1. Introdução
Depois de algumas hesitações, a Organização Mundial de Saúde decretou a covid-19 como uma pandemia a 11 de março de 2020. Nessa altura, o novo coronavírus tinha infetado mais de 118.000 pessoas em 114 países e feito já 4.291 mortos. A primeira morte por SARS-CoV-2 aconteceu na China a 10 de janeiro de 2020. A 24 de janeiro de 2020, o coronavírus chegou à Europa. Portugal registou as duas primeiras pessoas infetadas a 2 de março de 2020. A 12 de março de 2020, o governo português anunciou que, dali a 4 dias, iria suspender as atividades presenciais das creches ao ensino superior, limitar o acesso a centros comercias e a serviços públicos, reduzir a lotação de restaurantes, fechar bares e proibir visitas a lares. Nesse dia, o primeiro-ministro, numa conferência de imprensa, disse tratar-se de uma “luta pela nossa própria sobrevivência e pela proteção da vida dos portugueses” (Mendes, 2020, para. 4). A 14 de março, o semanário Sol escolhia para manchete uma frase que começava a circular no espaço público: “Fique em casa”. O título converter-se-ia rapidamente numa espécie de hashtag que os meios de comunicação social replicariam em permanência: no canto superior dos ecrãs de televisão, nos respetivos sites, nas páginas dos jornais, nos alinhamentos das rádios. A 18 de março, o presidente da república decretava o estado de emergência por 15 dias, renovado a 2 e 17 de abril. Até 2 de maio, o país viveu em confinamento, sempre reportado pelos media noticiosos, que assumiram claramente uma orientação dos cidadãos para comportamentos preventivos da doença, procurando constituir-se como uma frente de combate à pandemia. O estado de emergência haveria de ser retomado a 9 de novembro de 2020. A velocidade do vírus intensificou-se, a noticiabilidade diminuiu, mas, ao longo do ano, o jornalismo foi sempre dando grande destaque à pandemia, mudando temas, fontes, enfoques, ritmos de trabalho, canais de acesso às fontes de informação. Há, porém, uma variável que se manteve constante: a importância das fontes oficiais, particularmente das políticas e, dentro destas, do governo.
Neste trabalho, procuramos analisar a presença das fontes oficiais na imprensa portuguesa durante os estados de emergência decretados em 2020. Para isso, analisámos dois jornais, um de referência (Público) e outro de linha popular (Jornal de Notícias) de 18 de março a 2 de maio de 2020 e de 9 de novembro a 23 de dezembro de 2020. Queremos saber quem foram as fontes que mais falaram e os temas que mais solicitaram a presença deste tipo de fontes. Para isso, constituímos um corpus de análise de 2.307 textos noticiosos: 1.850 publicados na primeira fase de emergência nacional, citando 4.048 fontes; e 457 publicados na segunda fase, incorporando 857 fontes.
2. Enquadramento Teórico
2.1. A Importância da Comunicação em Saúde em Contextos Pandémicos
No contexto de uma emergência de saúde pública, o aparecimento de novos riscos para as populações gera níveis elevados de incerteza (Reynolds & Seeger, 2005, p. 44), sendo certo que, nestas circunstâncias, a comunicação assume enorme centralidade. Isto mesmo é atestado por diversos autores, que reconhecem a importância da comunicação em saúde como uma arma indispensável no combate à pandemia por covid-19 (Fielding, 2020; Finset et al., 2020). É verdade que a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 veio testar de forma muito séria a liderança e as competências de comunicação dos líderes políticos em todo o mundo (McGuire et al., 2020, p. 361). Nem sempre as autoridades políticas e sanitárias souberam comunicar de forma eficaz as decisões tomadas. A disparidade de respostas a nível político, em termos globais, é um dos fatores que reconhecidamente pode gerar incertezas na população. De facto, “a incerteza perante ameaças à saúde assusta as pessoas e as novas ameaças, como a Covid-19, aumentam a perceção de incerteza de diversas formas” (Dunwoody, 2020, p. 472). Neste sentido, nem sempre foi claro por que é que determinados países adotaram confinamentos muito severos enquanto outros mostraram relutância em impor medidas restritivas - e essa ausência de clareza residiu, não raras vezes, em problemas comunicacionais. Don Nutbeam (2020) reconhece mesmo que “estes são tempos desafiantes para quem está no governo” (para. 1). “Muitos governos hesitaram no início da pandemia e foram lentos a fornecer clareza e certeza. Quando a clareza e a consistência da mensagem faltaram, as pessoas viraram-se para fontes de informação alternativas nos media tradicionais e digitais” (Nutbeam, 2020, para. 2).
