómeno específico da burla romântica, que envolve o enganar alguém com promessas de amor ou compromisso para obter benefícios financeiros, apresenta contornos específicos, que importa compreender. Este tipo de burla sempre existiu, mas a era digital amplificou, de forma abrupta, o seu alcance. A internet revolucionou a maneira como as pessoas interagem, criando oportunidades para relacionamentos, mas, também, facilitando a prática de crimes de burla romântica (Whitty & Buchanan, 2012). A facilidade de criar perfis falsos em redes sociais e sites de encontros permitiu que os criminosos atingissem um público mais amplo, mantendo o anonimato e, bem assim, dificultando a sua identificação por parte das autoridades. Além disso, a comunicação instantânea e a possibilidade de o ofensor se fazer passar por qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, eliminam o atrito das barreiras geográficas e são facilitadoras da confiança por parte das vítimas.
Daí que, hodiernamente, se assista a uma reconfiguração do fenómeno da burla romântica na era digital, que se justifica, não apenas pelos fatores tecnológicos que já enunciámos, mas também pela sua combinação com fatores de ordem psicológica: o estabelecimento de relacionamentos online potencia na vítima uma rápida ilusão de intimidade e confiança que, influenciada ainda pela falta de interação física, reduz as probabilidades de deteção da ação enganosa e permite um maior controlo da narrativa por parte dos ofensores (Cross, 2020; Cross et al., 2018).
Burla romântica: conceptualização, dinâmicas e características do fenómeno
A burla romântica é um fenómeno de engenharia social que, embora encontre raízes nas conhecidas fraudes nigerianas12 ou do prisioneiro espanhol (Gillespie, 2017), surgiu, na vertente cibernética, apenas no início dos anos 2000 (Bilz et al., 2023). Estas fraudes, recorrentes nos anos 1990, consistiam na recepção de correspondência provinda, quase sempre, da Nigéria, com uma proposta de negócio. Na carta, o remetente afirmava possuir determinada quantia (avultada) de dinheiro, à qual não podia associar-se e que, por isso, precisava do destinatário para transferir parte daquele valor. Para tal, solicitava os dados pessoais e bancários, e consumava, assim, a burla.
Em termos conceptuais, a burla romântica é definida como “um método através do qual os indivíduos utilizam a perceção de uma relação legítima para manipular e explorar a vítima” (Cross, 2020, p. 3). Trata-se de um comportamento que exige uma ligação pré-estabelecida entre duas pessoas - uma vítima e um ofensor -, a partir da qual o ofensor faz uso inapropriado dos desejos da vítima de lograr uma relação genuína e verdadeira e de encetar uma relação amorosa, para depois a burlar e, assim, beneficiar economicamente dessa ligação (Buil-Gil & Zeng, 2022; Europol, 2023). Efetivamente, esta tónica na natureza romântica da relação entre vítima e ofensor é o aspeto diferenciador, em termos de modus operandi, das restantes formas de burla.
Na burla romântica, os agentes recorrem à vulnerabilidade das vítimas e à exploração da afetividade e dos sentimentos de outrem, de modo a alcançar os objetivos a que se propõem. A intenção não é estabelecer um relacionamento sério com a(s) vítima(s), mas antes criar temporariamente essa perceção, até que consigam retirar dela(s) uma vantagem (e.g., Dickinson & Wang, 2023; Thompson, 2016). Significa isto que o agente recorre a uma relação pessoal para ludibriar a vítima e obter um ganho financeiro. E é exatamente aqui que se dá corpo a um conceito multímodo de vitimação, o qual desenvolveremos adiante, mas que se relaciona com o facto de as vítimas, nestes casos, não serem afetadas apenas do ponto de vista económico e/ou patrimonial, sendo, ao invés, múltiplo o impacto do crime na sua vida, nomeadamente do ponto de vista psicológico e emocional.
A vitimação na burla romântica é, assim, caracterizada pela exploração emocional e financeira das vítimas, com consequências que vão além das incidências materiais. Ao envolver uma manipulação interpessoal - o que não acontece noutros tipos de crimes financeiros - este fenómeno apresenta uma forma singular de vitimação, criando uma vulnerabilidade extrema.
