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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.38  Braga dez. 2020

https://doi.org/10.17231/comsoc.38(2020).2595 

ARTIGOS TEMÁTICOS

A crise dos refugiados: sequências narrativas e emoção em crónicas/reportagens ou a narrativa ao serviço da persuasão

The refugee crisis: narrative sequences and emotions in opinion articles/reports or narratives in the service of persuasion

 

Isabel Margarida Duarte

http://orcid.org/0000-0001-7908-5649

Centro de Linguística, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Portugal

 

RESUMO

Pretende mostrar-se, num corpus ad hoc de textos dos média centrados na crise dos refugiados, de que forma alguns mecanismos linguísticos e, mais especificamente, enunciativo-pragmáticos contribuem para a construção de um discurso empático, usado para fins argumentativos. Esses textos jornalísticos estão entre a crónica e a reportagem. Tomam partido, embora não o façam explicitamente, através de um conjunto de argumentos lógicos, objetivamente arrumados e assumidos pelo locutor, mas antes através de narrativas que têm os refugiados como fonte de informação e como protagonistas e, às vezes, como narradores primeiros. Por meio dessas narrativas, o locutor procura aproximar-se da vivência trágica relatada pelos refugiados e trazê-la para perto do leitor, cuja empatia (Lencastre, 2011) visa conquistar. A empatia linguística (Rabatel, 2017) traduz-se em mecanismos enunciativos como pôr-se no lugar do outro, assumindo a sua voz, para compreender o seu ponto de vista. As sequências narrativas, mas também as descritivas e dialogais (Adam, 2005) estão ao serviço dessa empatia, através da qual se procura conseguir a persuasão do alocutário. Serão elencados vários mecanismos que contribuem para a mesma estratégia discursiva de convencimento do alocutário, através da patemização do discurso. Conclui-se que a emoção no discurso (Plantin, 2011), que leva à empatia, é maior se for protagonizada pela voz de pessoas com nome e histórias situadas em espaços que se podem descrever, pondo palavras relatadas, narrativas e descrições ao serviço da construção da tese que os locutores jornalistas defendem.

Palavras-chave: empatia linguística; persuasão; narração; refugiados; média

 

ABSTRACT

We intend to show, using an ad hoc corpus of media texts on the refugee crisis, how several linguistic and, more specifically, enunciative-pragmatic mechanisms contribute to the construction of an empathic discourse, used for argumentative purposes. These journalistic texts, between opinion and reporting, take sides, although not through a set of logical arguments objectively arranged and assumed by the speaker, but, instead, through narratives that show refugees as a source of information either as protagonists or, sometimes, as initial narrators. Through these narratives, the speaker seeks to approach the tragic experience told by refugees and bring it to the reader, with the aim of conquering his empathy (Lencastre, 2011). The linguistic empathy (Rabatel, 2017) translates into enunciative mechanisms, such as placing yourself in someone else’s place, assuming her voice, to understand her point of view. The narrative, descriptive and dialogical sequences (Adam, 2005) are at the service of this empathy, through which the speaker tries to persuade the addressee. Several mechanisms will be listed that contribute to the same discursive strategy of persuading the addressee, through discourse patemization. We conclude that emotion in discourse (Plantin, 2011) that favours empathy increases when done through the voice of people with names and stories located in spaces that can be described, using reported speeches, narratives and descriptions for the construction of the theses defended by the journalists.

Keywords: linguistic empathy; persuasion; narration; refugees; media

 

Introdução

Na sequência da guerra na Síria, em parte responsável pela crise dos refugiados que tem assolado a Europa nos anos mais recentes1, a imprensa convencional e os média online usam a emoção para convencer o leitor quer a favor quer contra a entrada de refugiados e as políticas de acolhimento ou de rejeição violenta adotadas pelos diferentes países europeus. Para a construção da argumentação em prol de uma ou de outra posição (acolhimento versus rejeição) são usados variados tipos de argumentos, uns que se pretendem mais objetivos e por isso utilizam números, estatísticas e gráficos e outros mais assumidamente emotivos. Teremos em conta argumentos considerados afetivos que, tais como os outros, podem aproximar-nos ou afastar-nos emotivamente da experiência vivida pelos refugiados. Os que vamos analisar servem-se de vários mecanismos linguístico-discursivos como eufemismos, metáforas, diversos tipos de elementos de encarecimento e de atenuação, etc., que contribuem para a construção discursiva de empatia entre o leitor e os refugiados, como se poderá verificar no corpus de crónicas escolhido para este trabalho. Estamos perante aquele discurso a que Plantin chamou “comunicação emotiva” (Plantin, 2011, p. 141), que implica a comunicação intencional de emoções por meio de palavras ou outras formas semióticas, como as fotografias, por exemplo. A utilização das unidades linguístico-discursivas referidas testemunha a capacidade de ajustamento das palavras às nossas intenções comunicativas, ou seja, aquilo a que Zhang (2015) chama “linguagem elástica”: “nós ajustamos, modificamos, e manipulamos as nossas palavras para acomodar necessidades discursivas particulares” (p. 5). No caso em apreço, a intenção dos locutores é a de criar empatia entre o leitor e os refugiados, para convencer o leitor e assim o fazer fazer.

A empatia, segundo Lencastre (2011, p. 12) é a “capacidade de sentir a situação emocional dos outros através das próprias representações neurais e orgânicas, é um mecanismo automático que nos permite identificar com as emoções e agir em função disso”.

As sequências narrativas (Adam, 2005) encaixadas nas crónicas que constituem o corpus utilizado neste trabalho têm por efeito, a nosso ver, aumentar o grau de empatia entre o leitor e os refugiados, como procuraremos mostrar.