A Nova Zelândia é considerada um caso de sucesso mundial na gestão da covid-19, e as competências de comunicação são referidas como um aspeto fundamental na liderança política neozelandesa (McGuire et al., 2020). “A condução de uma resposta eficaz à pandemia requereu, por parte dos líderes, uma demonstração efetiva de competências de planeamento e coordenação, bem como a capacidade de comunicar de forma clara, consistente e empática as mensagens” que se impunham (McGuire et al., 2020, p. 361). Para além das capacidades comunicacionais, a resposta à pandemia dependeu também, em larga medida, da “confiança pública na informação do governo e da adesão sem precedentes aos conselhos” que ditavam a necessidade de distanciamento físico e higienização frequente das mãos (Nutbeam, 2020, para. 1). A promoção eficaz destes comportamentos preventivos da covid-19 está intimamente ligada à comunicação com o público. É preciso comunicar não só o que fazer, mas também porquê - e as mensagens devem assentar em princípios base, como a clareza, honestidade, consistência e repetição (Finset et al., 2020; Noar & Austin, 2020; Vraga & Jacobsen, 2020), sendo veiculadas por fontes credíveis e não políticas (Noar & Austin, 2020). A comunicação para o público deve ser constantemente atualizada. Caso não exista informação nova, a oportunidade deve ser aproveitada para relembrar o que já se sabe (Ratzan, Gostin, et al., 2020), nomeadamente a importância de manter uma distância de segurança, a etiqueta respiratória e o uso de máscara quando apropriado. As autoridades de saúde devem reconhecer a temporalidade das mensagens que transmitem, uma vez que, dada a rápida evolução da pandemia, o que é verdade hoje pode não o ser amanhã (Finset et al., 2020). Esta incerteza relativamente ao vírus deve ser reconhecida pelas autoridades de saúde, que devem transmitir informação baseada na mais atualizada evidência científica. Isto porque praticar uma comunicação baseada na esperança, em vez de baseada em factos, resulta em “confusão”, mas também em “perda de confiança” nas instituições (Fielding, 2020). Para além da salvaguarda destes aspetos, também o número de porta-vozes deve ser limitado e consistente (Finset et al., 2020). “Ter uma voz clara dentro do governo ajuda a evitar uma dinâmica de ‘talking heads’ que prejudica o desenvolvimento de uma estratégia coesa” (Ratzan, Sommarivac, & Rauh, 2020, para. 10). Quando os países não escolheram um porta-voz, os media e o próprio público encarregaram-se de o fazer (Ratzan, Sommarivac, & Rauh, 2020). De facto, “a forma como as fontes oficiais, líderes e especialistas falam com o público durante esta crise importa, porque pode ser a diferença entre a vida e a morte”, uma vez que as diferenças comunicacionais entre políticos e cientistas resultam muitas vezes em mensagens contraditórias, confusas e em comportamentos perigosos (Fielding, 2020, para. 1).
Posto isto, os líderes políticos e os especialistas em saúde têm uma responsabilidade acrescida em fornecer informação correta e implementar medidas promotoras da mudança de comportamentos (Finset et al., 2020), sendo que a resposta a esta pandemia requer cooperação e coordenação entre vários agentes, entre eles os governos, os media, as plataformas tecnológicas e o setor privado (Ratzan, Gostin, et al., 2020).