Importa realçar, enquanto fator de risco para a vitimação, que pessoas que apresentam níveis mais elevados de crenças românticas evidenciam maior probabilidade de vitimação (Buchanan & Whitty, 2014). Concretamente, estando a vítima mais permeável à existência de um relacionamento amoroso, será mais fácil de ser enganada pelas técnicas fraudulentas utilizadas pelo agressor (Buchanan & Whitty, 2014). Do mesmo modo, segundo Kashdan et al. (2014), pessoas mais empáticas tendem a ser alvos mais fáceis destes esquemas ardilosos, uma vez que, tendencialmente, hesitam menos quando se trata de apoiar alguém que se apresenta numa situação de sofrimento. Tal vulnerabilidade acrescida aplica-se, também, a pessoas mais passivas ou ingénuas que, por regra, não apresentam a experiência ou o julgamento necessários para compreender adequadamente as intenções de terceiros, bem como a indivíduos mais otimistas, pois tendem a negligenciar mais o risco nas situações e, consequentemente, a adoção de comportamentos protetores (Kashdan et al., 2014).
Todavia, na conceção de Dias (2012), as vítimas também tendem a abdicar de princípios básicos de segurança aquando da utilização das tecnologias e, sobretudo, da internet, tornando-se, por essa razão, mais vulneráveis à ocorrência deste tipo de fenómenos. Ainda que esta premissa possa ser verdadeira na generalidade dos crimes informáticos, no caso da burla romântica, em específico, torna-se perigoso estabelecer uma relação inversamente proporcional entre a segurança informática e a ocorrência do crime, uma vez que neste há um envolvimento interpessoal e emocional (pelo menos por parte da vítima), inexistente na maior parte dos outros crimes daquela natureza. Neste sentido, Sorell e Whitty (2019) consideram que as vítimas de burla romântica não podem ser culpabilizadas, já que se veem enredadas numa armadilha tentacular de argumentos persuasivos e aparências atrativas criada pelos ciberagressores.
O processo da burla romântica inicia-se com a pesquisa e procura, por parte do infrator, da vítima perfeita, usualmente criando, para o efeito, um perfil online falso que depois utiliza nessas redes sociais e/ou websites ou aplicações de encontros. Após o estabelecimento de contacto com a vítima escolhida, o ofensor mantém o seu plano por variados meios de comunicação (e.g., e-mail, redes sociais, telefone, presencialmente), sedimentando uma relação de confiança com a vítima (Anesa, 2020; Whitty & Buchanan 2012). A confiança estabelecida e a conexão emocional entre vítima e ofensor resultam de um conjunto de técnicas interpessoais desenvolvidas ao longo de um período de tempo. Segundo Carter (2021), o agressor objetiva o processo a médio ou longo prazo, exatamente para conquistar a confiança da vítima. Só depois, alcançada essa confiança no seio duma pretensa relação romântica, o ofensor inicia todo um processo de chantagem ou aproveitamento emocional, que envolve, sobretudo, pedidos de bens monetários e de partilha de conteúdos íntimos (Whitty, 2013). Não raras vezes, o agressor coage a vítima a entregar-lhe quantias monetárias ou bens patrimoniais, ameaçando com a divulgação de conteúdo íntimo trocado, supostamente, no cenário duma relação amorosa (Cross, 2020). Note-se que Whitty (2013), com base em entrevistas realizadas a 20 vítimas deste tipo de crime, identificou sete fases no processo de burla romântica: i) vítima motivada a encontrar um parceiro ideal; ii) vítima em confronto com o perfil ideal; iii) processo de aliciamento; iv) o golpe (the sting); v) continuação da burla; vi) abuso sexual; e vii) revitimização.
Whitty e Buchanan (2012, 2016; Buchanan & Whitty, 2014) são referências teóricas incontornáveis nesta matéria, tendo desenvolvido o “modelo de técnicas persuasivas de burla”, que destaca a existência de duas predominantemente utilizadas pelos ofensores: i) a técnica foot in the door, e ii) a técnica face in the door. A primeira refere-se aos perpetradores que iniciam a burla pedindo uma pequena quantia de dinheiro à vítima e que, à medida que ganham mais confiança, voltam a pedir e/ou a exigir novas quantias, cada vez mais, avultadas. A segunda, envolve um pedido inicial de uma elevada quantia que, à partida, seria recusada pela generalidade das pessoas, seguindo-se solicitações de montantes menores.