Os objetivos deste trabalho são os seguintes:

  1. analisar as sequências narrativas presentes num corpus de crónicas/reportagens, mostrando que se encontram ao serviço da argumentação, por via do reforço da emoção e da criação de laços empáticos entre o leitor e os migrantes/refugiados;
  2. apontar elementos linguísticos e enunciativo-pragmáticos que concorrem para marcar o ponto de vista empático do enunciador.

O corpus analisado é composto por sete textos da imprensa portuguesa2 – dois da autoria de Alexandra Lucas Coelho3 (publicados no jornal Público, na rubrica Crónicas de Alexandra Lucas Coelho, Não-ficções) e cinco de André Cunha4 (publicados na revista Visão, com o título genérico “Nós e o novo muro”, Crónica de André Cunha em cinco capítulos)5

 

 

Estes textos, embora atravessados por forte argumentatividade, nem são textos de opinião com posições dos locutores jornalistas marcadamente assumidas, nem são dominantemente argumentativos. As principais teses que ambos os jornalistas defendem, ainda que não explicitamente, podem ser resumidas nos seguintes tópicos: i) os refugiados merecem a nossa solidariedade e acolhimento porque fogem da guerra, da violência e de atrocidades; ii) são gente comum como nós, com sonhos, profissões, famílias e afetos; iii) além de vítimas da guerra, são-no também de máfias, de grupos extremistas europeus, da insensibilidade dos líderes; iv) a Europa não está a saber lidar com esta crise; v) os húngaros esqueceram-se do seu próprio passado; vi) nem todos os húngaros são indiferentes ao sofrimento dos refugiados. Para conseguirem a adesão dos leitores aos pontos de vista defendidos, os textos são construí015 dos com mecanismos enunciativos e linguísticos específicos capazes de provocarem empatia entre aqueles de quem se fala e o leitor.

 

Enquadramento teórico

Este trabalho situa-se na área da análise do discurso e da linguística da enunciação. Procuraremos compreender de que modo as sequências narrativas estão ao serviço da argumentação e testemunham a posição do enunciador/jornalista, que se aproxima de umas opiniões e se afasta de outras, a partir das diferentes vozes que se fazem ouvir nos textos analisados, das escolhas feitas pelo enunciador para narrar e descrever. Pela forma como produz o discurso, isto é, pelo modo como se configura aquilo que é dito, e pela seleção dos tópicos convocados, o léxico selecionado, o ponto de vista adotado, os estereótipos usados, as formas de referenciação, o valor enunciativo dos conectores empregues, o texto conduz o leitor preferencialmente para a adesão a um dos lados da polémica que se instalou, na Europa, a favor ou contra o acolhimento humanitário de refugiados.

A existência de abundantes marcadores de subjetividade (os subjetivemas de que fala Kerbrat-Orecchini [1980]) deixa passar, como um terreno poroso, o ponto de vista dos jornalistas. O facto de o centro deíctico adotado ser, com frequência, o dos próprios refugiados, no que diz respeito, por exemplo, à categoria gramatical de pessoa e ao espaço, permite que jornalista e leitor adotem pontos de vista próximos dos desses locutores primeiros, a partir de cujas subjetividade e experiência conhecemos os acontecimentos. Ver-se-á, então, como as sequências narrativas presentes nos textos estão ao serviço da argumentação, por via do reforço da emoção e da criação de laços empáticos entre o leitor e os refugiados que vêm chegando à Europa, fugidos, sobretudo, do Iraque e da Síria, tema central das crónicas selecionadas, sendo o pathos6 um elemento de aproximação entre as duas entidades.

A análise tem também por enquadramento teórico a noção de empatia linguística (Rabatel, 2017), que “de uma perspetiva enunciativa, consiste em pôr-se no lugar de um outro (interlocutor ou terceira pessoa), um locutor que empresta a sua voz a um outro, para encarar um acontecimento, uma situação do ponto de vista do outro” (Rabatel, 2017, p. 300). Esta empatia linguística, Rabatel considera-a sobretudo tendo em conta “a referenciação dos objetos de discurso”, referenciação que dá conta do ponto de vista da fonte enunciativa: “as escolhas de qualificação, de modalização, de quantificação, de ordem dos componentes, etc., denotam o ponto de vista da fonte enunciadora segunda” (Rabatel, 2017, p. 301), “em modo empático, o locutor-enunciador primeiro (L1/E1) não exprime diretamente as suas emoções, evoca, de forma mediatizada as emoções que imputa a um outro diferente de si, um enunciador segundo (e2 = X, […])” (Rabatel, 2013, p. 66). Ora a expressão textual desta evocação das emoções alheias é um recurso do enunciador primeiro (E1) para persuadir o leitor. Tem uma intenção performativa de levar o leitor a agir.

A convocação do conceito de “reportatividade”, uma subcategoria da evidencialidade, permite compreender melhor a construção discursiva da empatia: L organiza o texto, não com o “seu próprio material cognitivo” (Hattnher, 2018, p. 101), mas a partir das palavras que narram a experiência dos outros.

Para esta análise, convém situar os textos estudados num momento concreto da história recente das migrações para a Europa, a saber, agosto e setembro de 2015, quando as chegadas massivas de refugiados ao velho continente, e as tragédias a elas associadas ocupavam o máximo de atenção dos média. A compreensão plena do texto exige o conhecimento do contexto histórico em que o texto surge e sobre que atua.