A manutenção do consenso frágil entre os governos, os seus conselheiros científicos, e os seus cidadãos é crítica para o controlo bem-sucedido da epidemia. Este consenso é suportado pela confiança mútua na comunicação eficaz - entre cientistas e decisores políticos, e entre governos e as suas populações. (Nutbeam, 2020, para. 6)
2.2. Quando as Fontes Oficiais Fazem Comunicação Política e Não Comunicação de Saúde
A pandemia por covid-19 veio abalar a fiabilidade do modus operandi da gestão da comunicação das fontes oficiais. A comunicação de saúde tem características muitos particulares que precisam de ser atendidas para que seja efetiva (Finset et al., 2020; Noar & Austin, 2020; Vraga & Jacobsen, 2020). Esta realidade agudiza-se quando estamos perante um cenário de risco e de incerteza, como é este que vivenciamos desde o início de 2020 (World Health Organization, 2020). Ou seja, no quadro atual, governos e autoridades de saúde deveriam ter-se feito valer do mais contemporâneo estado da arte no que se refere a comunicação de saúde e até a comunicação de risco (Araújo, 2020). No entanto, desta perspetiva, as fontes oficiais podem ter falhado. Não por terem deixado de fazer chegar ao público as informações necessárias à modulação do seu comportamento, no intuito da prevenção da doença, mas por não terem abandonado dinâmicas comunicativas típicas da comunicação política, que comprometeram alguns dos esforços de comunicação encetados, através da criação de entropias desnecessárias (Martins, 2020).
As fontes oficiais estão habituadas a dominar o espaço público, através da influência exercida sobre as redações noticiosas (Araújo, 2017; Fernández-Sande et al., 2020; Gans, 1979/2004; F. Lopes et al. , 2011; Magalhães, 2012; Ribeiro, 2006; R. Santos, 1997). Por força da sua proatividade comunicativa e por força das circunstâncias que enquadram - e, muitas vezes, constrangem - o trabalho jornalístico (Fernández-Sande et al., 2020; Reich, 2011; Van Hout et al. , 2011). O valor dessa hegemonia é incalculável. Quem fala no espaço noticioso define o que chega à sociedade, podendo ainda influenciar como a informação é interpretada pela opinião pública (Fernández-Sande et al., 2020). É fácil, portanto, deduzir o valor estratégico decorrente da ocupação do espaço mediático por parte dos agentes políticos, que têm vindo a rentabilizar esta realidade há décadas, criando um “círculo fechado” entre si próprios e os jornalistas, que silencia amplos setores da sociedade (Pérez Curiel et al., 2015).
No entanto, a pandemia desafiou o status quo. A realidade que se abateu sobre o mundo em 2020 não se coaduna com a habitual retórica política, tantas vezes vazia de conteúdo. Os jornalistas exerceram uma enorme pressão, numa busca incessante por respostas, e as fontes oficiais nem sempre souberam responder da melhor forma às sucessivas solicitações. Isto porque a tentação de manterem uma lógica de comunicação política foi mais forte. As fontes oficiais não souberam dividir o palco com os especialistas, nomeando um como porta-voz. As conferências de imprensa diárias bicéfalas, com a presença da diretora-geral da saúde e da ministra da saúde, constituíram momentos de natureza política. E mesmo as frequentes reuniões com os especialistas (conhecidas mediaticamente como “reuniões do Infarmed”) votaram os cientistas ao papel de apresentador de informação técnica, sem uma participação mais ativa - ou, pelo menos, mais próxima - na tomada de decisão política, apenas se abrindo uma exceção no segundo plano de confinamento, iniciado por fases a partir de 15 de março de 2021 (Anjos, 2021; Monteiro, 2021). No final das reuniões, eram as forças políticas as auscultadas pelos media, que se alinhavam em frente aos microfones, seguindo as suas tradicionais práticas transportadas do parlamento, e replicavam discursos políticos pré-empacotados.