Já Koon e Yoong (2013), num estudo sobre burlas românticas, analisaram a linguagem utilizada em 21 e-mails trocados entre o perpetrador e a vítima, com vista a estabelecer as estratégias utilizadas pelo ofensor para criar uma personalidade confiável. Entre as identificadas, destacaram-se a adesão à mesma fé religiosa ou às mesmas crenças espirituais, ou ainda, a manifestação dum elevado desejo e atração pela vítima. Além disso, os ofensores utilizaram tendencialmente, como ferramenta de deslumbramento das vítimas, demonstrações de riqueza, nomeadamente exibindo carros e casas de luxo, viagens ou refeições em restaurantes caros (Cassiman, 2019; Lazarus, 2018), levando-as a reconhecer-lhes inteligência, engenho e admiração.
Uma revisão sistemática da literatura sobre o tema, desenvolvida por Lazarus et al. (2023), estruturou as técnicas de pressão psicológica sobre as vítimas em cinco tipologias: i) urgência ou escassez; ii) autoridade ou credibilidade; iii) estabelecimento de relacionamento; iv) medo ou intimidação; e v) phishing. A técnica da urgência ou escassez recorre a questões de saúde como justificação para a solicitação às vítimas de apoio financeiro, o que, muitas vezes, é conseguido pela empatia gerada pela situação narrada, que desperta um sentido de urgência na resposta e na resolução da situação, criando na vítima o receio das consequências negativas que poderão advir se não prestar a ajuda solicitada. A técnica da autoridade ou credibilidade está relacionada com a apresentação, pelos agentes do crime, de falsas ocupações profissionais que tendencialmente suscitam confiança em terceiros (e.g., militares, funcionários de reconhecidas organizações, professores, médicos), precisamente para se poderem fazer valer desse sentimento de confiança (Cross & Holt, 2021; Cross & Layt, 2022). Por sua vez, a técnica do estabelecimento de relacionamento remete para a exploração de emoções ou desejos das vítimas (e.g., promessas de vidas luxuosas, viagens), através do uso da sedução ou do elogio, como meio de ganhar a sua confiança. Já a técnica do medo ou intimidação recorre à coação e à ameaça para instar as vítimas a responder às solicitações. Finalmente, no phishing, os agentes procuram ludibriar as vítimas com o intuito de delas obterem informações confidenciais que lhes permitam aceder ao património ou às vantagens desejadas (e.g., acesso às contas bancárias).
A diversidade de estratégias que o ofensor pode adotar é, assim, amplamente reconhecida, tal como o é o facto de estas se poderem revestir, também, de um carácter mais coercivo e abusivo. Um estudo desenvolvido na Austrália (Cross et al., 2018) sobre experiências de vitimização por fraude online, que envolveu entrevistas semiestruturadas a 21 vítimas de burla romântica (9 homens e 12 mulheres), evidenciou a similaridade entre algumas características deste tipo de burla e as da violência doméstica, nomeadamente pela violência psicológica exercida sobre as vítimas em ambos os fenómenos criminais. De igual modo, Whitty (2013), ao comparar as dinâmicas utilizadas em casos de romance scam e de violência doméstica, concluiu que, em ambos, os ofensores tendem também a promover algum isolamento da vítima, nomeadamente em relação à sua família e grupo de pares, exigindo uma maior concentração e entrega no relacionamento que os une.
Ainda que este tipo de fenómeno se possa materializar em meios offline e online, tem-se verificado que tem maior expressividade em espaços online, sobretudo através das redes sociais e/ou websites ou aplicações de encontros (Cross et al., 2018). De acordo com o Pew Research Center (Anderson et al., 2020), em 2020, cerca de 23% dos indivíduos residentes nos Estados Unidos da América (EUA) envolveram-se num encontro romântico com outra pessoa que conheceram através de um site ou aplicação de namoro.
Também nos EUA, segundo dados da Statista (2023), o número de burlas online, entre as quais a burla romântica, aumentou exponencialmente nos últimos anos. Concretizando, entre 2019 e 2022, a subida foi de cerca de 50%, o que resultou em perdas de cerca de 10,3 mil milhões de dólares. Já no que concerne exclusivamente ao romance scam, os EUA surgem em terceiro lugar entre os países com maior incidência deste tipo de burlas, sendo a lista liderada pela Índia e pela Nova Zelândia (Statista, 2023).