Por outro lado, a consideração do género a que os textos pertencem é de importância também, porque sabemos que as características de género marcam a organização linguístico-discursiva dos produtos textuais. Ora os textos agora em apreço poderão ser considerados crónicas ou reportagens, e esta classificação de género merece ser questionada brevemente. Oficialmente, tais textos são crónicas, pelo menos no entendimento dos dois média que os publicam. Os de Alexandra Lucas Coelho, no Público, fazem parte de uma rubrica chamada “Não ficções”. Esta designação genérica pode englobar quer crónicas quer reportagens, mas situa-as, pelo menos, no texto de tipo jornalístico, por oposição à ficção que a autora também escreve7. E os de André Cunha assumem-se como uma crónica em capítulos (ou episódios), como é dito a abrir a primeira, em 29/08/2015:

crónica de uma viagem, realizada no início deste verão, ao longo da planície onde se juntam a Hungria e a Sérvia, dias antes da construção da maior barreira fronteiriça na Europa desde a queda do muro de Berlim. A nova obra de arame farpado é a resposta do governo húngaro à maior crise migratória do Velho Continente depois da Segunda Guerra. Primeiro episódio.

O facto de o próprio locutor falar em “capítulos” anuncia que os diferentes textos têm unidade e coerência, apesar de terem sido publicados em datas diferentes (mas próximas) e, por outro lado, que há neles um assumido pendor narrativo. Pese embora a designação de crónica, os textos têm características de género híbridas entre a crónica e a reportagem, já que, como acontece neste último género jornalístico, contam factos, a maior parte das vezes a partir das palavras, ou do resumo das narrações prévias dos próprios protagonistas dos eventos. São textos construídos, sobretudo, a partir das narrativas de outros locutores, em que a evidencialidde, ou seja, a indicação da fonte da informação ou é a perceção pessoal e subjetiva do próprio locutor/jornalista ou o recurso ao discurso relatado pelos intervenientes nos eventos narrados. O sujeito enunciador deixa passar o seu ponto de vista como acontece na crónica, mas narra, recolhe opiniões, dá voz aos outros, como na reportagem. Os textos de Alexandra Lucas Coelho são mesmo acompanhados das fotografias de alguns dos protagonistas que nele falam e cuja história a jornalista relata. Essas fotografias contribuem, aliás, para reforçar o dito e a respetiva orientação argumentativa. Os de André Cunha apresentam fotos da Reuters, que não se referem, especificamente, às personagens de quem se fala, mas ilustram o tema genérico da marcha dos refugiados, bem como infogravuras que auxiliam o leitor na compreensão da complexidade do tema, fornecendo-lhe informações com mapas e números. Tais documentos visam informar mas também credibilizar o discurso, conferindo-lhe, aos olhos do leitor, um maior grau de fiabilidade.

Tendo em conta o livro de estilo do jornal Público, diríamos que os textos partilham muitas das características das reportagens:

a reportagem deve incluir todas as versões contraditórias, através de uma multiplicidade de dados, entrevistas e fontes de documentação. A adaptação de uma história concreta ao contexto geral de uma reportagem é uma técnica especialmente aconselhada: centrar o assunto num caso pessoal concreto, em vez de se perder numa generalização anónima. (Público, 2005, p. 176).

Os textos em apreço articulam-se, justamente, em torno de casos pessoais concretos, com sujeitos que narram as suas experiências dolorosas. As palavras dos narradores individuais são selecionadas estrategicamente pelos jornalistas, porque, tendo os protagonistas vivido situações trágicas, ninguém melhor do que eles as podem narrar e mais eficazmente elas podem comover quem lê. As sequências narrativas curtas que existem nesses textos cumprem, a nosso ver, uma função persuasiva: de comover o leitor, aproximando-o do sofrimento dos refugiados, apresentados como pessoas normais, idênticas ao leitor, próximas e, portanto, capazes de desencadear empatia (são professores, músicos, estudantes, por exemplo).

Outras sequências das crónicas/reportagens que com as narrativas intrinsecamente cooperam serão analisadas por idêntico prisma: 1) quer as sequências descritivas que mostram espaços inóspitos e seres humanos em sofrimento, ou, pelo contrário, espaços paradisíacos contrastando com esse sofrimento humano; 2) quer as sequências dialogais, em que é relatado discurso dos vários intervenientes, através, sobretudo, do discurso direto, que confere ao narrado vivacidade, verosimilhança, dramatismo e portanto emoção, traduzível em eficácia argumentativa. A presença do discurso direto, além do mais, credibiliza o discurso do jornalista, pelo testemunho aparentemente fidedigno que transmite. E ainda porque, como afirma Kronning sobre o discurso relatado,

o discurso relatado tem uma orientação modal invariavelmente positiva. (…) Essa orientação modal explica-se por um princípio pragmático geral, um topos, derivado da máxima da qualidade de Grice, segundo a qual o locutor deve tentar agir de modo a que o seu discurso seja verídico. Segundo esse topos (cf. Kronning (2005, p. 304, 2010, p. 26); Ducrot (1984, p. 157), se alguém diz alguma coisa, o facto de a dizer é um argumento para que aquilo que diz seja verdadeiro. (Kronning, 2012, pp. 87-88)

Também a escolha desse discurso atribuído aos refugiados, aos que os auxiliam ou aos líderes e cidadãos europeus que lhes são hostis está ao serviço da criação de diferentes imagens, mais ou menos empáticas. A convocação de vários enunciadores (Ducrot, 1985) e pontos de vista concorre para a criação de um ethos8 de objetividade e imparcialidade que a construção discursiva dos textos, aliás, contradiz, mas que a presença de infogravuras, por seu turno, confirma. A assunção mais ou menos explícita pelo locutor/enunciador 1, das vozes e pontos de vista dos enunciadores e2, permite-nos considerar este discurso como fortemente dialógico. Veremos, por fim, como o locutor assume, explícita ou implicitamente, certas posições em relação aos diferentes objetos do seu discurso, nomeadamente em relação aos vários atores em causa, sobretudo aos atores principais, os refugiados.