Neste enquadramento, e à luz dos objetivos políticos que tradicionalmente ditam as estratégias de comunicação das fontes oficiais ligadas ao governo, percebe-se que a pandemia constituía, no início de 2020, um enorme risco, mas também uma importante oportunidade de reforçar a reputação de um governo minoritário, cuja manutenção no poder depende da habilidade política do primeiro-ministro, do posicionamento dos partidos da ala esquerda do parlamento e das relações amigáveis com o presidente da república. Cumulativamente, continuaram a ser percetíveis as “micro agendas” de diferentes fontes oficiais, que se foram tentando posicionar da forma mais vantajosa possível, em termos mediáticos, em cada momento da pandemia. O problema é que, ao tentar capitalizar politicamente os ganhos na guerra contra a covid-19, as fontes oficiais contaminaram o debate público em torno da pandemia. Se conseguiram, em determinados momentos, colher dividendos políticos (SIC Notícias, 2020), houve outros em que se tornaram alvos fáceis (P. Santos, 2020). E, no processo, a comunicação perdeu qualidade.
3. Estudo Empírico
3.1. Caminhos Metodológicos
“Num tempo de pandemia, que convoca saberes especializados, que lugar ocuparam as fontes oficiais na imprensa portuguesa?” Esta foi a preocupação inicial que motivou a presente investigação, que se integra num projeto mais amplo que procura saber de que forma os media noticiosos generalistas em Portugal mediatizaram a pandemia de covid-19. Para dar resposta a este objetivo, fizemos uma análise quantitativa das notícias sobre covid-19 publicadas em dois jornais diários nacionais, um de referência (Público) e outro de linha popular (Jornal de Notícias), escolhendo dois períodos distintos: de 18 de março a 2 de maio de 2020 e de 9 de novembro a 23 de dezembro de 2020. Estas datas correspondem a períodos em que foi decretado o estado de emergência em Portugal durante o ano de 2020. Para a recolha dos dados foram utilizadas as versões impressas digitais dos jornais. Na seleção dos casos, consideraram-se todos os textos noticiosos publicados nas secções dos jornais intituladas “Primeiro Plano” (Jornal de Notícias) e “Destaque Covid-19” (Público). Os dados recolhidos foram tratados, codificados e categorizados com recurso ao programa de análise estatística SPSS Statistics, de acordo com uma grelha de análise previamente elaborada e testada.
Centrado o nosso trabalho nas fontes de informação, procurámos analisar qual o tipo de fonte a que os jornalistas mais recorrem; o seu estatuto e a instituição de onde são provenientes; o lugar a partir do qual falam; e a sua especialidade médica, no caso de existir. O nosso corpus de análise é composto por 2.307 textos noticiosos: 1.850 textos foram publicados durante a primeira fase de emergência nacional, citando 4.048 fontes; e 457 foram publicados na segunda fase, apresentando a citação de 857 fontes.
Este trabalho integra-se num projeto mais vasto que procura saber de que forma os media noticiosos portugueses mediatizaram a pandemia SARS-CoV-2, analisando de forma contínua os jornais diários durante os estados de emergência e procurando saber, através de inquéritos, quais as perceções dos jornalistas portugueses relativamente ao trabalho desenvolvido (F. Lopes et al., 2020).