No Reino Unido, os dados são similares: nos anos de 2014 a 2017, o número de casos de burla romântica rondava os 250, crescendo para uma média de 600 casos por ano entre 2019 e 2020 (Buil-Gil & Zeng, 2022). Whitty e Buchanan (2012) realizaram um estudo neste país, com o objetivo de quantificar e analisar experiências de vitimação de burlas românticas online. Concluíram, numa amostra de 2028 adultos (902 homens e 1126 mulheres), que mais de metade dos participantes (65%) foi vítima deste tipo de esquema. Mais recentemente, Sinclair et al. (2023) apontaram para um aumento de 55% dos casos de romance scam em Inglaterra e no País de Gales, entre outubro de 2018 e outubro de 2021.
Ainda que o (re)conhecimento e investimento teóricos deste e neste fenómeno sejam ainda escassos, sabe-se, com segurança, que a burla romântica tende a acarretar um elevado prejuízo para as vítimas, como antes caracterizado, o que justifica a sua relevância em termos de investigação criminológica. A nível global, estima-se que esta forma de criminalidade acarreta perdas económicas entre os 39 a 230 milhões de euros (Cross, 2020; Cross et al., 2018) e destaca-se o facto de ser um fenómeno crescente e agravado pela pandemia por Covid-19 (Kemp et al., 2021).
Em termos de características sociodemográficas destes ofensores, e não obstante a evidência de que os homens tendem a ser os principais perpetradores (Lazarus & Button, 2022; Lazarus & Okolorie, 2019), diversos estudos apontam para um papel ativo e central das mulheres na burla romântica (e.g., Cassiman, 2019; Forkuor et al., 2020; Krumbiegel et al., 2020). A este propósito, o trabalho desenvolvido no Gana, por Cassiman (2019), revelou que as mulheres que desempenham papéis de ofensoras nas burlas românticas enfrentam um maior estigma social, uma vez que são menos aceites socialmente do que os homens ofensores, sobretudo devido à transgressão do papel social de género que lhes está subjacente (Carlen, 1988; Carlen & Worral, 2004). De notar que, de acordo com investigação nesta matéria (e.g., Anesa, 2020; Kopp et al., 2015), as técnicas utilizadas por estes indivíduos para atrair as suas vítimas poderão também variar em função do género. Em concreto, há evidências de que as mulheres tendem a recorrer à sedução como forma preferida de pesquisa ou procura das suas vítimas (e.g., inserindo fotografias sedutoras ou sexualmente apelativas nos perfis que criam), enquanto os homens tendem a optar pela criação de perfis mais elitistas, ao partilharem uma imagem de si que induza à riqueza e a um estatuto social elevado (e.g., partilhando viagens e outros contextos duma vida glamorosa) (Anesa, 2020). Veja-se, a título de exemplo, casos como os reportados pela comunicação social portuguesa, nomeadamente em revistas semanais e programas televisivos de mulheres que foram enganadas por indivíduos que assumiam identidades falsas (nomeadamente fazendo-se passar por militares que estariam em missão ou por médicos) e que recorriam a perfis igualmente forjados (com recurso a fotografias concordantes com tal identidade) para lesar financeiramente a vítima. Como refere a própria reportagem da revista Sábado “[n]a foto, aparecia fardado e o nome na farda era o que ele dizia ser”13.
Relativamente ao poder preditivo de fatores demográficos para este tipo de vitimação, Whitty (2018) procurou testá-lo através da aplicação de um questionário online a cerca de 12 000 participantes residentes no Reino Unido. Deste total, apenas 200 participantes admitiram ter sido vítimas de burla romântica, sendo estes, em geral, pessoas de meia-idade, de personalidade mais impulsiva e com menores mecanismos de autocontrolo. Whitty (2018) salienta, também, os elevados níveis de escolaridade das vítimas, o que pode estar associado a maiores níveis de autoconfiança relativamente à capacidade de lidar com um caso de burla/fraude e, consequentemente, ao aligeirar das medidas de segurança e da desconfiança natural perante determinadas situações, tornando-se, por isso, mais vulneráveis. O estudo apontou, ainda, para a grande dificuldade destas pessoas em percecionar-se como vítimas, ou seja, em acreditarem que foram realmente enganadas, mesmo quando tal informação lhes é diretamente evidenciada por profissionais das forças policiais.