 

Análise do corpus

As sequências narrativas ao serviço da emoção

Em qualquer sequência narrativa, as personagens são centrais, porque são elas que agem (sendo agentes), ou sofrem os efeitos da ação de outros (sendo pacientes). Em todo o caso, é em torno da personagem que a ação se organiza. É por causa dela e da sua sorte que sofremos ou nos alegramos com a leitura ou a escuta da narrativa. As personagens apresentadas pelos autores dos textos aqui em apreço são simultaneamente frágeis e simpáticas. Os diminutivos e o léxico da linguagem infantil contribuem para a valorização empática dos protagonistas, muitas vezes crianças, jovens e mulheres, ou seja, concorrem para a construção de objetos discursivos que são seres fracos e em risco, a necessitarem de proteção: “priminhos”, “a priminha loura de totós e franja, e olhos sempre franzidos” (Coelho, 13/09/2015). A adjetivação valorativa está ao serviço da construção avaliativa positiva das personagens, ainda mais quando ganha saliência pela anteposição do adjetivo ao nome, como nos dois últimos excertos a seguir: “pés minúsculos”, “a pequena Fatma e o seu também pequeno irmão Ahmed” (Cunha, 07/09/2015). O uso de crianças para comover e cativar o leitor é um recurso expectável, porque a proteção da infância é um valor humano indiscutível e, portanto, largamente partilhado, fazendo parte da doxa9.

A narrativa faz-se sobretudo na primeira pessoa, frequentemente por meio de citações entre aspas, o que aumenta o dramatismo e a subjetividade do relato:

foram “milhares de pessoas a fugir, deixando tudo, carros e camiões cheios de gente”. Demoraram dia e meio na estrada, em direcção a Erbil, a capital curda. “Mas não nos receberam muito bem, já havia muita gente, deixaram-nos a dormir em jardins”. (…) Vian quer contar a sua versão da viagem. “Fugimos de carro, um carro com dez pessoas, e eu ia à frente, com os dois filhos no colo, 36 horas assim, desmaiei duas vezes”. (Coelho, 13/09/2015)

Esta prevalência da primeira pessoa é visível, como um anúncio, logo nos títulos das peças jornalísticas de André Cunha. Sendo os locutores os intervenientes nas curtas histórias narradas, e remetendo o deíctico pessoal, preferencialmente, para os próprios refugiados, a primeira pessoa marca, já a partir do paratexto, o tom testemunhal dos artigos: “Nós e o novo muro”, crónica de André Cunha em cinco capítulos: “A Hungria está a transformar-se num gueto”; “Da minha janela, vê-se o muro”; “Se bombardeassem a minha cidade, eu também fugia”; “Nós estamos a fugir da guerra, não queremos mais violência”; “Não tenho pai, não tenho mãe. Pum pum! Taliban”.

O segundo texto de Alexandra Lucas Coelho começa com palavras de um refugiado em discurso direto, portanto na primeira pessoa, antes de a jornalista sequer descrever o espaço ou apresentar o locutor:

“pode chamar-me Ivan”, disse ele. Estávamos sentados num jardim no Norte do Iraque, fim de tarde tão tranquilo que duas guitarras ao centro alcançavam tudo. Mas naquele canto o que acontecia era uma separação. Ivan foi o nome que ele escolheu caso eu contasse a história no jornal. (Coelho, 20/09/2015)

Esse espaço que enquadra as personagens narradoras é um espaço alheio e distante de nós, o espaço do outro: “era um campo daqueles que ficam em África, no Médio Oriente, neste caso no Norte do Iraque”. O demonstrativo e o adverbial de lugar, com valor de distância ampliado pelo facto de ocorrer três vezes, têm ainda, neste exemplo, para além de um valor de dêixis, um claro valor modal que aponta para um lugar afetivo distante do enunciador-jornalista e dos seus leitores: os campos ficam longe de nós, não só no espaço, mas sobretudo nas nossas preocupações e emoções de europeus ocupados com os nossos pequenos ou grandes problemas.

 

Sequências descritivas e posição do enunciador

O discurso direto dos refugiados é enquadrado pelo chamado “discurso atributivo”10, pequenos apontamentos descritivos sobre gestos, e outros elementos que acompanham as palavras em discurso direto, “lágrimas começam a correr-lhe pela cara, ela continua a soluçar, mas quer continuar”, numa clara contaminação da não ficção pela ficção que Alexandra Lucas Coelho também escreve:

“a certa altura começámos a ouvir balas por cima de nós eu não sabia o que era, o ‘Estado Islâmico’ estava atrás de nós, e nós precisávamos de atravessar um checkpoint…”. Lágrimas começam a correr-lhe pela cara, ela continua a soluçar, mas quer continuar: “um tanque veio e esmagou carros. Eram milhares de pessoas, milhares. Durante 36 horas não comemos. Só no checkpoint estivemos um dia inteiro, bebemos só água da casa de banho, que ninguém bebe. Cheguei como morta”. (Coelho, 13/09/2015)

A referenciação da desmesura do sofrimento é construída por formas de superlativação como hipérboles e repetições (“eram milhares de pessoas, milhares”; e, noutro texto: “foram milhares de pessoas a fugir, deixando tudo, carros e camiões cheios de gente”) e metáforas hiperbólicas (“esmagou carros”; “amontoam-se milhões que fogem de guerras”) ou apenas disfóricas, indiciando pobreza e restrição: “o contentor é aquele rectângulo”.