3.2. Resultados e Discussão
Ainda que as fontes profissionais, particularmente os especialistas, tenham reunido grande visibilidade na mediatização jornalística do vírus SARS-CoV-2 (representando mais de 30% durante os dois períodos de análise), as fontes oficiais também foram privilegiadas (26% nos dois períodos), surgindo mais ligadas a processos de decisão que se revelaram estruturantes na gestão da evolução do SARS-CoV-2. Se às fontes oficiais de traço humano juntarmos os documentos oficiais (decretos-lei, relatórios da autoridade sanitária, etc.), a frequência cresce para 33,1% na primeira onda e para 31,3% na segunda onda, ultrapassando assim a força que os especialistas revelaram ter nos textos noticiosos ao longo desse período (33,1% durante a primeira onda e 30,5% na segunda). Falamos essencialmente de interlocutores ligados a centros de decisão política e às elites do poder, salientando-se neste grupo o governo, principalmente o primeiro-ministro, que chamou a si a comunicação das medidas mais importantes na gestão desta pandemia. Como se constata na Tabela 1, há uma certa diversidade de fontes de informação, mas, embora esta conjuntura convocasse um saber mais especializado, os interlocutores oficiais nunca deixaram de ser importantes no campo jornalístico, nomeadamente na imprensa portuguesa.
Percorrendo os temas que mais citam as fontes oficiais, repara-se que é na política nacional onde elas mais se salientam (500 citações), particularmente nos processos de decisão (269 citações). A seguir, a sociedade, até pela sua dispersão temática, também reúne uma frequência elevada (305 citações), mas é nos assuntos ligados aos lares de terceira idade (73 citações), na educação (66 citações) e na justiça (25 citações) que se recorre mais a este tipo de fontes, nomeadamente aos ministros que tutelam estas áreas: a da solidariedade social, o da educação e a da justiça. Em terceiro lugar, evidenciam-se os retratos (212 citações), uma categoria algo abrangente, onde cabem interlocutores diversificados, sendo a contagem de infetados e mortos (82 citações) e as análises epidemiológicas (63 citações) os temas onde as vozes oficiais ganham mais proeminência. Em quarto lugar, surge a política internacional (148 citações), e aí quase metade das citações oficiais estão concentradas nas reuniões/decisões (65 citações). A economia também se declina com um número significativo de vozes oficiais (130), nomeadamente as questões ligadas à crise económica (53 citações) onde o ministro da economia chamou a si parte do protagonismo, muitas vezes até no lugar do titular das finanças. Os campos da investigação e desenvolvimento e das organizações de serviços não tiveram abordagens de interlocutores deste campo, somando a este nível 30 e 20 citações, respetivamente.
Analisando as instituições oficiais (Tabela 2) mais relevantes no discurso jornalístico durante o período pandémico, sobressaem, desde logo, o governo (poder central, que representa 14,4% na primeira onda pandémica e 13,4% na segunda) e as autarquias (poder local, que representam 4,9% na primeira onda e 3,2% na segunda). A presidência da república, embora com um papel importante na gestão da pandemia, não se salientou em 2020 (com uma visibilidade que ronda os 1,5% nas duas vagas), período que coincide com os últimos meses do primeiro mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. Os deputados também não tiveram uma presença contínua na imprensa diária, representando cerca de 3% em ambos os períodos analisados. Não há propriamente ninguém que assuma o papel de porta-voz oficial daquilo que vai acontecendo, ao contrário do que é recomendado na literatura (Finset et al., 2020; Ratzan, Sommarivac, & Rauh, 2020). Nem tão pouco o país contou com um especialista que pudesse ser o porta-voz de uma equipa que aconselharia o governo a partir do campo da ciência, como aconteceu, por exemplo, nos Estados Unidos e no Reino Unido. De facto, e remetendo para os dois períodos de análise, umas vezes esse papel foi da diretora-geral da saúde (2,1%), outras vezes do secretário de estado adjunto e da saúde, outras vezes ainda da ministra da saúde (1,3%) e noutras do próprio primeiro-ministro (3,1%). Essa dispersão está refletida na imprensa diária.