Do ponto de vista das consequências, o impacto para estas vítimas não é apenas financeiro (decorrente, entre outros, de perda de produtividade, custos médicos, custos com advogados), sendo amplamente reconhecido o seu potencial prejuízo emocional/psicológico, mas também o físico, nomeadamente com reações físicas percecionadas como desagradáveis, como aumento do ritmo cardíaco, hiperventilação, tremores, entre outros (Canadian Resource Centre for Victims of Crime, 2005; Cohen et al., 1994; Kashdan et al., 2014). No que respeita ao impacto psicológico e emocional, de facto, sabe-se que ser vítima de qualquer tipo de engano pode acarretar prejuízos, nomeadamente em termos da capacidade de confiar nos outros e de estabelecer relações interpessoais, dificuldades que se podem manter a longo-prazo (e.g., Canadian Resource Centre for Victims of Crime, 2005; Sprigings et al., 2023). No caso concreto da burla romântica, dado que, em muitas situações, a vítima cria um forte laço emocional e romântico com o autor do crime - tipicamente ausente em outros tipos de burlas -, o impacto tende a ser maior (e.g., Lazarus et al., 2023). A vítima costuma ficar fragilizada do ponto de vista emocional ao ver as suas expectativas defraudadas no que respeita à relação que julgava amorosa (Bilz et al., 2023). É, por isso, comum, assistir-se a sentimentos de culpa, traição e vergonha, assim como ao comprometimento das relações pessoais e íntimas, e da capacidade de manter uma vida laboral estável, podendo a vítima experienciar reações psicológicas intensas, como ansiedade, depressão, isolamento social e, em última instância, tentar o suicídio (Button & Cross, 2017). De notar, ainda, que a vergonha, além de ser uma consequência bastante comum deste tipo de vitimação, tende a dificultar o processo de denúncia, constituindo-se, nesse sentido, como um importante fator para a compreensão das elevadas cifras negras admitidas neste tipo de criminalidade (Cross et al., 2023).
Conclusão
Nas sociedades contemporâneas, a expansão crescente e o potencial impacto nefasto da burla romântica tornam este ilícito criminal num fenómeno de grande relevância social e criminológica. O reconhecimento do carácter multifacetado desta forma de criminalidade tem vindo a aumentar. Com a evolução das tecnologias, esta forma de burla surge cada vez mais associada aos espaços online, explorando virtualmente as vulnerabilidades emocionais e psicológicas das vítimas, gerando uma pseudo relação amorosa para lograr avultados ganhos financeiros. Por seu turno, os espaços online têm vindo a assumir cada vez mais um maior protagonismo nas sociedades atuais, certamente acelerado pela recente experiência de um contexto pandémico que, entre outros, precipitou uma transformação expressiva na adoção de meios tecnológicos e na vivência e dependência digital, potenciando novas formas de criminalidade e de vitimação. Tendencialmente, os espaços online têm sido utilizados por algumas pessoas para, com intuitos distintos, enganar outras. No caso da burla romântica, o ofensor orquestra (frequentemente em função das vulnerabilidades e necessidades que percebe nas potenciais vítimas) toda uma realidade virtual enganadora e intencionalmente atrativa para manipular e conseguir ludibriar as vítimas.
Assim, enquanto fenomenologia de engenharia social, esta prática acarreta, usualmente, um prejuízo significativo para as vítimas, não apenas a nível financeiro, mas também em termos sociais e de saúde física e, sobretudo, psicológico/emocional.
Ainda que o crime afete a todos de forma idiossincrática, é consensual que, para a maioria das pessoas, qualquer tipo de vitimação criminal é vivenciada como uma experiência perturbadora e debilitante, nomeadamente pelo seu carácter inesperado, provocando prejuízos em diversas áreas das suas vidas e que, não raras vezes, são difíceis de superar. Em concreto, o engano no contexto de um relacionamento, independentemente da sua natureza (amorosa ou não), se mina a confiança da vítima em relação ao ofensor, também pode promover um efeito em catadupa, potenciando a desconfiança geral em relação às intenções dos outros e, assim, dificultar o estabelecimento e a manutenção de relacionamentos interpessoais de qualidade, essenciais à vida em sociedade (e.g., Sprigings et al., 2023). Se assim é, nos casos de vitimação por burla romântica, que envolvem o forjar de sentimentos positivos e de uma relação de amor, é expectável e facilmente compreensível que tal prejuízo para as vítimas seja ainda maior.