Nas sequências descritivas, os subjetivemas (Kerbrat-Orecchioni, 1980) são muito abundantes. A adjetivação concorre para exarcebar a emoção, por, através dela, o enunciador marcar a sua própria posição de compaixão em relação aos refugiados. Contribui ainda para a referenciação, uma vez que acrescenta pormenores, qualificações, elementos descritivos aos objetos do mundo aos quais os nomes se referem, tornando-os mais informativos e mais precisos. Tal adjetivação disfórica traça um cenário de urgência e catástrofe humana, pois a terra é “batida”, as crianças “descalças”, o calor “sufocante”, os pés “minúsculos”: “terra batida, contentores, coberturas de plástico, crianças descalças. (…) Faz um calor sufocante no contentor, que é a única casa que ele conhece, o calor irrita-lhe a pele com os seus pés minúsculos” (Coelho, 13/09/2015). Metáforas (“contentor (…) única casa”), complementos do nome (“coberturas de plástico”) e verbos expressivos (“irrita-lhe”) contribuem para a construção discursiva de um ambiente disfórico.

Há, igualmente, formulações antitéticas fortes que sugerem o absurdo da situação, através de metáforas cristalizadas que se foram tornando fórmulas, no sentido de Krieg-Planque (2009): “uma nova cortina de ferro de 175 quilómetros se ergue no coração da Europa” (Cunha, 29/08/2015). Também o uso de metáforas avaliativas é espaço de manifestação de subjetividade – “a Hungria está a transformar-se num gueto” –, bem como acontece com o emprego inesperado de certos lexemas. Ambas as metáforas, “cortina de ferro” e “gueto” contribuem para caracterizar a situação como catastrófica, por remeterem para a Segunda Guerra Mundial e as suas consequências. De uma fronteira, por outro lado, não é habitual dizer-se que é mais ou menos fronteira, porque o nome “fronteira” não é graduável. Ao usá-lo de forma gramaticalmente anómala, o jornalista reforça a conotação negativa aliada ao muro húngaro: “símbolo arqueológico de uma antiga linha que nunca deixou de ser fronteira e que agora vai ser ainda mais fronteira” (Cunha, 29/08/2015). Da segunda vez que é usado, o nome adquiriu, metaforicamente, o sentido de barreira intransponível, muro que impede a passagem.

A metáfora, contribuindo para a referenciação, ajuda a construir essa visão antitética e polarizada da realidade: os refugiados são referidos como “o rebanho de refugiados”, enquanto a construção do referente “traficantes” se serve da metáfora “cães raivosos que lhes mordem os bolsos (e as vidas)”. Assim se opõe a mansidão indefesa das ovelhas prontas para serem sacrificadas, de identificáveis conotações religiosas, à raiva furiosa dos cães.

 Por outro lado, as descrições antitéticas de cenários relativamente aos factos narrados contribuem para a construção de uma representação de um mundo dilacerado, dividido em dois: os que sofrem a guerra e toda a sua violência e os outros, que vivem em paz. Por isso os apontamentos descritivos da primeira crónica de Alexandra Lucas Coelho funcionam em contraponto com o que as sequências narrativas nos contam. Num pano de fundo idílico, brevemente sugerido em sequências descritivas, os protagonistas falam da pior violência: “fim de tarde tão tranquilo”, “por trás dele, há sol, rosas, carrinhos de guloseimas”, “inclui os pássaros da tarde a cantarem por cima”. De novo temos o diminutivo, os nomes, o verbo “cantar” e o adjetivo que apontam para realia agradáveis (sol, rosas, guloseimas, pássaros, tranquilidade), compondo o tal cenário pacífico e, portanto, contrastante com a violência das narrativas produzidas. Esse mundo dividido é construído com eficácia numa sequência descritiva de André Cunha, resumida na metáfora “horizonte rasgado”, ou nessa apreciação exclamativa: “que bonito!”, diz e repete sempre que atravessamos uma multidão de girassóis em flor. “É a última vez, João, que vês esta paisagem assim, virgem, sem arame farpado”. “Há de lhe rasgar o coração, talvez também lhe rasgue um poema”. As metáforas dizem a divisão e o horror que parecem ser contrariados pelo cenário de paz, acentuado por outras metáforas de valor conotativo avaliativo contrário (“um ilhéu de paz”, “salpicada pelas ovelhinhas”), ou por essas outras “ilha”, “pérola”, “corais”, que contribuem para sequências descritivas de polaridade positiva, de que é exemplo essa outra, superlativante: “jardins mais floridos, cheios de rosas de todas as cores”.

O lugar mais pacato por onde passámos em toda a viagem, um ilhéu de paz. Das escotilhas destas casas, a infinita planura verde-loira, que é branca no inverno, vai continuar a estender-se para norte, salpicada pelas ovelhinhas de Rigó e József, mas para sul o horizonte estará rasgado. (…) Tiszasziget é uma das ilhas principais, talvez aquela que disputaria a Ku¨bekh.za o título de pérola da Panónia. Na terra de todos, entre a casa e a rua, os jardins mais floridos, cheios de rosas de todas as cores, são como corais no fundo do mar. (Cunha, 30/08/2015)

A abundância de atos expressivos avaliativos constitui uma marca de um discurso fortemente emotivo, que procura comover, ou seja, etimologicamente, mover, deslocar junto com.