Em 2020, Portugal vive em estado de emergência entre 18 de março e 2 de maio e entre 9 de novembro e 23 de dezembro. Nos termos constitucionais, essa decisão apresenta uma competência partilhada: o presidente da república declara o estado de emergência, depois de essa vontade ter sido expressa pelo governo. O decreto presidencial que permite a suspensão de direitos, liberdades e garantias tem de ser aprovado pela assembleia da república. Trata-se, como se percebe, de uma decisão que altera estruturalmente a vida de todos os cidadãos. No entanto, embora o presidente da república tenha escolhido fazer, ao longo de 2020, uma comunicação formal ao país no dia em que assinava esses decretos, o primeiro-ministro chamou sempre a si a explicação mais pormenorizada dessa decisão, também em espaços organizados para tal e pensados em função da cobertura mediática.
Na primeira declaração do estado de emergência, os media foram dando conta de que o governo tinha algumas reservas relativamente a uma vontade da presidência em avançar rapidamente para aí, exercendo um poder constitucional nunca antes tomado. A 17 de março de 2020, o jornal Público noticiava que “Costa e Marcelo discordam sobre a declaração do estado de emergência” (Almeida & Botelho, 2020), inclinando-se o executivo para a opção do estado de calamidade pública previsto na Lei de Bases da Proteção Civil, que dava ao primeiro-ministro e ao ministro da administração interna a responsabilidade total pelas medidas a adotar. Terminando um isolamento profilático que começara a 8 de março de 2020 por ter estado numa iniciativa presidencial na qual participou uma turma de uma escola onde um jovem aluno teve de ser internado por estar infetado, Marcelo Rebelo de Sousa presidiu a 18 de março, no Palácio de Belém, a um Conselho de Estado e, nesse mesmo dia, declarou o primeiro estado de emergência da democracia portuguesa. O governo acatou e o parlamento aprovou a decisão sem nenhum voto contra.
Na segunda vaga da pandemia, sentida a partir de novembro (e durante a pré-campanha e a campanha eleitoral para as presidenciais), Marcelo Rebelo de Sousa recordaria várias vezes que foi ele quem deu esse primeiro passo em direção ao estado de emergência. No entanto, esse avanço não se traduziu numa maior visibilidade sua. Até ao final desta primeira fase do estado de emergência, tudo foi articulado entre presidente da república e primeiro-ministro, numa sintonia política e legislativa que foi mais de bastidores do que pública e, consequentemente, mediática. A esse nível, o governo levou sempre muita vantagem. A partir de 3 de maio de 2020, o país passa a estado de calamidade, assumindo o executivo a liderança política da gestão da pandemia, numa interpretação extensiva da Lei de Bases da Proteção Civil. O verão foi de abrandamento das medidas de contenção e, chegados ao outono, Portugal começou a registar uma subida do número de infetados e de mortes que levaria, a partir de 8 de novembro, à segunda fase do estado de emergência que durou até 23 de dezembro. Novamente, existem algumas hesitações entre Belém e São Bento cujos contornos os media noticiosos nunca explicaram bem. A 2 de novembro de 2020, o Público escrevia que “Costa propõe a Marcelo estado de emergência mínimo, mas prolongado” (M. Lopes & Botelho, 2020, para. 1). O presidente da república reúne-se novamente com os partidos e parceiros sociais para debater a situação do país e à noite, numa entrevista à RTP1, assumiu a responsabilidade suprema e criticou pontos concretos da gestão da pandemia. Desta vez, no parlamento, a aprovação da decisão foi menos consensual, mas os dois maiores partidos, PS e PSD, asseguraram uma larga maioria para sucessivas renovações do estado de emergência, que depressa deixou de ser mínimo e voltou mesmo a ser acompanhado de um confinamento geral, a partir de 15 de janeiro de 2021 (em plena campanha eleitoral para a presidência da república).