De acordo com os dados apresentados ao longo deste artigo, a incidência crescente deste crime nos EUA e no Reino Unido, com milhares de novos casos reportados anualmente, sublinha a dimensão do impacto deste tipo de vitimação, não sendo este apenas de carácter monetário. O prejuízo psicológico/emocional e social é igualmente predominante nos testemunhos recolhidos, com muitas das vítimas a descrever a dificuldade em restabelecer relações de confiança, nomeadamente, devido ao sentimento de traição. Este efeito prolongado sobre o bem-estar psicológico e, em última análise, sobre a qualidade de vida das vítimas, sublinha a gravidade do crime que ultrapassa os danos financeiros, e revela-se devastador no plano emocional e relacional.
Deste modo, sentimentos de desconfiança generalizados, isolamento social e a consequente experiência de solidão tendem a ser potenciados nestas situações. Atendendo a tais consequências negativas comuns em casos de vitimação por burla romântica, resulta inegável a necessidade de atender ao fenómeno e à relevância social e científica do mesmo. O relacionamento interpessoal (e a subjacente capacidade de confiar no outro) é indispensável à vida humana e à base da vida em sociedade, havendo inclusive quem já caracterize a solidão como uma crise de saúde pública (cf. Sprigings et al., 2023).
Num mundo onde, em geral e há décadas, a confiança entre as pessoas parece estar em declínio, urge investir esforços para inverter esta tendência. No caso da burla romântica que, pela sua natureza, envolve o defraudar de sentimentos e expectativas positivas, o comprometimento da confiança e, consequentemente, da capacidade de relacionamento interpessoal, tende a ser ainda mais significativo e prolongado no tempo. Neste sentido, atendendo à sua complexidade e multicausalidade, parece-nos que a resposta dos Estados tem de ser, igualmente, multifacetada e integrada, envolvendo, não apenas, sensibilização e educação sobre o fenómeno, mas também respostas psicossociais e do sistema de justiça criminal concordantes com as necessidades de prevenção, geral e especial, deste ilícito criminal, bem como de apoio às vítimas, frequentemente sobrecarregadas pela complexidade do sistema de justiça criminal.
Cremos, por isso, que o enfoque do sistema de justiça deve recair sobre a sensibilização das vítimas para a denúncia da burla e a oferta de estratégias de proteção que atendam a todas as especificidades dos danos sofridos por aquela, nos termos já expostos.
Torna-se, igualmente, urgente questionar se a lei penal vigente protege a vítima de forma adequada, e se dá resposta cabal a esta criminalidade em expansão, designadamente interrogando sobre a necessidade de criação dum tipo legal de crime específico para a burla romântica que considere todas as particularidades que lhe são inerentes.
Este desafio criminológico não pode, portanto, ser alheio ao ordenamento jurídico português, que tem procurado levar a cabo uma atuação integrada na criação legislativa e nas estratégias nacionais de segurança. Contudo, os crescentes números de burlas informáticas em Portugal, especialmente durante e após a pandemia por Covid-19, apontam para a complexidade do fenómeno e para a necessidade urgente de respostas (re)ajustadas às suas idiossincrasias. Tal sugere a conveniência de um apoio especializado e multidisciplinar para as vítimas, uma vez que a recuperação destes eventos, como antes referido, exige não apenas reparações financeiras, mas também intervenções psicológicas, como o restaurar da estabilidade emocional, da confiança e da capacidade de estabelecer e manter relacionamentos interpessoais e sociais adequados.
Julga-se necessário, por isso, um estudo mais focado na caracterização e compreensão das particularidades e dinâmicas desta crescente forma de criminalidade, e, assim, a adoção estruturada de respostas apropriadas e de abordagens abrangentes à burla romântica, o que obrigatoriamente implicará a interseção e coordenação de diferentes disciplinas, nomeadamente da criminologia, do direito, das ciências tecnológicas e da psicologia.