 

As vozes dos protagonistas e a persuasão

Enquanto Alexandra Lucas Coelho escreve na primeira pessoa do singular, assumindo assim, frontalmente, as suas posições de empatia em relação aos refugiados, os textos de André Cunha oscilam entre o singular e a primeira pessoa do plural, diluindo-se o enunciador num conjunto mais vasto de testemunhas não identificadas11. Portanto, a primeira pessoa do singular pode remeter para o eu comprometido individualmente: “não há eles e nós porque só há nós. Nós estamos no meio de nós”, diz Alexandra Lucas Coelho, numa citação que André Cunha inclui numa das crónicas. Quanto à primeira pessoa do plural, estamos perante o “dinamismo criativo” do “nós” de que fala Dahlet (2016, p. 218), referindo Benveniste (1966), pois o “nós” é “uma realidade de discurso”, com configurações que englobam o “eu”, mas são variáveis. O “nós” coletivo, por exemplo, pode abarcar também o leitor, agora testemunha do drama dos refugiados. Este “nós”, como refere André Cunha no excerto citado abaixo, é toda a gente. A primeira pessoa do plural englobante inclui todos os seres humanos envolvidos na história trágica destas migrações: o nome da rádio húngara “mi significa nós, em húngaro e em servo-croata”. Na sequência a seguir transcrita, esta pessoa gramatical configura a noção de empatia de Rabatel acima apresentada. O “nós” inclusivo é igual a eu + vocês, leitores, “nós”, humanos:

nós somos aqueles refugiados que nem sequer sabiam onde estavam depois da polícia os ter deixado na estação de comboios de Szeged: “onde estamos nós?”. Nós somos Robert no Triplex Confinium onde esta viagem começou, mas também somos Orbán, somos o agricultor que vocifera contra o refugiado que lhe roubou alguns tomates e somos aquele próprio refugiado, somos as patroas das koscmas e os seus convivas naquelas tabernas da Terra Baixa húngara onde o mundo se move em câmara lenta, somos József e Rigó entre as ovelhas, somos Sharbat, Márk, Rita, Zoltán, Mohammed, Balázs, somos ainda aqueles funcionários ferroviários que queriam pôr a pequena Fatma e o seu também pequeno irmão Ahmed a dormirem ao relento e havemos de ser Rafiq, mais logo, quando chegarmos a Subotica, no norte da Sérvia, mas agora, ainda em Szeged, somos Péter. (Cunha, 07/09/2015)

A solidariedade presente neste “nós” inclusivo faz-se notar também entre os protagonistas: “‘cheguei a ir buscar amigos feridos e ver bandeiras do ‘Estado Islâmico’ pelo caminho’, diz Mohammed” (Coelho, 13/09/2015). Se algumas vezes, como veremos, há vozes solidárias com o sofrimento alheio, outras há, nos pontos de passagem dos caminhantes, que lhes são hostis, estranhando o diferente, fechadas já no seu gueto:

Gábor Vona defende, tal como Viktor Orbán – (…) – que um “migrante ilegal” é um “criminoso” e que, por isso, tem de ir para a prisão, em vez de para um campo de acolhimento. (…) “Eles são estranhos porque têm a pele mais escura” diz-nos, atarefada, a patroa de uma das koscmas locais, senhora na casa dos seus 50 anos. (Cunha, 07/09/2015)

Existem, como se disse, vozes dissonantes contrariando a hostilidade dos governos e de muitos cidadãos, vozes solidárias, que discordam do poder, como as de alguns protagonistas húngaros que se insurgem contra o esquecimento histórico:

“a história repete-se dentro de tão pouco tempo que a geração que viveu os seus piores episódios ainda está viva, mas alguns deles parece que já não se lembram”, resigna-se Móni, lamentando essa amnésia parcial de muitos conterrâneos do seu eterno estatuto de migrantes e refugiados, senão de primeira, de segunda ou terceira geração, para andar apenas um século para trás, até ao Tratado de Trianon, no fim da Primeira Guerra. (Cunha, 29/08/2015)

Estas vozes dissonantes, de húngaros solidários, contra a corrente, pertencem a enunciadores claramente identificados, individualizados pelo nome próprio e apelido, uma forma de se tornarem, também, únicos e mais próximos de nós e de não serem apenas gente anónima, parte indistinta de coletivos sem rosto (por oposição aos plurais os húngaros, os refugiados, os rom, os judeus, os migrantes, os outros). Róbert Molnár faz questão de se declarar cristão praticante para evocar que “é preciso tomar conta dos forasteiros”, a mensagem de Estevão I, rei húngaro, depois Santo Estêvão da Hungria para os crentes.

“Está na Bíblia: não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti”, recorda, para logo profetizar que “a maldade vai-nos ser devolvida. Se não queremos ser maltratados, não podemos maltratar os outros”. (…) Ali ao lado, uma criança, erguida pelos braços do pai, vai apanhando cerejas. Uma imagem quase espelhada ser-nos-á descrita, noutra kocsma, noutra povoação, pela patroa de serviço. Ela testemunhara “a alegria de um grupo de refugiados, colhendo fruta de uma árvore”. (…) Um refugiado tinha roubado alguns tomates a um agricultor que se queixava do sucedido, na reportagem televisiva, como se isso fosse o fim do mundo. “Coitados”, alguém diz em fundo, com tom de empatia, “tinham fome, na mesma situação, qualquer um de nós faria o mesmo”. (Cunha, 29/08/2015)