No governo, o primeiro-ministro sempre chamou a si a comunicação em alturas delicadas da gestão da pandemia, muitas vezes fazendo até mea culpa do modo como transmitiu as decisões. A 12 de novembro de 2020, já na segunda fase do regime de emergência, António Costa, em conferência de imprensa, reconheceu que não foi eficaz ao transmitir as medidas de contenção adotadas para o fim de semana: “a culpa é toda minha, porque foi seguramente o mensageiro que transmitiu mal a mensagem. Temos de transmitir uma regra rígida e a regra é às 13 horas tudo fechado” (Gomes & Garcia, 2020, para. 7). A 13 de janeiro de 2021, ao anunciar o segundo confinamento severo ao país, disse: “aqui estou a dar a cara, sem rebuço, nem vergonha, a voltarmos onde estávamos em abril passado” (Governo da República Portuguesa, 2021, 08:47). Para além do primeiro-ministro, que representa 3,8% das fontes de informação citadas durante a segunda onda pandémica, outros ministros se salientaram, enquanto outros foram atirados para uma espiral de silêncio. No grupo dos primeiros, estiveram os ministros da administração interna, do trabalho e segurança social, da educação, da economia, da presidência e da saúde, reunindo esta última grande visibilidade (2,4% do total de fontes citadas). No entanto, nem sempre assim foi.
Nos primeiros tempos, não foram os titulares do ministério da saúde que assumiram a comunicação com o país. Foi a diretora-geral da saúde, Graça Freitas. E isso foi feito em conferências de imprensa diárias, inicialmente apenas para se falar de casos suspeitos que viriam depois a ser dados como infundados. Em estado de emergência, os governantes da saúde juntaram-se a esses encontros, conferindo a esses momentos uma carga política. Em janeiro de 2021, quando Portugal era tido como um dos países com piores números de infetados e mortes, esses formatos desapareceram, não sendo substituídos por nenhum outro. Numa iniciativa a propósito do dia mundial da luta contra o cancro, em Alcochete, a 4 de fevereiro de 2021, a diretora-geral da saúde disse que “não precisa de aparecer ( … ) precisa de trabalhar”, acrescentando que “do ponto de vista comunicacional, se tomaram outras opções”, sem, no entanto, as especificar (Lusa, 2021, para. 2). Para trás ficavam outros contrassensos. A 15 de janeiro de 2020, já com o vírus em circulação, Graça Freitas afirmou que isso “não constitui à data uma ameaça reconhecida para a saúde pública, ou seja, foi identificado um novo vírus, mas não aparenta competência de transmissão inter-humana” (Daniel, 2021, 02:42). Passados poucos dias, a 21 de janeiro, o porta-voz da Organização Mundial da Saúde, Tarik Jasarevic, afirmava que a transmissão entre humanos estava a ocorrer, devendo-se esperar mais casos noutras partes da China e possivelmente noutros países. A 22 de março de 2020, em conferência de imprensa, Graça Freitas defendia, a propósito do uso de máscaras, o seguinte: “não vale a pena a utilização de máscaras (...), servem para praticamente nada. Só dão uma falsa sensação de segurança. Não use máscaras. Tenha a contenção e cuidado de manter distância social. É esse o nosso apelo” (SNS | Portal do SNS, 2020, 07:56). A 30 de abril de 2020, num encontro com os jornalistas para explicar medidas de contenção adotadas dali a dias, disse que se teria que usar máscaras para ir ao comércio e para utilizar o serviço público.
4. Notas Finais
Ainda que a pandemia tivesse puxado para o centro do campo jornalístico os especialistas, as fontes oficiais, particularmente as políticas, nunca perderam protagonismo. É verdade que o cerco daqueles que importa ouvir se alargou e, mais do que uma função fática que sempre se valorizou, acrescentou-se a importância da informação, principalmente de uma espécie de “saber sábio” mais orientador de um quotidiano que mudou radicalmente com esta pandemia. Isso também obrigou, de certa forma, as fontes oficiais a ajustarem o seu discurso, tornando-o mais de substância e menos de retórica. Em várias conferências de imprensas, os governantes foram-se socorrendo de relatórios científicos, apresentações visuais, estatísticas para dotar as suas comunicações de um registo argumentativo de base científica que convencesse as pessoas a aderirem às medidas que aí eram comunicadas. Neste período, notou-se uma redução substancial da presença dos partidos no espaço público mediático. Ao longo de 2020, as contendas políticas partidárias diminuíram bastante e isso é bem visível nos números reduzidos de fontes ligadas a partidos. Mesmo o parlamento abrandou muito a noticiabilidade que habitualmente provoca. Em tempos de pandemia, os políticos que mais sobressaíram foram sempre os governantes: mais o primeiro-ministro do que os seus ministros, mais os ministros do que os secretários de estado e mais aqueles oriundos de certas áreas de governação (saúde, presidência do conselho de ministros, economia, educação e trabalho e segurança social).
Olhando para as fontes oficiais, constata-se que o primeiro-ministro assumiu grande protagonismo nos textos noticiosos que falavam de covid-19, sobrepondo-se sempre em termos de visibilidade mediática ao presidente da república e ao presidente da assembleia da república. Também dentro do executivo, foi notório o seu comando. Para a gestão corrente da doença, a ministra da saúde e a diretora-geral da saúde foram sendo figuras muito presentes nos palcos mediáticos, mas, quando se tratava de comunicar decisões que implicavam mudanças estruturais no funcionamento da sociedade (como o confinamento ou maiores medidas restritivas), o primeiro-ministro chamava a si a comunicação, nunca partilhando palco com a sua ministra da saúde. Simbolizava-se assim aquilo que sempre foi uma tendência social e dos media noticiosos: os homens decidem as mulheres executam.
Se nos centrarmos nos temas que mais citaram as fontes oficiais, conclui-se que estas estão concentradas naquilo que foram os momentos mais relevantes da pandemia. As decisões políticas, o balanço do número de mortos e de infetados, os problemas que afetavam os lares de terceira idade, a ação médica nos serviços de saúde, a educação, as reuniões internacionais, as análises epidemiológicas, os problemas ligados à crise económica, os retratos mais salientes do país e o que se passava no campo da justiça foram os 10 temas onde as fontes oficiais marcaram mais presenças. E isso também correspondeu àquilo que teve maior destaque do ponto de vista noticioso. Ora, esta tendência foi sobrepondo as fontes oficiais às especializadas. Ambas puxaram para si bastante centralidade. Mas as primeiras foram decidindo; as segundas, explicando, o que tornou as fontes oficias mais importantes.
Nem sempre a comunicação política destes interlocutores foi a mais concertada e articulada. Nunca tendo nomeado ao longo de 2020 uma equipa de cientistas para o coadjuvar permanentemente nas decisões e sem um porta-voz oficial, o governo foi transmitindo decisões através de interlocutores variados: primeiro-ministro, ministra da saúde, diretora-geral da saúde, secretários de estado da saúde, alguns governantes, entre outros. Ao longo de 2020, a diretora-geral de saúde foi promovendo conferências de imprensa, sempre ladeada por governantes da tutela, não se percebendo bem se os encontros com os jornalistas eram técnicos ou políticos. Também a periodicidade foi oscilando entre o ritmo diário para depois se fazer apenas em alguns dias da semana, acabando por desaparecer a partir de janeiro de 2021, paradoxalmente na altura em que a pandemia atingiu os índices mais graves a nível mundial. Isto sugere que nunca houve propriamente uma estratégia de comunicação bem arquitetada para comunicar com os cidadãos. Mais do que as fontes oficiais, foram os jornalistas que tiveram maior regularidade na promoção do noticiário desta pandemia. E se numa primeira onda as fontes oficiais conseguiram rapidamente controlar os números de infetados e de mortes, decidindo de forma célere e comunicando isso de modo claro, ao longo de 2020 as hesitações nestes dois níveis foram aumentando. E a gravidade da doença também. E isso não terá sido por acaso.