Vemos os húngaros fechados no seu próprio gueto e, para isso, concorrem o semantismo da metáfora “praga”, o nome “guetização” e o verbo “circunfechar-se”, que é um neologismo, como neologismo é o verbo “ciganar”, querendo significar ser racista em relação aos ciganos: “‘conhecendo a História’, diz ele, ‘quando um país decidiu construir uma vedação ou um muro, como em Auschwitz-Birkenau, em Berlim ou no resto da fronteira do bloco comunista, isso tornou-se uma praga para quem o construiu’” (Cunha, 29/08/2015). A memória interdiscursiva enceta um diálogo em que, no discurso deste húngaro, ressoam outros discursos anteriores, que ressemantizam a palavra “muro”. Deixa de ser, apenas, como diz o Dicionário Priberam, “obra (geralmente de alvenaria) que separa terrenos contíguos ou que forma cerca”12, para, por efeito dos muros que na História se foram construindo, ter agora o sentido de “separação, defesa, protecção”, a segunda aceção registada no Dicionário da Academia. Proteção de uns perante a ameaça que, na sua crença, representam os outros, separação violenta, exclusão do outro diferente de nós. O outro é símbolo de ameaça (“um refugiado tinha roubado alguns tomates a um agricultor”), aquele cujo comportamento é digno de punição policial para uns, mas que merece a compreensão de uma parte dos ameaçados, cujo discurso direto manifesta, afinal, compaixão e solidariedade: “tinham fome, na mesma situação, qualquer um de nós faria o mesmo”.

Para Molnár,

a Hungria já é um país isolado a nível intelectual e psicológico. Isto vai ter como consequência a guetização do país. A Hungria circunfecha-se, o que significa que não há saída nem entrada, nem para fora, nem para dentro. Estamos no meio da Europa, se não conseguirmos navegar em águas pacíficas, isso vai determinar que o espaço de acção dos húngaros se vai reduzindo” até que “as pessoas vão perder a esperança e vão fugir do país. (Cunha, 29/08/2015)

Os nomes não são inocentes e por isso um dos protagonistas das crónicas de Alexandra Lucas Coelho assume que o seu nome, “Ivan”, servia de máscara protetora e não o identificava a ele, na sua inteireza de ser humano, mas só a ele enquanto refugiado e perseguido: “Ivan foi o nome que ele escolheu caso eu contasse a história no jornal”. Esse nome próprio protetor esconde a verdadeira identidade de Ivan que, afinal, a jornalista desvenda: “os dois rapazes das guitarras eram curdos, portanto estavam em casa, tinham papéis e ninguém em cima deles, eu podia usar os nomes verdadeiros: Niaz, 21 anos, Hunar, 28, estudantes de Música na Universidade de Sulaymaniyah” (Coelho, 20/09/2015). Ivan parece ser, aliás, um nome que protege. A propósito de um outro interveniente, a autora escreve: “o filho, chamemos-lhe Ivan, viera há dois anos para o Curdistão iraquiano”. Os nomes dos protagonistas renomeados enquanto refugiados sucedem-se nos textos: “o pai, chamemos-lhe Aziz”, “a mãe, chamemos-lhe Jian”. Também para os protagonistas das crónicas de André Cunha os nomes são, por vezes, uma máscara: “e finalmente Sharbat dá-nos o maior sorriso do mundo (mas mesmo assim não nos dá o seu nome)”, “a nossa rapariga afegã de hoje (cujo verdadeiro nome provavelmente nunca saberemos)”. A atribuição de um outro nome a vários dos enunciadores dos discursos multiplica o número de enunciadores: e1 com o seu verdadeiro nome não coincide com e1’, com o nome falso que o protege. O não direito ao nome testemunha o não direito à existência destes refugiados enquanto pessoas.

O diálogo entre os jornalistas e os protagonistas é resumido nos textos, e aqueles selecionam as palavras mais convincentes destes para os objetivos discursivos de denúncia. Mas esse diálogo prolonga-se para lá da interação física face a face, pode ser posterior aos encontros. André Cunha dirige-se diretamente a um dos seus entrevistados no texto, por exemplo, num longo parênteses, “caro Péter, permite-me só um aparte, dois meses depois do nosso encontro: até à data em que publicamos este texto não há um único caso conhecido de doenças graves” (Cunha, 07/09/2015). Ou numa pergunta da mesma “crónica”, que é uma acusação à indiferença húngara: “e como é que se diz rafiq em húngaro, Péter Tóth?”; ou quando interpela o poeta Vasko Popa: “não, Vasko Popa, a história não deixa Rita ser uma filha sem memória”.

A convocação de várias vozes nos textos contribui para a criação de um ethos de objetividade necessário para contrariar a subjetividade evidente do discurso. Essas são as vozes em parte responsáveis pelas sequências narrativas que Alexandra Lucas Coelho e André Cunha incluem nos seus textos. As teses que os jornalistas, implícita ou mais explicitamente, defendem são, as mais das vezes, transmitidas e apoiadas através do discurso direto dos refugiados e de quem os ajuda e, por contraponto, do discurso também de quem os combate. Há, assim, uma empatia linguística, porque “um locutor empresta a sua voz a um outro (…) para encarar um acontecimento, uma situação, no seu lugar” (Rabatel, 2013, p. 68). Ouvir a voz do outro é essencial para criar empatia: “é sempre urgente tentar ouvir sem fronteiras todos os ‘outros’, para compreender melhor este momento” (Cunha, 07/09/2015).

Os diálogos entre o repórter e os protagonistas da história não são os únicos que fazem parte das crónicas. Como vimos, André Cunha, por exemplo, interpela três vezes diretamente, nos textos, aqueles com quem presencialmente tinha falado e cujas palavras tinha já transcrito.

Mas há também diálogos intertextuais: com a Bíblia, com George Steiner e Walter Benjamin, com Saramago, com os escritos de Kapuscinski. André Cunha cita Alexandra Lucas Coelho, José Gil em Portugal, hoje – o medo de existir, Claudio Magris e o seu Danúbio, etc. O título da crónica “Da minha janela, vê-se o muro” cita, em contraponto, o discurso de Vergílio Ferreira “Da minha língua vê-se o mar”, e o autor refere, num dos textos, convocando a nossa memória coletiva, o conhecimento partilhado do mundo, e estabelecendo relações entre os factos passados e o presente da escrita, “aquela capa da edição da National Geographic que se tornou jóia de colecção e que o mundo viu há 30 anos, em Junho de 1985” (Cunha, 30/08/2015). Como se os jornalistas pretendessem indicar o caminho do diálogo, mostrando, nos seus textos, aquele que falta no mundo. Mas também, através das referências culturais intertextualmente convocadas, como se quisessem aumentar o número dos que, no discurso, partilhariam pontos de vista semelhantes aos seus.

 

Conclusões

Nestes artigos da imprensa escrita portuguesa, há, aliás, uma dimensão performativa, de índole diretiva. É como se as sequências narrativas, as descritivas e as palavras relatadas contribuissem para, através do ponto de vista assumido pelos jornalistas, de cumplicidade com os refugiados e migrantes, trazer o leitor para a causa deles, isto é, estes textos têm por objetivo convencer e fazer fazer, melhor dito, fazer agir: “é sempre urgente tentar ouvir sem fronteiras todos os ‘outros’, para compreender melhor este momento, ou para nos sentirmos mais perdidos nesta ‘história do presente’ em que há mais um muro no meio de nós” (Cunha, 07/09/2015).

Como é frequente quando se trata de catástrofes naturais, estamos, no caso em apreço, perante aquilo a que se chama “informação de urgência” (Manuel, 2011) porque, se esta não é uma catástrofe natural é, seguramente, uma catástrofe humana. Não são as vítimas que filmam, fotografam ou escrevem para nos dar conta dos acontecimentos. Mas são delas os relatos e as palavras. E é delas o ponto de vista adotado pelos jornalistas.

 

Referências 

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Nota biográfica

Professora Associada de Linguística na Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos. Membro do Centro de Linguística da Universidade do Porto. Áreas de investigação: Pragmática e análise do discurso (relato de discurso, marcadores discursivos); confronto entre línguas românicas e aplicação da linguística ao ensino do Português.

ORCID: http://orcid.org/0000-0001-7908-5649

Email: iduarte@letras.up.pt 

Morada: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Via Panorâmica s/n, 4150-564, Porto, Portugal

 

Submetido: 14/04/2020

Aceite: 01/07/2020

 

NOTAS

1 Já com dados de 2019, a Organização Internacional das Migrações (OIM) afirmava que “nos últimos seis anos, o número de mortos nesta rota ultrapassa os 15.000” (Rota do Mediterrâneo é a mais perigosa e já matou mais de mil migrantes este ano, 2019). Mais recentemente, os números foram corrigidos em alta: “a Organização Internacional para Migrações, OIM, informou que 20.014 migrantes perderam a vida atravessando o Mediterrâneo, nos últimos seis anos. A agência disse que “a tragédia no Mediterrâneo segue, e que é urgente definir vias legais, seguras e melhores para migrantes e refugiados. Para a agência, só assim será possível resolver os canais irregulares e evitar mortes na rota” (Mais de 20 mil migrantes morreram em travessias no Mediterrâneo desde 2014, 2020).

2 Estes mesmos textos foram objeto de sugestões para trabalho com alunos nas escolas portuguesas (Duarte, 2015).

3 Retirados de http://www.publico.pt/mundo/noticia/refugiados-1-o-filho-que-nasceu-azul-e-a-prima-que-nao-pode-ver-luz-1707514 e http://www.publico.pt/mundo/noticia/refugiados-2-adeus-eduas-guitarras-1708114

4 Retirados de http://visao.sapo.pt/actualidade/mundo/a-hungriaesta-a-transformar-se-num gueto=f829038;

http://visao.sapo.pt/actualidade/mundo/da-minha-janela-ve-seo-muro=f829138;

http://visao.sapo.pt/actualidade/mundo/se-bombardeassem-a-minha-cidade-eu-tambem-fugia=f829298;

http://visao.sapo.pt/actualidade/mundo/nos-estamos-a-fugir-da-guerra-nao-queremos-mais-violencia=f829421 e https://visao.sapo.pt/atualidade/mundo/2015-09-07-nao-tenho-pai-nao-tenho-mae-pum-pum-talibanf829779/

5 “Nós e o novo muro” é um projeto desenvolvido originalmente para o Observatorio Balcani e Caucaso, publicado em exclusivo, em Portugal, pela revista Visão.

6 Pathos é aqui usado no sentido retórico de tipo de “argumentos, ou provas, destinados a produzir a persuasão”, conforme registado em Charaudeau e Maingeneau (2004, p. 371).

7 Além de jornalista e de ter publicado livros de crónicas, Alexandra Lucas Coelho é também romancista, tendo o seu romance E a noite roda, de 2012, ganho o Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB (Associação Portuguesa de Escritores/Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas).

8 Na definição do dicionário de Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 220), ethos é “a imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário”.

9 Por um mecanismo simétrico André Cunha testemunha que a televisão húngara do Presidente Orban censura as imagens de crianças refugiadas. Nesse caso, as imagens de crianças são evitadas para que o telespectador não se comova com o seu sofrimento.

10 A designação, de Prince (1978), “discuso atributivo”, é considerada limitadora por parte de Salvan (2005). Segundo a autora, parece que estes segmentos têm apens por função “atribuir a palavra, indicar a identidade do locutor e o modo como as palavras são pronunciadas” (s. p.). Ora os exemplos selecionados por nós testemunham, com efeito, a riqueza de funções destes enunciados.

11 Curiosamente, num dos seus textos, o autor cita Alexandra Lucas Coelho, o que revela uma certa dose de cumplicidade profissional entre os dois jornalistas.

12 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Retirado de https://www.priberam.pt/dlpo/muro

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